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SUMÁRIO

Capítulo 1 – O comportamento dos bancos em uma economia monetária

1.6. Comparação entre as abordagens neoclássica e pós-keynesiana da firma bancária

Enquanto a concepção neoclássica da firma bancária trata os bancos comerciais como meros intermediários financeiros, que captam “fundos emprestáveis” das unidades econômicas superavitárias, a fim de aloca-los entre as deficitárias; a pós-keynesiana afirma que os bancos comerciais, ao concederem

empréstimos, criam novo poder de compra, sendo essa a principal divergência entre as duas concepções.

Tal divergência deve-se principalmente à forma como as escolas neoclássica e pós-keynesiana tratam a relação entre poupança e investimento, bem como a oferta e a criação de moeda.

Embora a identidade macroeconômica: poupança = investimento seja uma tautologia, sendo válida tanto para a escola neoclássica, quanto para a pós- keynesiana, a primeira considera que o papel da poupança é o de financiar os novos investimentos; enquanto a segunda afirma que o papel da poupança é o de consolidar os investimentos já realizados, em linha com o circuito pós-keynesiano

finance-funding.

De acordo com a teoria neoclássica, a poupança precede o investimento, de tal forma que é necessário primeiro poupar para depois investir, cabendo aos bancos comerciais o papel de intermediar a transferência de riqueza acumulada ou de “fundos emprestáveis” das unidades superavitárias às deficitárias, a fim de possibilitar o financiamento de novos investimentos.

Entretanto, de acordo com a teoria pós-keynesiana, a relação é inversa: é o investimento que precede a poupança, sendo viabilizado pela criação de novo poder de compra pelos bancos comerciais no momento em que concedem empréstimos; logo, sem que haja a necessidade de “fundos emprestáveis” ou de riqueza previamente acumulada.

A abordagem neoclássica, ao considerar os bancos comerciais como meros intermediários financeiros e ao pressupor a necessidade de riqueza previamente acumulada ou de “fundos emprestáveis” para o financiamento do investimento, sustenta que os recursos dos agentes econômicos superavitários são literalmente transferidos pelos intermediários financeiros aos agentes deficitários, de tal forma que as operações de crédito dos bancos comerciais, assim como as dos demais intermediários financeiros, estão limitadas pelos seus “fundos emprestáveis”. Tal conclusão resulta tanto da necessidade de poupança prévia, quanto da ideia de que há comprometimento dos recursos depositados pelas unidades superavitárias para a concessão de empréstimos pelos intermediários financeiros, sejam bancos comerciais ou não.

Nesse sentido, a abordagem ortodoxa avalia que o acesso dos bancos comerciais às reservas do banco central ou às do mercado interbancário não os

diferencia dos demais intermediários financeiros e nem configura razão suficiente para caracterizá-los como instituições financeiras especiais, por considerar que operam exatamente da mesma forma que os demais intermediários financeiros, isto é, dependem e estão limitados pela captação de “fundos emprestáveis” das unidades superavitárias para a concessão de seus empréstimos.

Por sua vez, a concepção pós-keynesiana afirma que os bancos comerciais não estão limitados pelos seus “fundos emprestáveis” para a oferta de crédito, uma vez que podem obter as reservas necessárias por meio de empréstimos do banco central ou no mercado interbancário, sendo este o principal fator que os diferencia dos demais intermediários financeiros: bancos sem carteira comercial e as demais instituições financeiras não bancárias que também ofertam crédito.

A divergência relacionada à necessidade ou não de poupança prévia ou de “fundos emprestáveis” para a concessão de empréstimos guarda relação direta tanto com a oferta de moeda, se exógena ou endógena; quanto com o seu processo de criação.

A abordagem neoclássica tradicional considera que a oferta de moeda é exogenamente determinada pelo banco central, que controla a quantidade total de reservas disponível na economia por meio de controles quantitativos.

Já a abordagem pós-keynesiana, afirma que a autoridade monetária não controla a quantidade total de reservas disponível na economia; ao contrário, assume que o banco central apenas acomoda a demanda por reservas dos bancos comerciais e do público62 com o propósito de atingir a sua meta de taxa de juros, a variável que efetivamente está sob o seu controle.

No modelo heterodoxo, a quantidade de reservas é determinada endogenamente, em função do objetivo de taxa de juros fixado pela autoridade monetária e da demanda por reservas dos bancos comerciais; logo, a quantidade total de reservas é a variável endógena do modelo, determinada em função das variáveis exógenas: a meta de taxa de juros e da demanda por reservas dos bancos comerciais.

62 Da mesma forma que a demanda por reservas dos bancos comerciais, a demanda por reservas do público

também afeta a quantidade total de reservas da economia, porém, a última é atendida por intermédio dos bancos comerciais. Nesse sentido e a fim de se facilitar a elaboração e a leitura do texto, quando houver referência à demanda por reservas dos bancos comerciais, considera-se que a mesma também já embute a demanda por reservas do público.

Dessa forma, enquanto os economistas ortodoxos consideram que a quantidade total de reservas da economia é determinada pelo banco central; os heterodoxos consideram que são os bancos comerciais quem de fato determinam a quantidade total de reservas da economia, principalmente em função de suas operações de crédito, cabendo à autoridade monetária apenas aumentar ou diminuir a quantidade de reservas em função de sua meta de taxa de juros e da demanda por reservas dos bancos comerciais.

O banco central tem a obrigação legal de garantir a estabilidade e a credibilidade do sistema de pagamentos, oferecendo aos bancos comerciais as reservas que demandarem, o que está diretamente relacionado não somente à oferta endógena de moeda, mas também à forma como a moeda bancária ou os meios de pagamentos são criados nas economias modernas, ou melhor, à criação de novo poder de compra pelos bancos comerciais especialmente por meio da concessão de crédito.

Sob a perspectiva neoclássica, sempre que uma unidade econômica superavitária efetua um depósito bancário, à vista ou a prazo, há um aumento da quantidade de “fundos emprestáveis” à disposição dos intermediários financeiros – bancos comerciais ou não – para a concessão de novos empréstimos às unidades econômicas deficitárias.

Nesse sentido, os depósitos bancários são “criados” pelas unidades econômicas superavitárias e em seguida “emprestados” pelos intermediários financeiros às unidades econômicas deficitárias.

Entretanto, ao contrário do que afirma a escola neoclássica, os depósitos bancários, criados em contrapartida à concessão de empréstimos, não são criados pelas unidades econômicas superavitárias, mas sim pelos próprios bancos comerciais.

Quanto aos depósitos que têm como origem a transferência de recursos entre instituições financeiras ou depósitos de moeda em sua forma física (cédulas de papel ou moedas metálicas), a abordagem heterodoxa não os considera como depósitos “criados” pelas unidades superavitárias, considerando-os apenas como uma realocação de recursos nos portfólios dos agentes econômicos, sem a contrapartida de criação de novo poder de compra.

A Figura 5 a seguir resume como os depósitos bancários – novo poder de compra – são criados pelos bancos comerciais de forma agregada após a concessão de novos empréstimos.

Figura 5 – Criação de novo poder de compra para o conjunto dos bancos

Fonte: McLeavy et al. (2014). Elaboração própria.

Obs.: Os balanços acima estão simplificados e possuem caráter apenas ilustrativo, não correspondendo à composição de balanços reais.

Note-se que não há comprometimento nem de depósitos e nem de reservas, evidenciando a não necessidade de poupança prévia ou de “fundos emprestáveis” para a oferta de crédito pelos bancos comerciais.

Também é oportuno lembrar que os depósitos bancários são apenas registros de quanto os bancos devem aos seus depositantes, caracterizando passivos que não podem ser emprestados; enquanto as reservas não podem ser emprestadas às famílias e às empresas, em função de que tais unidades econômicas não possuem contas de reserva no banco central.

Os bancos somente utilizam as suas contas de reserva para transacionarem reservas entre si no mercado interbancário ou com o banco central, no caso de empréstimos intradia ou de operações de redesconto.

Os novos depósitos criados pelos bancos comerciais em contrapartida à concessão de crédito, conforme a figura 5, compõem o crédito de curto prazo (finance) utilizado para o financiamento de novos investimentos, cuja parcela da

renda gerada e não consumida retornará ao sistema financeiro na forma de poupança para a consolidação do investimento realizado, ao transformar as dívidas de curto prazo em passivos de longo prazo (funding).

É importante destacar que os economistas neoclássicos reconhecem que os bancos comerciais criam depósitos bancários em contrapartida a empréstimos e que podem tomar reservas emprestadas do banco central ou no mercado interbancário para a concessão de novos empréstimos, uma vez que essa é a forma como o mercado financeiro funciona de fato. Então, o que efetivamente diferencia a concepção neoclássica da firma bancária da pós-keynesiana?

Os economistas ortodoxos afirmam que os depósitos criados em função da concessão de crédito permanecem nas contas dos tomadores de recursos apenas por um breve momento, uma vez que são imediatamente sacados, de tal forma que os bancos comerciais continuam dependendo dos depósitos “criados” pelas unidades econômicas superavitárias.

O problema com essa lógica neoclássica está em focar a criação de depósitos bancários por um único banco em particular e não por todo o conjunto de bancos comerciais. Sobre a criação de moeda bancária por meio da concessão de empréstimos, Keynes observa:

Every movement forward by an individual bank weakens it, but every such movement by one of its neighbour banks strengthens it; so that if all move forward together, no one is weakened on balance. Thus the behaviour of each bank, though it cannot afford to move more than a step in advance of the others, will be governed by the average behavior of the banks as a whole—to which average, however, it is able to contribute its quota small or large (KEYNES, 1978d, p. 23).

E imediatamente em seguida Keynes, complementa:

Each bank chairman sitting in his parlour may regard himself as the passive instrument of outside forces over which he has no control; yet the 'outside forces' may be nothing but himself and his fellow-chairmen, and certainly not his depositors (KEYNES, 1978d, p. 23).

Ao focar a criação de depósitos por um único banco em particular, a abordagem neoclássica se concentra de fato no risco de liquidez ao qual um banco está exposto e não no processo de criação de depósitos bancários pelo conjunto dos bancos. Keynes afirma que cada banco é individualmente beneficiado pelos depósitos criados pelos demais bancos, de tal maneira que, na média, um banco

receberá depósitos proporcionalmente à sua maior ou menor participação no sistema financeiro, caso adote o comportamento médio dos demais bancos.

Quaisquer bancos comerciais, grandes ou pequenos, estão expostos a riscos de liquidez, todavia, podem contar com recursos tomados do banco central ou no mercado interbancário para sanar as suas eventuais deficiências de reservas.

Um banco comercial somente enfrentará dificuldades quando o banco central e o mercado interbancário recusarem-se a financiá-lo, por exemplo, após ter assumido posições especulativas que possam representar risco de solvência e não deficiências momentâneas de reservas.

Os bancos comerciais contam com os empréstimos do banco central e do mercado interbancário não só para sanar problemas de liquidez, mas principalmente para criar novos depósitos bancários, ou seja, novo poder de compra – sem a necessidade de riqueza previamente acumulada ou de “fundos emprestáveis” – em linha com a oferta endógena de moeda.

Embora os economistas neoclássicos reconheçam que os bancos comerciais captem recursos do banco central ou no mercado interbancário, insistem em caracterizar a oferta de moeda como exógena, principalmente em função de definirem a moeda como uma mercadoria, bem como em razão de afirmarem que a atividade bancária não afeta as variáveis reais da economia.

Para a escola neoclássica, a moeda é uma mercadoria criada pelo Estado por intermédio de seu banco central e introduzida na economia pelos bancos comerciais, os quais participam de sua distribuição, mas não de sua criação. Essa definição de moeda permite a acomodação da ideia de que a sua oferta é determinada exogenamente pelo banco central.

Fama (1980) considera a moeda fiduciária tanto em sua versão física: o papel moeda; quanto em sua versão abstrata e intangível: os depósitos bancários, como sendo um numerário ou a representação de um “bem real”, por meio do qual todos os demais preços da economia são mensurados, facilitando e agilizando o processo de troca de mercadorias.

O autor trata os bancos comerciais como meros intermediários financeiros, cuja principal função é a de manutenção de um sistema de pagamentos que permita a transferência de riqueza por meio de registros contábeis, mediante a utilização de uma moeda fiduciária abstrata e intangível: os depósitos bancários. Nesse sentido, os bancos comerciais simplesmente atendem as preferências de

emprestadores e tomadores de recursos, atuando de forma passiva e não participando, portanto, do processo de criação de moeda.

A definição da moeda como uma mercadoria, ofertada exogenamente pelo banco central, de cuja criação os bancos comerciais não participam também está presente em Tobin (1987). Em seu trabalho, o autor afirma que o banco central, por meio de seus controles quantitativos, determina a quantidade de reservas que deixará à disposição dos bancos comerciais, os quais poderão utilizar uma menor ou maior quantidade das reservas ofertadas em função das circunstâncias econômicas.

Economistas pós-keynesianos defendem, por sua vez, que o atual sistema de pagamentos pode ser compreendido como uma pirâmide dividida em três estratos, em que no topo está o Estado: o emissor da moeda fiduciária, a unidade de conta socialmente aceita; logo abaixo, os bancos comerciais: emissores de depósitos à vista, moeda bancária passível de conversão à moeda fiduciária, na proporção de 1:1, por meio de garantia do Banco central; e mais abaixo, as instituições financeiras não bancárias, as demais empresas não financeiras e as famílias: emissores de dívidas que podem ser convertidas em depósitos à vista ou em moeda fiduciária, mediante análise de seu risco de crédito, que pode ou não ser aceito pelos bancos comerciais (Wray, 2012).

Sob perspectiva heterodoxa, a moeda não é considerada uma mercadoria, mas sim um passivo de quem a emitiu e um ativo de que a aceitou, com os bancos comerciais participando ativamente de seu processo de criação, em razão de o banco central garantir a conversão dos depósitos à vista que emitem na moeda fiduciária emitida pelo Estado, o que está diretamente vinculado à oferta endógena de moeda. Logo, sob tal perspectiva heterodoxa, os bancos comerciais participam ativamente da criação de moeda ou de novo poder de compra, afetando as condições de financiamento da atividade econômica e, portanto, as suas variáveis reais: renda, produto e emprego agregados.

Wray (1992) argumenta que a divergência entre economistas neoclássicos e pós-keynesianos no que tange à oferta de moeda: se exógena ou endógena, decorre de uma questão de causalidade.

Segundo o autor, economistas ortodoxos afirmam que um aumento da quantidade de reservas expande a oferta de moeda, o que reduz a taxa de juros em um primeiro momento, incentivando a atividade econômica e aumentando os gastos dos diversos agentes, com consequente e gradativo aumento da demanda por

moeda, até o ponto em que é restabelecido o equilíbrio entre a demanda e a oferta de moeda, momento no qual a taxa de juros retorna ao patamar praticado anteriormente ao aumento das reservas.

Por sua vez, economistas pós-keynesianos defendem uma “causação reversa”: um aumento da intenção de gastos por parte dos agentes econômicos requer financiamento; se as instituições financeiras acomodarem essa demanda adicional por financiamento, haverá um aumento da oferta de moeda à medida em que os gastos se expandirem. Tal “causação reversa” está relacionada ao fato de que crescimento econômico requer gastos adicionais acima da atual capacidade financeira dos agentes, financiados por meio da criação de crédito, isto é, pela criação de novo poder de compra, em linha com o circuito finance-funding.

Wray (1992) coloca essa questão de causalidade de forma mais simples: para os neoclássicos, as reservas determinam os empréstimos, enquanto para os pós-keynesianos, os empréstimos determinam as reservas; ou, em outras palavras: para os neoclássicos, os bancos não passam de meros intermediários financeiros; já para os pós-keynesianos, os bancos criam novo poder de compra por meio do crédito.

Por fim, no que se refere à forma como os bancos buscam a maximização de seus lucros, Stiglitz e Weiss (1981) afirmam que os bancos maximizam seus lucros por meio do racionamento de crédito. Todavia, grande parte dos modelos neoclássicos de maximização dos lucros da firma bancária consiste em modelos de demanda por reservas, como os encontrados em Baltensperger (1980) e em Tobin (1982).

Os modelos de demanda por reservas consideram que as decisões dos bancos, relacionadas à alocação de recursos do lado do ativo, baseiam-se na avaliação que fazem ao ponderar a probabilidade de incorrer em custos extras (devido à falta de reservas ou de ativos líquidos, obrigando-os a tomar recursos emprestados do banco central ou no mercado interbancário) contra a probabilidade de perda de receitas (devido ao excesso de reservas não aplicadas em ativos mais rentáveis, embora menos líquidos).

Por sua vez, autores pós-keynesianos consideram que os bancos tomam as suas decisões de alocação de recursos do lado do ativo com base no trade-off entre rentabilidade e liquidez. Nesse caso, a avaliação dos bancos quanto ao futuro é o que prepondera em suas decisões. Assim, em um cenário otimista, os bancos

ampliarão a parcela de seus recursos investidos em empréstimos e outros ativos menos líquidos, porém, mais rentáveis; já em um cenário caracterizado pela deterioração de expectativas, os bancos diminuirão o percentual de seus recursos alocados em ativos ilíquidos ou pouco líquidos. Em outras palavras, em um cenário de maior incerteza, os bancos não hesitarão em trocar rentabilidade por liquidez63.