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SUMÁRIO

Capítulo 1 – O comportamento dos bancos em uma economia monetária

1.4. Características e impactos da atividade bancária sob uma perspectiva pós-keynesiana

1.4.1. O circuito finance-funding

Posteriormente à sua Teoria Geral, Keynes (1937b), explicita a importância do crédito de curto prazo para o investimento por meio do motivo finança ou finance, o qual pode ser caracterizado como um quarto motivo para a demanda por moeda.

Keynes, ao elaborar e desenvolver o motivo finance, faz uma importante distinção entre o financiamento de curto prazo e o de longo prazo do investimento, distinção esta que se torna a base para a caracterização do circuito pós-keynesiano denominado finance-funding, típico de economias monetárias da produção. Keynes argumenta que o processo de investimento passa por uma fase inicial, a de produção ou de execução do investimento, em que é financiado com recursos de curto prazo (finance); e por uma fase posterior, a de consolidação do investimento54, em que as dívidas de curto prazo são financiadas pela emissão de títulos de longo prazo (funding). Sobre a forma como um empresário financia um novo investimento, Keynes afirma:

The entrepreneur when he decides to invest has to be satisfied on two points: firstly, that he can obtain sufficient short-term finance during the period of producing the investment; and secondly, that he can eventually fund his short-term obligations by a long-term issue on satisfactory conditions. Occasionally he may be in a position to use his own resources or to make his long-term issue at once; but this makes no difference to the amount of "finance" which has to be found by the market as a whole, but only to the channel through which it reaches the entrepreneur and to the probability that some part of it may be found by the release of cash on the part of himself or the rest of the public. Thus it is convenient to regard the twofold process as the characteristic one. (Keynes, 1937b, p. 664)

De forma simplificada, pode-se considerar que um empresário dispõe de três alternativas para o financiamento de um investimento: i) recursos próprios; ii) captação de recursos nos mercados de capitais; e iii) empréstimos bancários, sendo que o empresário pode utilizá-las simultaneamente, nas proporções que melhor lhe convier.

Quando um investidor utiliza recursos próprios ou capta fundos do público nos mercados de capitais, ele estará absorvendo recursos líquidos que já estavam aplicados em algum outro ativo, não importando se em moeda, depósitos à vista ou

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a prazo ou ainda em alguma outra aplicação financeira. Dessa forma, haverá simplesmente a substituição de um ativo ou direito por outro nos portfólios dos agentes econômicos que decidiram financiar o empresário por intermédio do mercado de capitais, ou então, no portfólio do próprio empresário, caso este tenha utilizado recursos próprios. Não há, portanto, nesse caso, a criação de novo poder de compra, uma vez que foram utilizados recursos líquidos que já estavam à disposição dos financiadores do novo projeto de investimento, tendo havido somente a substituição de um ativo por outro no portfólio dos investidores.

Já na hipótese da opção por empréstimos bancários, o empresário não absorve recursos líquidos, pois um banco, ao conceder um empréstimo, cria moeda e novo poder de compra simplesmente por intermédio de uma operação contábil, por meio da qual o banco compra um ativo (o empréstimo tomado pelo empresário) em contrapartida à emissão de um passivo bancário contra si mesmo (o depósito à vista efetuado na conta corrente do empresário). Nesse caso, não há o envolvimento de nenhum recurso líquido previamente aplicado em alguma outra forma de investimento, em outras palavras, o financiamento não demandou a utilização de riqueza acumulada e alocada em algum outro ativo. Logo, há a criação de moeda e de novo poder de compra pelos bancos que é colocado à disposição do empresário para a concretização de seu investimento.

Assim, a moeda e o novo poder de compra criados pelo banco – “materializados” em seu balanço na forma de um empréstimo bancário (do lado do ativo) e de um depósito à vista em conta corrente (do lado do passivo) – serão investidos pelo empresário em máquinas e equipamentos necessários ao seu novo investimento, estimulando a atividade econômica da indústria de bens de capital e possibilitando a geração de renda via multiplicador keynesiano. Posteriormente, a renda gerada e não consumida ao longo desse processo de investimento será canalizada para a poupança, permitindo o refinanciamento de dívidas de curto prazo com recursos de longo prazo.

A principal característica do circuito finance-funding reside justamente no fato de que o investimento, viabilizado pelo finance, precede a poupança, a qual resulta da renda gerada e não consumida durante o processo de investimento, o que contraria o pensamento ortodoxo, que defende que a poupança precede o investimento.

Cabe ainda destacar que o fato de alguns empresários optarem pela utilização de recursos próprios ou pela captação de fundos nos mercados de capitais, como forma de financiarem a etapa inicial de seus novos projetos de investimento, não altera o montante de finance necessário à economia como um todo, pois é o finance que está vinculado ao investimento e que o viabiliza por meio da criação de moeda e de novo poder de compra pelos bancos. Sobre o finance, a poupança e a identidade macroeconômica: investimento = poupança, Carvalho (1992), afirma:

Finance is thus the creation of money by the institutions that have the necessary power: banks or monetary authorities. Savings, in contrast, are allocations of earned income, made by the general public. The conceptual difference between them is also highlighted by their chronological relationship. Finance precedes production, which generates income. If the act of investment creates savings in the same amount and finance precedes savings, finance is a condition to the generation of savings instead of the inverse causality usually assumed by classical economics (Carvalho, 1992, p. 150).

Assim, o finance pode ser entendido como a criação de moeda pelas instituições que têm o poder para tal: os bancos comerciais e as autoridades monetárias; enquanto a poupança diz respeito aos recursos que serão utilizados para a consolidação do investimento que teve início por meio do finance.

Em um esquema simplificado, Keynes (1937b) trata o finance como um fundo rotativo que é colocado à disposição dos investidores pelos bancos durante a fase inicial do investimento. Durante esse período, os bancos se tornam temporariamente menos líquidos, ao aplicarem parte de suas reservas em um ativo pouco líquido ou mesmo ilíquido: o empréstimo concedido ao empresário. O ciclo se completa posteriormente com o pagamento do empréstimo pelo empresário e com o restabelecimento do fundo rotativo, cujos recursos estarão disponíveis agora para o financiamento de outro projeto de investimento.

Cabe ainda destacar que, ao longo do período do financiamento de curto prazo (finance), tanto o banco, quanto o empresário, assumem posições especulativas; o banco, por ter diminuído a sua liquidez e por correr o risco de inadimplência; e o empresário, por correr o risco de não conseguir renovar o seu financiamento a taxas de juros satisfatórias. Essa posição de vulnerabilidade à qual ambos se submetem decorre do fato de os bancos comerciais, dada a natureza de suas operações, privilegiarem os empréstimos de curto prazo, os quais usualmente

não são suficientes para cobrirem todo o período de maturação necessário a um novo investimento. Por conta desse descasamento de prazo, é que se faz necessário o funding, que possibilita a transformação de um passivo de curto prazo em outro de longo prazo por meio da alocação de poupança prévia, permitindo, dessa forma, a consolidação do investimento em questão.

Keynes (1937b) ainda observa, ceteris paribus, que se a taxa de investimento se mantém constante e compatível com o patamar do finance disponibilizado pelos bancos, não haverá pressões sobre as taxas de juros. Em outras palavras, se o volume disponibilizado de finance for igual à demanda de recursos para investimentos, a taxa de juros tende a se manter estável.

Mantidas as preferências pela liquidez dos bancos, se houver uma maior demanda por finance, em razão de uma maior disposição dos empresários para investir, haverá um aumento das taxas de juros; já na situação inversa, em que os empresários demonstrem uma menor disposição para investir, haverá uma queda das taxas de juros.

Keynes observa que a transição de uma escala inferior de atividade econômica para uma escala mais elevada depende da preferência pela liquidez dos bancos e não da poupança do público:

The point remains, however, that the transition from a lower to a higher scale of activity involves an increased demand for liquid resources which cannot be met without a rise in the rate of interest, unless the banks are ready to lend more cash or the rest of the public to release more cash at the existing rate of interest. If there is no change in the liquidity position, the public can save ex-ante and ex-post and ex-anything-else until they are blue in the face, without alleviating the problem in the least—unless, indeed, the result of their efforts is to lower the scale of activity to what it was before.

This means that, in general, the banks hold the key position in the transition from a lower to a higher scale of activity. If they refuse to relax, the growing congestion of the short-term loan market or of the new issue market, as the case may be, will inhibit the improvement, no matter how thrifty the public purpose to be out of their future incomes. […] The investment market can become congested through shortage of cash. It can never become congested through shortage of saving. This is the most fundamental of my conclusions within this field. (Keynes, 1937b, pp. 668-669)

Uma vez apresentada a discussão do circuito finance-funding, atenção será dedicada à oferta endógena de moeda, que explica o processo por meio do qual o banco central atende a totalidade da demanda de moeda dos bancos comerciais e do público em função de sua meta de taxa de juros.