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Eis o Conceito de “carcaça” que estamos tentando construir. Ele não é nosso, nem da autora da dissertação, nem do pronome pessoal na primeira pessoa do plural que a “esconde”. Este Conceito pertence ao poeta romântico inglês John Keats (1795-1821) – grande inspiração para Oscar Wilde.

Utilizaremos duas fontes para essa explicação do termo. A primeira é o filme Bright Star (Brilho de uma paixão, 2009), dirigido por Jane Campion. O filme narra os três últimos anos de vida do poeta inglês John Keats (Ben Whishaw) e o seu relacionamento amoroso com Fanny Browne (Abbie Cornish), no subúrbio londrino de Hampstead Village, a partir de 1818.

Imaginemos a seguinte cena: Keats se oferece para dar aulas de poesia a Browne, que era estilista renomada na época. Browne chega à casa de Keats, acomoda-se em uma cadeira e pergunta como se faz poesia, como se entende poesia, como se constrói poesia. Keats responde.

– Um poeta não é nem um pouco poético, é a coisa mais impoética que existe. Ele não tem identidade. Ele preenche continuamente outro corpo, o sol, a lua...

[...]

– A construção poética é uma carcaça, uma fraude. Se a poesia não vem naturalmente, é melhor que não venha.

[...]

– Deve-se entender um poema através dos sentidos. A razão de se mergulhar num lago não é imediatamente nadar até a margem, mas sim estar no lago, deleitar-se com a sensação da água. Você não interpreta o lago. É uma experiência além do pensamento. A poesia abranda e encoraja a alma a aceitar os mistérios. (KEATS apud CAMPION, (1818 in) 2009)

Essa cena não aconteceu. Mas (bem que) poderia ter acontecido, segundo Aristóteles e suas possibilidades. Vejamos se encontramos na Literatura o que o Cinema imaginou e transformou.

Em Ode sobre a melancolia e outros poemas, o poeta, tradutor, crítico literário, antologista e filólogo brasileiro Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992) analisa trechos de poemas de John Keats e os axiomas de sua poesia.

A “Ode sobre uma urna grega”, além de sua importância intrínseca, é também um dos textos mais vivos e controversos da literatura inglesa, uma espécie de Hamlet em miniatura. Isso principalmente por causa dos dois versos finais:

“A beleza é a verdade, a verdade a beleza” (– é tudo O que sabeis na terra, e tudo o que deveis

saber.) (RAMOS apud KEATS, (1819 in) 2010, p. 22)

Além da equivalência entre a verdade e a beleza, Keats formulou uma teoria da intensidade, em especial na “Ode a uma urna grega”, em que as “figuras bestiais” dos centauros não possuem sombras, “são apenas pensadas, não citadas nem aludidas”. Elas se “evaporam” no texto, um paradoxo entre o seu peso e sua efemeridade.69

O princípio da “capacidade negativa” de Keats nos traz o poeta, em especial, Shakespeare como aquele mantenedor de suas dúvidas, suas incertezas, “sem nenhuma impaciente procura do fato e da razão” (KEATS, (1817 in) 2010, p. 35). O poeta não anseia nada além da beleza e seu preenchimento máximo.

Mas o conceito de “carcaça” do filme Bright Star e que nos apropriamos para o nosso estudo, encontra-se em uma carta de 27 de outubro de 1818 escrita por Keats a Woodhouse.

Quanto à personalidade poética em si (quero dizer essa espécie à qual pertenço, se sou alguma coisa; essa espécie diversa do sublime wordworthiano ou egotístico...), ela não é ela própria – ela não tem eu – é tudo e é nada – não tem personalidade – aprecia a luz e a sombra – vive no prazer, seja ela má ou boa, alta ou baixa, rica ou pobre, vil ou nobre – tem deleite igual ao conceber um Iago ou uma Imogênia. O que choca o filósofo virtuoso deleita o poeta camaleão. [...] O poeta é o mais impoético de tudo o que existe, porque não tem identidade, continuamente adentra e enche outro corpo. O sol, a lua, o mar e os homens e mulheres, que são criaturas de impulso, são poéticos e têm um atributo imutável; o poeta não tem nenhum, nenhuma identidade. É certamente a mais impoética de todas as criaturas de Deus. (KEATS, (1818 in) 2010, p. 35-36)

Eis a nossa “carcaça” que iremos preencher com o único romance atribuído (feito vimos na nota de rodapé 2, em relação a Teleny, ou O reverso da medalha, também atribuído, mas nunca comprovado) ao escritor irlandês Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, para

(69) Podemos aproximar o pensamento de Silva Ramos – quando afirma que, quanto ao sentido da “Ode

a uma urna grega”, encontramos uma “urna que viaja do passado ao futuro, e é, contudo, repousada e silenciosa” (RAMOS apud KEATS, 2010, p. 47) – do pensamento do semiólogo, filósofo e linguista italiano Umberto Eco (1932) em História da beleza – quando afirma que, nos românticos, ao contrário dos gregos, é a “Beleza que produz a verdade” (ECO, 2004, p. 317). Ela é o seu “artífice”. O conceito de “carcaça” de Keats, que veremos mais adiante, assim como o de “figura” de Auerbach seriam essa urna grega que “viaja do passado ao futuro”, mas de maneira “silenciosa”, ou seja, nos transportamos entre os tempos, se possível sem bagagens, transformando a “beleza em verdade”, a “verdade em beleza”, assim como as “figuras bestiais” se “evaporam no texto”, assim como o poeta “preenche continuamente outro corpo, o sol, a lua”... De maneira “figural” – prefigurando e preenchendo um “outro corpo” –, “histórica” – sem perder “as raízes” no presente –, e, por que não, “moderna”, permitindo “deleitar-se com a sensação” da “pós-modernidade” que insiste em se antecipar e nos adentrar a alma...

relacioná-lo de maneira “prefigural” com a sua longa narrativa histórica que foi a carta escrita no cárcere de Reading ao seu ex-amante lorde Alfred Douglas, De Profundis.

Antes de passarmos para a aplicação do que elencamos “conceitual e historicamente” até agora no nosso objeto de pesquisa, vejamos os três axiomas da poesia de John Keats, os quais confidenciou em carta a Taylor em 1818 – por intuirmos que tudo o aqui exposto é necessário e será, em algum instante, utilizado por nós.

1. Achava que a poesia deveria surpreender por um fino excesso, e não pela simplicidade; deveria atingir o leitor como expressão de seus próprios e mais altos pensamentos e parecer quase uma lembrança;

2. Seus traços de beleza não deveriam ser incompletos, deixando assim o leitor sem respiração, em vez de satisfeito. O nascimento, o progresso, o ocaso das imagens deveria, como o sol, vir-lhe naturalmente brilhar sobre ela e pôr-se calmamente, embora com esplendor, deixando-o no fausto do crepúsculo;

3. Se a poesia não viesse naturalmente como as folhas à árvore, seria melhor não vir absolutamente. (RAMOS apud KEATS, 2010, p. 36)