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Se seguíssemos o “fluxo de dados lógico” de História-Conceito-Objeto, veríamos primeiro o conceito de Figura, de Erich Auerbach, e não – feito iremos ver – a sua aplicação em Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, do mesmo autor alemão. Mas como se “fizéssemos fazendo” – a “carcaça” do Conceito mesclado com a História para receber um (todo e qualquer) Objeto de pesquisa – utilizaremos o primeiro capítulo desse grande compêndio auerbachiano que é Mimesis para ilustrar o que, desde o início de nossa dissertação, tentamos preencher.

Mimesis (publicado em 1946) foi escrito pelo filólogo, estudioso de literatura comparada, crítico de literatura e judeu nascido em Berlim Erich Auerbach. Foi escrito durante a Segunda Guerra Mundial quando, fugindo da perseguição nazista, exilado em Istambul, na Turquia, sem acesso a uma bibliografia abundante – lançou mão de uma memória prodigiosa –, analisou, de Homero a Virgínia Woolf, a representação do que considerava o melhor da literatura ocidental.

Tomemos o primeiro capítulo de Mimesis para amalgamarmos à nossa “carcaça” de Conceito e História. De maneira diversa dos demais capítulos – todos iniciam com o extrato do texto na língua original, e em seguida, a tradução –, Auerbach abre “A Cicatriz de Ulisses” diretamente na análise de um trecho do poema épico de Homero extraído da Odisseia – em que narra o encontro de Euricleia no lava-pés de um Ulisses disfarçado de mendigo –, para depois compará-lo com o trecho do sacrifício de Isaac por Abraão no livro do Gênesis do Antigo Testamento. Auerbach nos convence que o estilo homérico é direto, não possui “segundos planos” e pretende “preencher completamente” o presente do presente da narração para “distrair o leitor”.

O episódio da caça, narrado com amplidão; amorosa e sutilmente construído, com todo o seu elegante deleite, com a riqueza das suas imagens idílicas, tende a ganhar o leitor totalmente para si, enquanto o ouve – a fazê-lo esquecer o que acontecera recentemente, durante o lava-pés. O não preenchimento total do presente faz parte de uma interpolação que aumenta tensão mediante o retardamento; é necessário que ela não aliene da consciência a crise por cuja solução se deve esperar com tensão, para não destruir a suspensão do estado de espírito; a crise e a tensão devem ser mantidas, permanecer conscientes, num segundo plano. Só que Homero, e teremos de voltar a isto, não conhece segundos planos. O que ele nos narra é sempre somente presente, e preenche completamente a cena e a consciência do leitor. (AUERBACH, (1946 in) 2011, p. 2-3)

Descobrimos não ser esse o estilo do autor – chamado Eloísta – do trecho do Gênesis escolhido por Auerbach. (Poderíamos pensar que cada texto é uma escolha: se escolhe o que de mais verdadeiro o texto possui.)

Abraão é chamado pelo Deus todo-poderoso, o Senhor dos Exércitos. “Abraão! – Eis- me aqui”, responde o patriarca. Não nos situa no tempo, não nos situa no espaço. Não nos traz à luz a intenção de quem nos conta a história.

Não é fácil, portanto, imaginar contrastes de estilo mais marcantes do que estes, que pertencem a textos igualmente antigos e épicos. De um lado, fenômenos acabados, uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem interstícios, num primeiro plano; pensamentos e sentimentos expressos; acontecimentos que se desenvolvem com muito vagar e pouca tensão. Do outro lado, só é acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa à meta da ação; o restante fica na escuridão. (AUERBACH, 2011, p. 9)

Para Auerbach, em Homero não existe a dúvida – o Uno prevalece –, enquanto que a “multiplicidade de camadas da vida psíquica” – o Diverso – no Eloísta nos revela a simultaneidade oferecida por Bergson em Duração e simultaneidade, e os personagens homéricos só parecem conhecer a sucessão.

Homero nos quer “fazer esquecer” o presente do presente por algumas linhas. O Eloísta, não. Este deseja que, em vez de esquecimento, alcancemos a suplantação. Feito nos “vestíssemos” do personagem de Abraão, ou mesmo de Isaac, e “habitássemos” catarticamente a sua pele “por algumas linhas” alcançando a redenção da mão salvadora no “lampejo do instante” do anjo a nos segurar a faca, instrumento do sacrifício do filho único.

É quando Auerbach nos apresenta o conceito de Figura. Ao tratar desse preenchimento absoluto em Homero e relativo em Abraão, conta a história dos primeiros padres da Igreja que, na intenção de angariar novos fiéis em todo aquele que fosse pagão, judeu ou gentil, passam a ligar “figuras” do Antigo Testamento com a “figura” plena do Cristo no Novo Testamento.

O trabalho interpretativo mais impressionante desta espécie ocorreu nos primeiros séculos do Cristianismo, como consequência da missão entre pagãos, e foi realizado por Paulo e pelos Pais da Igreja; eles re- interpretaram toda a tradição judaica numa série de figuras a prognosticar a aparição de Cristo, e indicaram ao Império Romano o seu lugar dentro do plano divino da salvação. Portanto, enquanto, por um lado, a realidade do Velho Testamento aparece como verdade plena, com pretensões à hegemonia, estas mesmas pretensões obrigam-na a uma constante modificação interpretativa do seu próprio conteúdo; este sofre durante milênios um desenvolvimento constante e ativo com a vida do homem na Europa. (AUERBACH, 2011, p. 13)

A “constante modificação interpretativa do seu próprio conteúdo” no Antigo Testamento assemelha-se à Lei morta que o Cristo veio transformar em Lei viva com sua vinda para nos salvar.

(Mesmo sendo III.5 Ainda não Figura, mas Mimesis, vale elencar (o mais brevemente possível) algumas questões em relação aos dois textos de Auerbach, vale colocá-los “face a

face” um ao outro. E ninguém melhor que o próprio Erich Auerbach em “Appendix: ‘Epilegomena to Mimesis’” para apresentá-los.

Passaram-se seis anos da publicação de Mimesis. Auerbach faz uma “reflexão crítica das reflexões críticas” que o livro recebeu. Afirma que esperava “as mais sérias objeções” vindas da filologia clássica, por “a literatura antiga ser tratada em meu livro acima como um contraexemplo” (AUERBACH, (1953 in) 2003, p. 559), o que não aconteceu, especialmente pelos críticos de filologia clássica Otto Regenbogen e Ludwig Edelstein. Auerbach se detém no texto de Regenbogen no qual este critica o “manuseio de Homero e Agostinho” do autor de Mimesis. Auerbach admite que “os temas da falta de tensão e ‘segundo plano’ em Homero” (AUERBACH, 2003, p. 559-560) foram mais do que gostaria enfatizados no primeiro capítulo – o que veremos mais detalhadamente após esses (breves) parênteses.

Mas gostaríamos de chamar atenção para a crítica do filólogo, professor de literatura alemão Ernst Robert Curtius (1886-1956) a Mimesis. Segundo Auerbach, Curtius extrai teses de seu livro em vez de refutá-las, e uma dessas teses tem a ver com o figuralismo da visão Cristã da realidade, o que está subentendido em Figura. Curtius considera que Auerbach não levou em questão outros textos contemporâneos que tratavam do mesmo assunto. Mas o que o crítico não “levou em questão”, e que o próprio criticado levanta, são as condições em que o livro foi escrito: exílio em Istambul, Turquia, por ser judeu, a “parca” bibliografia, além de Auerbach afirmar que tais “textos contemporâneos” não eram tão “contemporâneos assim”: que esses textos apareceram logo após Figura e quatro anos após Mimesis.

E para fechar esses (o mais brevemente possível) parênteses, vale salientar o caráter “sociológico” que é atribuído a Mimesis (o próprio Auerbach, em “Epilogomena”, não especifica quem atribui esse caráter). Que é “antimedieval e antiCristão”, “pró-Francês” e negligencia o “Alemão”. Auerbach faz questão de uma defesa no sentido de que o livro representa a literatura Europeia como um todo, que em alguns períodos era melhor extraída da França, por exemplo, que da Alemanha. E que seu “esforço por exatidão relata o individual e o concreto”, em contraste com o geral que “compara, compila, ou diferencia o fenômeno”, e “tem de ser elástico e flexível” (AUERBACH, 2003, p. 572). Ou o que veremos no final deste capítulo com Leopoldo Waizbort, e Auerbach encerra o “Epilogomena” com a célebre frase que diz muito (e tudo): “Mimesis é bem conscientemente um livro que uma pessoa particular, em uma situação particular, escreveu no começo dos anos 1940” (AUERBACH, 2003, p. 574).)

Retornando (dos breves parênteses e ao primeiro capítulo de Mimesis), o Diverso do Antigo Testamento sendo quebrado pela unicidade da interpretação figural dá a esses textos um “sentido e meta globais” (AUERBACH, 2011, p. 14), o que podemos comparar com as leis verticais da não ficção sendo quebradas pelas convenções horizontais da ficção em John R. Searle no nosso primeiro capítulo da dissertação.

Quanto mais isolados e horizontalmente independentes são os relatos e os grupos de relatos, se comparados com os da Ilíada e da

Odisseia, tanto mais forte é a sua ligação vertical comum que os

mantém todos juntos sob um mesmo signo, o que falta totalmente a Homero. Em cada uma das grandes figuras do Velho Testamento, desde Adão até os Profetas, encarna-se um momento da mencionada ligação vertical. (AUERBACH, 2011, p. 13-14, itálico da tradução)

Homero está para o lendário assim como o Antigo Testamento está para o histórico. A lenda “é excessivamente linear” enquanto a história “transversalmente” “indecisa, quebrada, vacilante”, nesta habita o contraditório; naquela, o absoluto. (Poderíamos ensaiar mais uma imagem com nosso Objeto de pesquisa: Dorian está para a lenda assim como o quadro está para a história.)

Auerbach encerra o primeiro capítulo de Mimesis destacando as diferenças nos dois estilos: em Homero, encontramos uma “descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem interstícios”, predominância do primeiro plano, preferência pelo uno e não problemático; em Abraão, o jogo de sombra e luz na narração de certas partes, “multiplicidade de planos”, “pretensão à universalidade histórica”, e, em especial, a “necessidade de interpretação”. Enfim, estamos prontos, “à rebours”, em uma ordem “ao contrário”, “às avessas”, a adentrar o conceito de Figura utilizado por Erich Auerbach em Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, aplicado ao nosso Objeto de pesquisa O retrato de Dorian Gray daqui a algumas páginas.