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O escritor, jornalista e tradutor brasileiro Modesto Carone (1937) apresenta Figura, de Erich Auerbach, e temos a impressão de que já o vimos antes, um dèja-vu de Conceito e História anunciado e reanunciado diversas vezes durante todo o fazer “artístico-teórico” desta dissertação.

A partir de uma exposição erudita das aparições do termo em autores que vão de Terêncio a Quintiliano, passando entre outros por Varão, Lucrécio, Ovídio e Plínio, nos quais “figura” comporta significados cambiantes – forma plástica, imagem, cópia, forma que retrata ou forma que muda –, o percurso de semântica histórica descrito pelo ensaísta chega à concepção da figura de linguagem – “forma de discurso que se desvia do seu uso normal e mais óbvio”. (CARONE apud AUERBACH, (1938 in) 1997, p. 7)

(Mais uma vez, antecipemos um teórico que nos ajudará a construir “as paredes” do Conceito de nossa “carcaça”. Ele já foi citado (mas não nomeado) quando falamos da anunciação e das chagas em Isaías. Trata-se de Georges Didi-Huberman, que irá apresentar um conceito bem semelhante ao de Auerbach, apenas que em vez de na Literatura, nas Artes Plásticas. Tentaremos fazer uma aproximação entre os dois teóricos mais adiante, apesar de as particularidades inevitáveis de cada arte.)

Auerbach narra a história de “figura”, da mesma raiz de fingere, figulus, fictor e

effigies, que significa “forma plástica”. Ele nos conta que sua manifestação mais remota se

encontra em Terêncio e seu Eunuchus, e que três autores foram marcantes para a disseminação do conceito e chegada até nossos dias: Varrão, Lucrécio e Cícero. Trataremos especialmente de Lucrécio, e vale salientar a importância neste autor da sua interpretação e transposição do termo “da esfera plástica e visual para a auditiva” quando o relaciona com a figura “verborum”, ou “figura das palavras” – lembremo-nos do “Verbo se fez carne e habitou entre nós”.

Tito Lucrécio Caro (c. 99-55 a.C.) nos foi apresentado pelo crítico literário, teórico e historiador americano Stephen Greenblatt (1943) em A virada: o nascimento do mundo moderno (Prêmio Pulitzer 2012), em que narra a história de como Poggio Bracciolini (1380- 1459), o ex-secretário do papa deposto João XXIII, numa dessas “viradas” do acaso, estende o braço na biblioteca de um mosteiro no sul da Alemanha em 1417 e descobre um “manuscrito antiquíssimo” que manda ser copiado. Trata-se de De Rerum Natura (Da natureza das coisas) de Tito Lucrécio Caro, um poema de 7.400 versos em que Lucrécio expõe o pensamento de Epicuro (c. 341-270 a.C.).

Greenblatt seleciona vinte máximas do pensamento lucreciano, que por sua vez é uma retomada do pensamento epicurista, que por sua vez é um aprofundamento da teoria atomista criada por Demócrito (c. 460-370 a.C.). Em linhas gerais, Lucrécio apresenta o pensamento

epicurista da imortalidade da alma, o que a Igreja Católica irá, na Idade Média, deturpar (para a “não” imortalidade da alma) e relegar ao “segundo plano” das prateleiras empoeiradas das bibliotecas dos mosteiros. Ao retomar a teoria atomista de Demócrito e aprofundá-la, Epicuro esclarece que, assim como o corpo é composto de átomos, tal é o destino de nossa alma.

Antes de mais, nada provém do nada, pois que então tudo nasceria sem necessidade de sementes e, se se dissolvesse no nada tudo o que desaparece, todas as coisas seriam destruídas, anulando-se as partes nas quais se decompunham. E também é certo que o todo foi sempre tal como é agora e será sempre assim, pois nada existe nele que possa mudar-se. Com efeito, mais além do todo não existe. Nada que penetrando nele produza a sua transformação. (EPICURO, 1985, p. 51-52)

(Consideramos o grande equívoco da Igreja Católica, visto que, se a alma é composta de átomos assim como o corpo, e se esses átomos se “transformam para sempre”, tanto os átomos do corpo quanto os átomos da alma são eternos, e não haveria motivo para se preocupar com a doutrina epicurista, ou pior, deturpá-la. Conhecemos apenas o lado hedonista de Epicuro, que também era real, mas o pensamento sobre a imortalidade dos átomos da alma assim como os do corpo deste filósofo grego, por causa da Igreja Católica, perdeu “vontade de potência” – “vontade de potência” que foi celebrada por Friedrich Nietzsche quase 2 mil anos depois.)

Retornemos a Auerbach em Figura. Ele narra o pensamento lucreciano das “imagens de filme”, que são “as estruturas que se desgarram das coisas como películas” e “flutuam no ar”. O que muito se assemelha aos sais de prata sendo impressos pela luz na fotografia de “modelo e cópia” do nosso Dorian Gray.

Estas variantes [do jogo de “modelo e cópia”] tinham grande vitalidade e gozaram de uma carreira significativa; “modelo”, “cópia”, “ficção”, “visão de sonho” – todos estes significados ligaram-se à

figura. Mas foi em outra esfera que Lucrécio desenvolveu um uso mais

engenhoso da palavra. Como se sabe, ele professava a cosmogonia de Demócrito e Epicuro, de acordo com a qual o mundo é feito de átomos. Ele chama os átomos de primordia, principia, corpuscula, elementa,

semina [primórdios, princípios, corpúsculos, elementos, sementes] e,

em sentido muito geral, também os chamou corpora, quorum

concursus motus ordo postura figura [corpos cuja reunião, movimento,

mundo. Embora pequenos, os átomos são materiais e produzidos: têm formatos infinitamente diversos; e é por isso que ele os chama com frequência “formas”, figurae, e que reciprocamente se possa traduzir

figurae, como Diels fez, por “átomos”. Os numerosos átomos estão em

movimento constante; movem-se no vazio, combinam-se e repelem uns aos outros: uma dança de figuras. (AUERBACH, 1997, p. 17-18, primeiros colchetes nossos, demais colchetes da tradução, itálico da tradução)

No caso de Cícero, encontramos “figura” sendo disseminada “na linguagem da filosofia e no discurso culto” por sua causa, o que foi fundamental para os poetas que a utilizaram para melhor acessar (e habitar) o mundo dos sonhos.

Chega a vez de Tertuliano: um dos pais do conceito de “figura” como hoje o conhecemos. Ele narra em Adversus Marcionem a história de Osée, filho de Nun, a quem Moisés que, prefigurando a vinda do Cristo, chamou de Josué (Josué é o mesmo que Jesus).

[...e pela primeira vez ele é chamado Jesus... esta, observamos em primeiro lugar, foi a imagem das coisas que viriam a acontecer, pois Jesus Cristo ia introduzir um segundo povo, que somos nós, nascidos nos desertos deste mundo, na terra prometida, da qual emanam o mel e o leite, isto é, na posse da vida eterna, da qual nada existe de mais doce; e isto tinha de acontecer não por meio da lei de Moisés, isto é, por meio da disciplina da Lei, mas por meio de Jesus, isto é, por meio da graça do evangelho, nossa circuncisão sendo realizada por uma faca de pedra, isto é, segundo os preceitos de Cristo, pois Cristo é a pedra. Por isso, este homem, que era preparado como imagem deste sacramento, foi consagrado em figura com o nome do Senhor e, assim, chamado Jesus.] (TERTULIANO apud AUERBACH, 1997, p. 27, colchetes da tradução)

(Lembremo-nos da Lei viva do Cristo vindo para “atualizar” a Lei morta do Antigo Testamento: a Lei versus a Graça.)

Auerbach insiste no caráter histórico e real da “figura” nos primeiros padres. Para Paulo, Tertuliano, Agostinho, e até mesmo em Tomás de Aquino, a prefiguração era “histórica e real”, e não mística, espiritual ou abstrata. Isso fará (grande) diferença em relação à alegoria e ao símbolo, o que veremos mais adiante.

A interpretação figural estabelece uma conexão entre dois acontecimentos ou duas pessoas, em que o primeiro significa não apenas a si mesmo mas também ao segundo, enquanto o segundo abrange ou preenche o primeiro. Os dois polos da figura estão separados no tempo, mas ambos, sendo acontecimentos ou figuras reais, estão dentro do tempo, dentro da corrente da vida histórica. Só a compreensão das duas pessoas ou acontecimentos é um ato espiritual,

mas este ato espiritual lida com acontecimentos concretos, sejam estes passados, presentes ou futuros, e não com conceitos ou abstrações; estes últimos são secundários, já que promessa e preenchimento são acontecimentos históricos reais que ou já aconteceram na encarnação do Verbo, ou ainda acontecerão na segunda vinda. (AUERBACH, 1997, p. 46)

(Podemos aqui nos lembrar do “físico real” de Bersgon que habita e imobiliza em pensamento o sistema de seu(s) “físico(s) fictício(s)”.)

Que (a partir de agora) não confundamos a interpretação figural com alegoria, nem mesmo com o símbolo. Basicamente, a interpretação figural é histórica, a alegoria não. Já o símbolo traz outras conotações, mais próximas ao mito.68

Essas formas simbólicas ou míticas têm certos pontos de contato com a interpretação figural: as duas aspiram a interpretar e organizar a vida como um todo; ambas são concebíveis apenas em esferas religiosas ou afins. Mas as diferenças são evidentes. O símbolo deve possuir poder mágico, a figura não; a figura, por outro lado, deve ser histórica, mas o símbolo não. É claro que a cristandade não deixa de possuir símbolos mágicos; mas a figura não é um deles. O que torna de fato as duas formas completamente diferentes é que a profecia figural se relaciona com uma interpretação da história – na verdade é, por sua natureza, uma interpretação textual –, enquanto o símbolo é uma interpretação direta da vida e originalmente, na maior parte das vezes, também da natureza. Assim, a interpretação figural é o produto de culturas posteriores, bem mais indiretas, mais complexas e mais carregadas de história do que o símbolo ou o mito. (AUERBACH, 1997, p. 49, itálico da tradução)

Auerbach nos alerta que a interpretação figural garante a plenitude do acontecimento, este foi “definido segundo um modelo ideal que é um protótipo situado no futuro e, por conseguinte, apenas prometido” (AUERBACH, 1997, p. 50). É a “carcaça” que vislumbramos

(68) O romanista alemão Karlheinz Barck (1934-2012) nos traz em “‘Figura’ e ‘Imagem Dialética’ (A

Concepção de História de Erich Auerbach na perspectiva de Walter Benjamin)”, ensaio que faz parte do V Colóquio UERJ Erich Auerbach, algumas divergências entre o filólogo de Figura e o filósofo de “Destino e Caráter” mencionado em nota de rodapé do Interlúdio II de nossa dissertação. Entre elas, podemos ressaltar que o “desaparecimento do aspecto mágico da linguagem, a ‘eliminação da magia’ se apresenta para Benjamin como uma consequência da escrita” (BARCK, 1994, p. 191). Poderíamos considerar que, enquanto em Auerbach “a interpretação figural é histórica, a alegoria não”, em Benjamin a alegoria seria “preenchida” de historicidade, porque foi “à escrita e à linguagem que a clarividência, no curso da história, cedeu as suas antigas forças” (BENJAMIN apud BARCK, 1994, p. 191).

há algumas páginas e que estamos “quase” prontos para apresentar a sua origem (do termo) e preenchê-la (com o nosso Objeto de pesquisa)...

“Mas de fato não pode haver escolha entre o significado histórico e o oculto; ambos estão presentes. A estrutura figural preserva o acontecimento histórico ao interpretá-lo como revelação; e deve preservá-lo para poder interpretá-lo”. (AUERBACH, 1997, p. 58)

(Lembremo-nos do que afirmamos neste capítulo: “Cada texto é uma escolha: se escolhe o que de mais verdadeiro o texto possui”.)

A verdade que irá surgir em meio às sombras é o que interessa a Auerbach, é o que interessa aos primeiros padres, especialmente São Paulo quando em I Coríntios 13, 1-12 via “em parte” o que seria preenchido “face a face” na segunda vinda do Cristo.

Acredito que agora possuo esta base histórica; trata-se precisamente da interpretação figural da realidade que, embora em constante conflito com as tendências espiritualistas e neoplatônicas, era a visão dominante na Idade Média europeia: a ideia de que a vida terrena é inteiramente real, com aquela realidade da carne em que o Logos penetrou, mas que, com toda a sua realidade, é apenas umbra e figura da verdade autêntica, futura e eterna, a realidade real que desvenda e preserva a figura. Desse modo, o acontecimento terreno individual não é visto como uma realidade definitiva, autossuficiente, nem como um elo na cadeia de um desenvolvimento em que acontecimentos isolados ou combinação de acontecimentos geram novos acontecimentos, mas visto principalmente em sua ligação vertical imediata com uma ordem divina que o abarca, a qual no futuro será a realidade concreta; assim, o acontecimento terreno é uma profecia ou figura de uma parte da realidade divina total que será revelada no futuro. Mas esta realidade não é apenas futura; já está presente na visão de Deus e no outro mundo, o que quer dizer que, na transcendência, a realidade revelada e verdadeira está sempre ou atemporalmente presente. (AUERBACH, 1997, p. 60-61, itálico da tradução)