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Imobilidade e Continuidade – Simultaneidade e Sucessão

Essa mise-en-abîme de imobilizações e mobilizações, de quebras de simultaneidade transformando-se em sucessão, poderemos encontrar também no doutor em Literatura Comparada e professor da UERJ Gustavo Bernardo (1955), no seu O livro da metaficção. No capítulo I, “Continuidade dos Parques”, Bernardo nos apresenta um conto do escritor argentino Julio Cortázar.

O conto de Cortázar se chama “Continuidad de los Parques”. O título do conto sugere um espaço contínuo e contíguo através do qual um parque se comunica com outro parque. Essa sugestão cria um problema, que se insinua antes de lermos a segunda frase do conto: a ficção de Cortázar contém dentro dela uma outra ficção. (BERNARDO, 2010, p. 30-31)

O conto abre de maneira vertiginosa: “Começara a ler o romance dias antes” (CORTÁZAR apud BERNARDO, 2010, p. 30). Sentimos o incômodo, como leitores, de lermos um livro em que um leitor está lendo um livro, de um leitor que está lendo um livro...

O mesmo incômodo que sentimos por Wilde escrever sobre um jovem e belo dândi, em tom homoerótico, que faz um pacto com um quadro para trocar de lugar, ou seja, um escritor (real) irlandês homossexual, que ama a juventude, belo e dândi, que se imobiliza em Dorian (que se considera real), que por sua vez se imobiliza através de um pacto com o quadro, que é pura ficção do tempo inserido na narrativa.

Um outro exemplo dado por Bernardo (2010, p. 54-55), e que podemos relacionar com o pensamento de Bergson sobre a mobilidade/imobilidade de seus físicos, encontramos no segundo capítulo de O livro da metaficção, quando nos deparamos com as marionetes de Dom Quixote de La Mancha. Dom Quixote toma como “reais” as marionetes que o Mestre Pedro vai apresentando, e “errando” a narração das estórias. Quixote ataca as marionetes e critica “a inverossimilhança flagrante da história de Mestre Pedro”.

(Não podemos deixar de abrir parênteses para aproximar o capítulo de Bernardo sobre Dom Quixote do texto do filósofo e sociólogo austríaco radicado em Nova York, EUAamericano Alfred Schütz (1899-1959) “Dom Quixote e o problema da realidade” que se encontra na coletânea organizada pelo sociólogo e professor brasileiro Antonio Candido (1918) em Teoria da literatura em suas fontes. Schütz analisa diversas passagens do romance de Cervantes em que o protagonista imagina e justifica um mundo inteiramente seu e o que os outros veem, e até o tempo que sentem (se lembrarmos da relação com o tempo de Pedro e Paulo de Bergson) são “alterados” pelos encantadores, inimigos ou amigos.)

Temos em Bergson que, ao “transitar” da situação de físico imóvel e real para físico móvel e fictício, há uma imobilização do sistema escolhido pelo pensamento e, ao mesmo tempo, o perigo do esvaziamento da personalidade.

Mas os outros homens não serão mais que referidos; para o físico, agora, não poderão passar de marionetes vazias. Porque, se Pedro lhes concedesse uma alma, perderia imediatamente a sua; de referidos teriam se tornado referentes; seriam físicos, e Pedro teria de se fazer marionete por sua vez. (BERGSON, 2006, p. 95)

Talvez seja este o motivo de encontrarmos em Wilde o “esvaziamento da personalidade” no momento do processo que o levou à prisão e o fez escrever sua longa carta De Profundis – em outro estudo que foge (um pouco) do escopo da presente dissertação,

relacionamos a paralisia de Wilde com os conceitos de Narcisismo Primário, Narcisismo Secundário e Complexo de Édipo de Sigmund Freud.28 E o “esvaziamento da personalidade” no final do romance O retrato de Dorian Gray, quando o protagonista não consegue reverter a monstruosidade do quadro com sua “máscara” de bondade em relação a Hetty Wottom. Consideramos que ambos, tanto Wilde quanto Dorian, se “esvaziam” quando tentam “pensar” um sistema de ficção móvel: Wilde para cumprir o seu destino e Dorian para matar a sua própria consciência.

Lembremos que Wilde não poderia assumir plenamente o seu desejo homossexual. Na sociedade londrina do final do século XIX, com a Emenda Labouchère que condenava a dois anos com trabalhos forçados a “flagrante indecência” entre homens, Wilde teria que “habitar” um sistema “móvel” fictício, Dorian, para poder experimentar abertamente o “tempo interior” do que ele, na realidade, era, mas não poderia explicitar.

Por mais que se lhes atribua o mesmo Tempo matemático, como sempre se fez até Lorentz e Einstein, é impossível demonstrar estritamente que os observadores postados respectivamente nesses dois sistemas vivam a mesma duração interior e que, por conseguinte, os dois sistemas tenham o mesmo Tempo real; é até mesmo muito difícil definir com precisão essa identidade de duração; tudo o que se pode dizer é que não se vê nenhum motivo para que um observador que se transporte de um para o outro sistema não reaja psicologicamente da mesma maneira, não viva a mesma duração interior, ante porções supostamente iguais de um mesmo Tempo matemático universal. (BERGSON, 2006, p. 96)

As leis físicas do eletromagnetismo, explica Bergson (2006, p. 106), são as mesmas tanto para o observador no interior do sistema, ou seja, imóvel, eterno, real, quanto para o observador de fora do sistema, ou seja, móvel, no tempo, fictício. O que possibilita essa reciprocidade é o “encurvamento da simultaneidade e sua transformação em sucessão”, ou

(28) TENÓRIO, Patricia. Jane Frances Elgee & Oscar Wilde: Uma teoria dos afetos. Revista Escrita.

Rio de Janeiro: PUC/RJ, Agosto - 2015. No artigo relacionamos a repetição dos processos de Sir William Wilde e Charles Gavan Duffy, salvos por Lady Wilde e a imposição desta para que o filho não fuja no seu próprio processo – contrariando a quase certeza de que iria ser preso por homossexualidade –, no artigo citado relacionamos essas duas repetições com o retrocesso do Narcisismo Secundário para o Narcisismo Primário e a predestinação de “Os arruinados pelo êxito” no Complexo de Édipo de Sigmund Freud.

como nos disse anteriormente nesta dissertação Eddington sobre a Teoria da Relatividade de Einstein:

O sol faz uma forma ao redor do universo. O espaço é moldado. E é assim que a gravidade funciona. O espaço diz aos objetos como se moverem, os objetos dizem ao espaço que forma deve ter e existe uma maneira de provar. Quando a luz de uma estrela chega perto do sol, o que vai acontecer com ela? Ela vai se curvar. (EDDINGTON apud MARTIN, 2008)

Essa reciprocidade de simultaneidade transformada em sucessão, sucessão transformada em simultaneidade, talvez seja o que Wilde desejou experimentar através dos dois sistemas imaginados, Dorian e o quadro, nos quais em Dorian insere a beleza e a juventude fixa, eterna, paradoxalmente associadas à maldade, ou à falta de valores morais (os padrões gregos eram exatamente opostos), enquanto no quadro, a velhice e a feiura se exprimem conservando a “pureza intocada de sua meninice – a meninice branca e cor-de- rosa” (WILDE, 2013, p. 307) que, antes da influência hedonista de lorde Henry, habitava em Dorian Gray.

Pois não devemos esquecer que o trem e a ferrovia estão em estado de deslocamento recíproco. É claro que Einstein tampouco se esquece disso quando se abstém de desenhar flechas ao longo da ferrovia; indica desse modo que escolhe a ferrovia como sistema de referência. Mas o filósofo que quer se informar sobre a natureza do tempo, que se pergunta se a ferrovia e o trem têm ou não têm o mesmo Tempo real – isto é, o mesmo tempo vivido ou que pode sê-lo –, o filósofo deverá se lembrar constantemente que não lhe cabe escolher entre os dois sistemas: porá um observador consciente em ambos e procurará descobrir o que é para cada um deles o tempo vivido. (BERGSON, 2006, p. 114)

Bergson nos lembra de que o físico é um cientista, e um cientista se preocupa com a medição. Por isso sempre adota um sistema de referência por vez. Ao assumir o ponto de vista do filósofo, Henri Bergson se aproxima do que considera que Albert Einstein “realmente” quis demonstrar: a multiplicidade do Tempo e a reciprocidade do movimento na Teoria da Relatividade geral.

E, por fim, caberia dizer: “Uma filosofia que se situa tanto do ponto de vista da ferrovia como do ponto de vista do trem, que nota então como simultaneidade no trem o que nota como simultaneidade na ferrovia, não está mais metade na realidade percebida e metade numa construção científica; está inteira no real e, aliás, nada mais faz senão se apropriar completamente da ideia de Einstein, que é a da reciprocidade do movimento. Mas essa ideia, na condição de completa, é filosófica e não mais física. [...]” (BERGSON, 2006, p. 117)