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“O não-saber desnuda”, afirma Georges Bataille em uma das epígrafes de Diante da imagem (1990), de Georges Didi-Huberman. Interessante saber – e notem que afirmamos “sem” os parênteses das observações particulares – que a ordem de leitura seria outra, não fosse um “acaso” do mercado editorial – A pintura encarnada ficou de chegar a Recife, Pernambuco, uma semana depois do que era necessário à autora. Então esta iniciou pelo compêndio de textos de Didi-Huberman que é Devant l’Image. Isto lhe deu um panorama geral do pensamento do filósofo francês e, principalmente, subsídios para o aproximar do filólogo alemão Erich Auerbach e seu conceito de Figura.

(Tentaremos descobrir o motivo dessa não aproximação em Diante da imagem pelo próprio Didi-Huberman. Esperamos alcançar o nosso intento.)

Didi-Huberman, como foi salientado no início da seção passada pelo gravador e professor Luiz Carlos Mubarac, veio para “deslocar as perguntas habituais e se mover por mares heterodoxos”, ele veio para desconstruir a base da História da Arte como a conhecemos hoje em dia, para do Uno de interpretações se “transfigurar” – para usar um termo bem cristão – em uma miríade de “Conceito e História” do Diverso.

O historiador não é senão, em todos os sentidos do termo, o fictor, isto é, o modelador, o artífice, o autor e o inventor do passado que ele dá a ler. E, quando é no elemento da arte que desenvolve sua busca de um objeto circunscrito, mas de algo como uma expansão líquida ou aérea – uma nuvem sem contornos que passa acima dele mudando constantemente de forma. Ora, o que se pode conhecer de uma nuvem senão adivinhando-a e sem nunca apreendê-la inteiramente? (DIDI- HUBERMAN, (1990 in) 2013, p. 10, itálico da tradução)

Georges Didi-Huberman nos transporta ao Renascimento e conta a história do pintor, arquiteto e “biógrafo de artistas” Giorgio Vasari (1511-1574), que com o seu Le Vite de piú Eccellenti Pittori, Scultori e Architettori fez sair do esquecimento, trouxe à luz, fez “renascer” os nomes dos artistas de sua época que considerava merecer serem lembrados.70 Mas o primeiro historiador da arte é duramente criticado pelo filósofo francês “que se move por

(70) É interessante lembrarmos que Vasari é maneirista, “à maneira de”, e que em História social da

arte e da literatura o escritor e historiador da arte húngaro Arnold Hauser (1892-1978) afirma: “Vasari

ainda usa maniera para designar individualidade artística, um modo de expressão histórica, pessoal ou tecnicamente condicionado, logo ‘estilo’, no mais amplo sentido da palavra” (HAUSER, 1998, p. 368, itálico da tradução).

mares heterodoxos”. O engessamento da História da Arte que Didi-Huberman impinge a Vasari é algo que vale a pena refletir.

E nossa hipótese se deve justamente ao fato de que a história da arte, fenômeno “moderno” por excelência – pois nascida no século XVI – quis enterrar as velhíssimas problemáticas do visual e do

figurável conferindo novos fins às imagens da arte, fins que

colocavam o visual sob a tirania do visível (e da imitação) e o figurável sob a tirania do legível (e da iconologia). Aquilo que a problemática “contemporânea” ou “freudiana” nos fala como de um trabalho ou de uma coerção estrutural havia sido há muito formulado por antigos padres da Igreja – evidentemente num outro registro de enunciação – e os pintores da Idade Média o haviam empregado como uma exigência essencial de sua própria noção de imagem. Noção hoje esquecida e tão difícil de exumar. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 16- 17, itálico da tradução)

Talvez seja essa a “chave” para entender o (total) “esquecimento” de Erich Auerbach por Didi-Huberman – ao menos em A pintura encarnada e Diante da imagem. Além de a diferença (natural) entre as artes, Literatura para Auerbach, Artes Plásticas para Didi- Huberman, encontramos no último muito mais “coerção” da Igreja Católica na Idade Média do que no primeiro – o paradoxal é Auerbach ser judeu e por isso perseguido pelos nazistas na Segunda Grande Guerra.

Os artistas elencados por Vasari estão para Michelangelo assim como as figuras do Antigo Testamento nos primeiros padres da profecia figural estão para o Cristo, sendo tanto o ícone do Renascimento quanto o ícone de toda uma transformação religiosa os ápices de suas prefigurações, e no caso do último, continuando numa “semiose” sem fim mesmo após a sua morte e ressurreição nas Cartas e Atos dos apóstolos e Apocalipse.

Os homens da Idade Média não pensaram de outra forma o que constituía para eles o fundamento da sua religião, a saber: o Livro, a Sagrada Escritura, na qual cada partícula era apreendida como contendo a dupla potência do acontecimento e do mistério, do alcance imediato (ou mesmo milagroso) e do inalcançável, do próximo e do distante, da evidência e da obscuridade. Esse é o seu grande valor de fascinação, o seu valor de aura. Para os homens daquele tempo, a Escritura não foi, portanto, um objeto legível no sentido em que geralmente o entendemos. Eles precisavam – a crença o exigia – cavoucar o texto, abri-lo, praticar nele uma arborescência infinita de relações, de associações, de desdobramentos fantásticos em que tudo, especialmente tudo que não estava na “letra” mesma do texto (seu sentido manifesto), podia florescer. Isso não se chama uma “leitura” – palavra que etimologicamente sugere o estreitamento de um laço –

mas uma exegese – palavra que, por sua vez, significa a saída do texto manifesto, palavra que significa a abertura a todos os ventos do sentido. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 30, itálico da tradução)

 

Um outro ponto comum entre Auerbach e Huberman – pedimos licença por de agora em diante nomearmos o filósofo francês de forma reduzida: simplesmente por questão de sonoridade adotamos o nome menor –, um outro ponto em comum entre os dois teóricos da “figura” seria a “encarnação” do historiador em Huberman – “encarnação” que veremos mais adiante como “experiência do saber” divino, mas não apreensão de “todo o saber” que só pertence a Deus –, enquanto em Auerbach os saberes serão atualizados à cada releitura, à cada geração de historiadores que tomam o passado em suas mãos feito pedras ardentes e tentam (ao máximo, mesmo queimando as mãos) extrair o seu sentido. Ou segundo o professor de sociologia da USP Leopoldo Waizbort, “o feito de Auerbach seria ter realizado uma análise na qual a totalidade da época se revela; e a totalidade só se revela por ele identificar os suportes do processo histórico, vale dizer, o sujeito histórico de um processo social” (WAIZBORT, 2004, p. 76). Dos fragmentos das obras analisadas por Auerbach em Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, pode-se apreender toda uma época, com seus costumes, valores e sua cultura, utilizando-se apenas, e somente apenas, de como a obra literária expõe essa realidade, realidade que “não está fora da obra, mas nela mesma; não é externa, mas interna” (WAIZBORT, 2004, p. 85).

Temos ainda alguns monumentos, mas não sabemos mais o mundo que os exigia; temos ainda algumas palavras, mas não sabemos mais a enunciação que as sustentava; temos ainda algumas imagens, mas não sabemos mais os olhares que lhes davam carne; temos a descrição dos ritos, mas não sabemos mais sua fenomenologia nem o valor exato da sua eficácia. O que isso quer dizer? Que todo passado é definitivamente anacrônico: só existe nas operações de um “presente reminiscente”, um presente dotado da potência admirável ou perigosa de apresentá-lo, justamente, e, no après-coup dessa apresentação, de elaborá-lo, de representá-lo. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 50, itálico da tradução)

Como já refletimos antes, Huberman se apropria do pensamento alheio de uma maneira tão amalgamada, de uma maneira tão sua, que não sabemos mais quais são as fronteiras entre a influência e o influenciado, entre Derrida e Huberman, entre Vasari e Hegel, feito se o(s) primeiro(s) fosse(m) a “prefiguração” do(s) segundo(s).

Aliás, se poderia afirmar, com alguma ironia, que o primeiro grande historiador da arte já havia optado, seguramente sem o saber – mas o de hoje não o sabe em geral muito mais –, por uma posição neo- hegeliana em relação à historicidade. [...] Em suma, um Hegel reduzido (e em parte falseado, o que o prefixo neo estaria a indicar) a três reivindicações para a história. A primeira: o motor da história (da arte) está mais além de suas figuras singulares. É ele, o mais além, que se realiza propriamente falando: é ele que se per-faz no colmo della

perfezione. Vasari lhe dá com frequência o epíteto de divino – o divino

que designou e mesmo tocou com o dedo Michelangelo para sua realização. Pode-se também chamá-lo Ideia, pode-se chamá-lo Espírito. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 61, itálico da tradução)

É quando chegamos, entre outras reflexões, à hipótese principal deste terceiro capítulo da dissertação. Quando Hegel afirma que a “história é o devir [do Espírito] que se atualiza no saber, o devir que se mediatiza a si mesmo” (HEGEL apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 62, colchetes da tradução), relembrando Agostinho, o Triplo Presente e o Eterno, trazendo a Encarnação do Antigo Testamento passando pelo Novo Testamento aos últimos livros da Bíblia, consideramos que o Espírito é o Tempo inteiro, pois é anterior à Criação do Tempo. Ou seja, alguém (feito Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde em 1890 em O retrato de Dorian Gray) preenchido pelo Espírito (criador) consegue vislumbrar acontecimentos passados, presentes, mas também futuros (em De Profundis). E “entre outras reflexões”, porque poderemos (mais uma vez), em outros espaços, relacionar essa hipótese principal do terceiro capítulo e o estudo “além-dissertação” (tal a prefiguração “além Novo Testamento”) da Escrita Criativa a partir de Oscar Wilde. Giorgio Vasari afirma “apud” Georges Didi- Huberman “apud” a nossa autora – esse “jogo” de “apuds” também é “interpretação figural”, também é Figura:

[...] E desse conhecimento (cognizione) nasce um certo conceito ou julgamento (concetto e giudizio) que forma no espírito essa coisa, a qual, expressa a seguir com as mãos (poi expressa con le mani), se chama o desenho. Pode-se daí concluir que esse desenho não é senão a expressão aparente e a declaração do conceito que se possui no espírito (una aparente espressione e dichiarazione del concetto che si

ha nell’animo), ou daquilo que outros imaginaram no seu espírito e

fabricaram na ideia (nella mente imaginato e fabricato nell’idea). [...] Seja como for, o desenho, quando extrai a invenção de uma coisa a partir do julgamento (quando cava l’invenzione d’una qualche cosa

dal giudizio), tem necessidade de que a mão seja dirigida e tornada

apta – através do estudo e do exercício de muitos anos – a desenhar e a exprimir bem (disegnare e esprimere bene) todas as coisas que a natureza criou, seja com a pena, o buril, o carvão [o lápis de carvão], a

pedra [o creiom] ou qualquer outro meio. De fato, quando o intelecto produz com julgamento conceitos purificados (quando l’intelletto

manda fuori i concetti purgati e con giudizio), essas mãos, exercitadas

durante tantos anos no desenho, fazem conhecer a perfeição e a excelência das artes, e ao mesmo tempo o saber do artista (il sapere

dell’artefice). (VASARI apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 103-104,

itálico e colchetes da tradução)

Como se o DI-SEGN-O, ou o “segno di Dio” alertado por Zuccari (em Huberman (em Tenório (em...))) nos gerasse a Ideia de que o Wilde de 1890, por meio da manipulação do DI- SEGN-O divino da palavra, do Verbo, na Criação de O retrato de Dorian Gray a pedido do editor da Lippincott’s, J. M. Sttodardt, o escritor irlandês do nosso estudo produzisse “conceitos purificados”, que, de tanto “buscar”, duvida como Frenhofer de Balzac, mas “apreende”, “capta” o “saber do artista” (il sapere dell’artefice) do futuro Wilde, sete anos depois, em De Profundis (1897).

Assim se apresenta, em 1932, o movimento crítico proposto por (historiador de arte alemão Erwin) Panofsky (1892-1968) à história da arte. Movimento insistente, magistral, inquietante. Movimento que se transmite e transfere o problema de um lugar a outro: toda forma visível já traz o “conteúdo conceitual” de um objeto ou de um acontecimento; todo objeto, todo fenômeno visíveis já trazem sua consequência interpretativa. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 135, itálico da tradução, primeiros colchetes nossos)

 

Tragamos ao centro talvez uma das últimas imagens de nossa dissertação para, quem sabe, ilustrar o que “roçamos” em Oscar Wilde e seus dois textos “que se falam” apesar da distância no tempo. Estamos em 1994, no sul da França, próximo ao rio Ardèche, na região da Provence. Três exploradores de cavernas, entre eles Jean-Marie Chauvet, descobrem uma fenda bem estreita que dá acesso a um dos mais importantes achados da História da Arte, da Antropologia, Sociologia, enfim, da Cultura: a caverna posteriormente batizada como Chauvet e que o cineasta (que narra de maneira bem poética) de O enigma de Kaspar Hauser (1974), Werner Herzog (1942), batiza magistralmente de Caverna dos sonhos esquecidos (Cave of Forgotten Dreams) (2010).

Abrindo-se sob exceção extrema a “caverna” para o cineasta e equipe, acompanhamos – de maneira tão inesperada quanto para a própria equipe que a filma – o desvelar das imagens desenhadas nas paredes da caverna por homo sapiens (ou melhor, feito o pré-historiador Jean Clotes (1933) francês nos atualiza, homo spiritualis) há cerca de 32 mil anos. Herzog narra a

caverna feito “um momento congelado no tempo” que, por obra de deslizamentos, encapsulou o tempo nos permitindo ver, “face a face”, o que eles construíram lentamente, “em partes”.

“Os pintores parecem falar conosco”, nos diz Herzog. E nos sentimos assim “assombrados”, “assustados” com o “frescor” das imagens apesar das camadas e camadas de calcita e milhares de anos que nos separam. “Essas imagens são memórias de sonhos”, continua Herzog. Mas o ex-malabarista, ex-monociclista de circo e atual arqueologista Julien Mooney adverte: “O passado está totalmente perdido”. Precisamos criar novos entendimentos da caverna, criar uma representação, para nos separar do “assombro”, do “absoluto”, da face de Deus – pois a face de Deus em Moisés, em Jacó, nem ao menos a face do Deus-Pai no Cristo nos é inacessível de maneira direta: é preciso o Cristo para intermediá-lo. O que torna para Mooney impossível de retornar à caverna após cinco dias consecutivos de visita e os sonhos com os leões representados e também com leões “reais”.

“Nós estamos presos na história, eles não”, em uma das últimas partes do documentário, afirma Herzog. Mooney lhe conta a história de um etnógrafo que leva um aborígene da Austrália para explorar uma caverna com pinturas rupestres, e o choque de bagagens, de culturas é explícito e contundente: o aborígene começa a “retocar” uma pintura que “se apaga”, e, quando questionado o seu gesto pelo etnólogo, aquele responde: “Não estou pintando. São as mãos dos espíritos que estão pintando”.

Não é difícil imaginar “as mãos de Oscar Wilde” em 1897 “escrevendo por cima” das “mãos de Oscar Wilde” em 1890 diante dessa “imagem-abismo” de 32 mil anos de diferença entre nós e esses artistas primitivos da Caverna dos sonhos esquecidos. Se pensarmos bem, tudo já foi escrito, tudo já foi pintado, e não fazemos nada além de re-fazer, re-escrever, re- criar aquilo que “originalmente” foi “criado” nos seis primeiros dias da vida na Terra. Mas, como diz a poetisa mineira Adélia Prado em Oráculos de maio: “Sei que Deus mora em mim / como em sua melhor casa. / Sou sua paisagem, sua retorta alquímica / e para sua alegria / seus dois olhos. Mas esta letra é minha” (PRADO apud HOHLFELDT, (1999 in) 2000, p. 96).

Leonardo da Vinci disse: “Duas fraquezas que se apoiam uma na outra produzem juntas uma força”. As duas metades de um arco não podem sequer se manter de pé sozinhas; o arco inteiro suporta uma carga. Do mesmo modo, a pesquisa arqueológica é cega e vazia sem re- criação estética, e a re-criação estética é irracional, com frequência extraviada, sem investigação arqueológica. Mas, “ao se apoiarem uma na outra”, ambas podem suportar o “sistema doador de sentido” – que é

uma sinopse histórica. (PANOFSKY apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 152-153)