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A história da salvação cristã foi, desde o Gênesis, anunciada quando encontramos:

Então Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra”. Deus criou o homem à sua imagem; criou o homem e a mulher. Deus os abençoou: “Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra”. Deus disse: “Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus, a tudo o que se arrasta sobre a terra, e em que haja sopro de vida, eu dou toda a erva verde por alimento”.

E assim se fez. Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o sexto dia. (Gênesis 1, 26-31)

Antecipando o que veremos mais adiante em Figura e Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, de Erich Auerbach, percebemos esse caráter duplo nas Escrituras, desde o Gênesis até as Cartas e Atos dos Apóstolos e Apocalipse. Desde os livros mais antigos, o propósito é o mesmo, segue uma mesma direção: apontar para a vinda de um Messias que iria livrar a face da terra do pecado original de Adão e Eva, “o homem e a mulher”, os primeiros criados à “imagem e semelhança” de Deus.

Um dos profetas mais ricos e pertinentes quanto a essa “prefiguração” no Antigo Testamento é Isaías. Veremos adiante, quando é relembrado pelo próprio Cristo no momento do “preenchimento” total de sua vinda. Logo no sétimo capítulo do livro de Isaías, encontramos o prenúncio da encarnação:

Isaías respondeu: “Ouvi, casa de Davi: Não vos basta fatigar a paciência dos homens? Pretendeis cansar também o meu Deus? Por isso, o próprio Senhor vos dará um sinal: uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e o chamará ‘Deus Conosco’. Ele será nutrido com manteiga e mel até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem. [...]” (Isaías 7, 14-15)

Isaías vai afirmar o papel do profeta, aquele que será chamado de “sentinela” por anunciar a Salvação.66 Na nota de rodapé de...

“Porque o Senhor me disse: ‘Vai postar uma sentinela! Que ela te anuncie o que vir!’” (Isaías, 21, 6)

... encontramos:

“A sentinela é como um desdobramento da personalidade do profeta; é o seu caráter de vidente” (Isaías, 21, 6, itálico da tradução).

O “caráter de vidente do profeta” veremos mais adiante ser o mesmo “caráter de vidente” do poeta/criador. As Escrituras indicam feito setas, feito índices que se movem com o tempo, e são atualizados, e são renovados, até atingir a sua realização máxima com a vinda do Messias.

Eis meu Servo que eu amparo, meu eleito ao qual dou toda a minha afeição, faço repousar sobre ele meu espírito, para que leve às nações a verdadeira religião. Ele não grita, nunca eleva a voz, não clama nas ruas. Não quebrará o caniço rachado, não extinguirá a mecha que ainda fumega. Anunciará com toda a franqueza a verdadeira religião; não desanimará nem desfalecerá, até que tenha estabelecido a verdadeira religião sobre a terra, até que as ilhas desejem seus ensinamentos. [...] Realizaram-se os primeiros acontecimentos anunciados, eu predigo outros; antes que aconteçam, eu vo-los faço conhecer. (Isaías 42, 1-4, 9)

Na minissérie britânico-italiana de seis horas, dirigida e coescrita por Franco Zeffirelli,

Jesus of Nazareth (Jesus de Nazaré) (1977), descobrimos o momento em que a palavra de

(66) Georges Didi-Huberman em Phasmes (Essais sur l’Apparition. Paris: Les Éditions de Minuit,

1998, p. 11) explica que o termo-título-do-livro vem do grego phasma, “que significa forma, aparição, visão, fantasma, e consequentemente presságio”. De animais “sem cabeça e sem cauda” – tais como escorpiões, salamandras... – escondidos por entre as folhagens do Jardin des Plantes de Paris, Didi- Huberman compara os phasmes ao inesperado, às “aparições anunciadoras” que na escrita podem ser tomadas como epifanias.

Isaías se concretizou, o instante em que Jesus (Robert Powell) lê na sinagoga as Escrituras e revela: Today, in this hearing, the Scriptures are fulfilled.67

  

O espírito do Senhor repousa sobre mim, porque o Senhor consagrou-me pela unção; enviou-me a levar a boa nova aos humildes, curar os corações doloridos, anunciar aos cativos a redenção e aos prisioneiros a liberdade; proclamar um ano de graças da parte do Senhor [...]. (Isaías 61, 1-2)

Um pouco antes, no capítulo 53, Isaías parece nos descrever a reação, não somente da audiência daquela leitura de Jesus, mas também em relação aos acontecimentos futuros que em breve seriam preenchidos.

Quem poderia acreditar nisso que ouvimos? A quem foi revelado o braço do Senhor? [...] Era desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos sofrimentos; como aqueles, diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado e não fazíamos caso dele. [...] Em verdade, ele tomou sobre si nossas enfermidades, e

carregou os nossos sofrimentos: e nós o reputávamos como um castigado, ferido por Deus e humilhado. Mas ele foi castigado por nossos crimes, e esmagado por nossas iniquidades; o castigo que nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas.

(Isaías 53, 1, 3-5)

(Salientamos a passagem acima de Isaías para nos aproximarmos mais à frente do nosso Objeto de pesquisa. Também pedimos atenção à questão das “chagas” que será tratada adiante por outro autor nas “paredes” do Conceito na nossa “carcaça”.)

A palavra do profeta não pode voltar atrás. Ela tem de ser ‘profe’rida, ‘executada’ para poder cumprir sua missão.

Tal como a chuva e a neve caem do céu e para lá não volvem sem ter regado a terra, sem a ter fecundado, e feito germinar as plantas, sem dar o grão a semear e o pão a comer, assim acontece à palavra que minha boca profere: não volta sem ter produzido seu efeito, sem ter executado minha vontade e cumprido sua missão. (Isaías 55, 10-11)

(67) É interessante deixarmos a frase no inglês, porque ganha em semelhança com o que iremos abordar

neste capítulo: o preenchimento. Se traduzíssemos como encontramos em diversas Bíblias teríamos “Hoje, nesta leitura, as Escrituras se concretizaram”, e não “se preencheram”. Na versão da Bíblia (Ave Maria, 2001) utilizada neste estudo, temos no Evangelho Segundo São Lucas, capítulo 4, versículo 21: “Ele começou a dizer-lhes: ‘Hoje se cumpriu este oráculo que vós acabais de ouvir’”.