• Nenhum resultado encontrado

Quando o gravador e professor do Departamento de Artes Plásticas da Universidade de São Paulo (USP) Luiz Claudio Mubarac (1959) nos apresenta o autor de Diante da imagem, o filósofo, historiador, crítico de arte e professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris Georges Didi-Huberman (1943), o apresentador avisa que o

apresentado, em relação à História da Arte, veio para “deslocar as perguntas habituais e se mover por mares heterodoxos” (MUBARAC apud DIDI-HUBERMAN, (1990 in) 2013, orelha do livro), e intuímos que encontramos o teórico ideal para aproximarmos do filólogo alemão Erich Auerbach e o conceito de Figura.

Dando continuidade à construção de nossa “carcaça” de Conceito e História, preenchendo com o nosso Objeto de pesquisa ficcional e o relacionando de maneira “prefigural” com a narrativa histórica que se “realizará” sete anos depois, tentaremos algumas aproximações, ao mesmo tempo que construímos as “outras duas paredes” de Conceito e História de nossa estrutura: aproximação da reflexão sobre a interpretação figural em Didi- Huberman e Auerbach; aproximação entre O retrato de Dorian Gray do nosso escritor irlandês Oscar Wilde e o conto do escritor francês Honoré de Balzac “A obra-prima desconhecida”.

Mas “vamos por partes”. Em 1985, Didi-Huberman realiza um estudo sobre o conto de Honoré de Balzac (1799-1850) citado acima, “A obra-prima desconhecida” (1837). Uma das características do “fazer teórico” de Didi-Huberman é (exatamente) a constante construção de uma forma para ser “preenchida” – o que tentamos nos apropriar, e refazer, e “encarnar” (de uma maneira própria) nesta dissertação. Veremos mais adiante, tanto em A pintura encarnada, quanto em Diante da imagem, que essa técnica se assemelha à técnica de manipulação dos artistas plásticos da obra de arte e a devida extração/apreensão do conhecimento que desse processo criador emana e (gratuitamente) nos oferece – o que “aplicaremos” nos Interlúdios de nossa reflexão.

Parecemos concordar com o tradutor e prefaciador de A pintura encarnada, o professor do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo Osvaldo Fontes Filho.

Esse pensamento da imagem, a se julgar por suas iniciais incursões em A Pintura Encarnada, movimenta amplos campos do saber e seu variegado conceituário (psicanalítico, semiótico, hermenêutico, filosófico...); pensamento capaz de transitar, desimpedido, entre diferentes regimes do olhar – sobre a forma, no distante; ou sobre a matéria, no próximo –, entre as morfologias do quadro (que solicitam uma renovada fenomenologia) e suas ressonâncias psicológicas, mesmo carnais. (FONTES FILHO apud DIDI-HUBERMAN, (1985 in) 2012, p. 14, itálico da tradução)

O “carnal” em Didi-Huberman participa da mesma “encarnação” do Cristo no seio da Virgem Maria, participa de sua morte e ressurreição no terceiro dia, da encarnação de “todos

os pecados do mundo” em seu corpo e expurgados com sua morte, “e morte de cruz”, feito nos lembra São Paulo. Participa desta imagem – que é a que nos interessa – que iremos desenvolver mais profundamente em Diante da imagem, foi anunciada em Isaías, e que foi prefigurada no nosso estudo: a imagem do quadro recebendo “todos os pecados” de Dorian Gray em si.

A pintura pensa. [...] Sabedoria e ciência sempre se infectaram e se perverteram, entrançaram-se; constituem-se, em suma, com o sentido. Ora, o próprio sentido é um entrelaçamento, uma perversidade. Ao menos três paradigmas aí produzem nós e jogos: os paradigmas do semiótico (o sentido-sema), do estético (o sentido-aisthesis) e do patético (o sentido-pathos). Acontece que Leonardo da Vinci, em suas

Profezie, deu à palavra sentimento toda a extensão e a perversidade

dessa rede. [...] – Eis o que ele escreve: Quanto piu si parlerà colle

pelli, veste del sentimento, tanto piu s’acquisterá sapientia. Quanto

mais se falar com as peles, vestiduras do sentido, mais se adquirirá sapiência. Trata-se das peles quando se conjugam, diz ele, escrituras, le

scritture, e sentido do tato, il senso del tatto. (DIDI-HUBERMAN,

2012, p. 19-20, itálico da tradução)

Didi-Huberman nos oferece o “diáfano” de Aristóteles – a “cor em potência”. (Outra característica interessante do filósofo e historiador francês é a de se apropriar de tal maneira do pensamento de outro teórico – sem, no entanto, exercer “plágio” –, que não sabemos até onde vai Didi-Huberman, até onde vai o outro teórico.) “A cor em potência” do “diáfano” de Aristóteles é o entremeio (lembremos dos Interlúdios) entre a superfície e a profundidade, aquilo que não podemos ver, muito menos nomear, aquele que o Cristo anunciou aos seus discípulos, que soprou sobre os seus discípulos em forma de “chamas”, e eles se “preencheram” plenamente do Espírito Santo.

Mergulhemos no conto de Balzac. Narra a estória de Nicolas Poussin, um jovem pintor que, recém-chegado à cidade de Paris, procura um mentor em François Porbus – o (ex) pintor de Henri IV –, e encontra um rabugento/velho amigo do mesmo: o Mestre Frenhofer. Mestre para Porbus que o enxerga “por inteiro”, enquanto Poussin, na sua imaturidade e rompante de gente jovem, o enxerga “em partes”, um fracassado. Mas aos poucos essa (primeira) impressão do jovem se modifica a tal ponto de dar tudo, até mesmo a sua (mais que) amada Gillete para posar nua e com isso poder (entre)ver “A obra-prima desconhecida” do velho Frenhofer.

O filósofo e o escritor franceses se (entre)olham. Com séculos de distância, repetem o gesto de Michelangelo na Capela Sistina – estamos, propositalmente, nos (re)“encarnando” – e se “conversam” através do texto. Didi-Huberman se apropria do conhecimento gerado por Balzac, que por sua vez lhe foi oferecido por Frenhofer, que foi emanado na manipulação das “tintas à óleo” e construção do “muro de pintura” d’“A obra-prima desconhecida”.

– Há aqui um enlouquecimento da noção de superfície. Talvez porque ela seja justamente apenas uma noção. Talvez porque ela nunca tenha sido um conceito, claro e distinto. Desse equívoco, a pintura de algum modo se aproveita: ela rasura a noção, enquanto agoniza e desaparece no conceito. Estamos no mais das vezes condenados a protelar. Miseráveis postergações da noção e do conceito. Ou a pintura ri de nós, ou a assassinamos. Há um pouco disso no dilema do próprio Frenhofer: entre uma ontológica derrisão e uma promessa de morte. Loucura da dúvida, consciência dilacerada. (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 50)

(Enquanto Bergson nos traz a Consciência e a nomeia Duração, Didi-Huberman a rasga, a dilacera a partir de “A obra-prima desconhecida” de Balzac.)

Defendemos (nos parece), nós e Didi-Huberman, o direito à epifania. Enquanto São Paulo nos anuncia “um face a face” para o que hoje “vemos em parte”, temos o encontro de Frenhofer com o seu “não sei quê”, o “pezinho delicioso” – única parte figurativa e reconhecida por Porbus e Poussin do quadro –, ou mesmo o “Nada, nada!” da sua pintura/Catherine Lescault desaparecida; a pintura que “tem muito de mim” de Basil Hallwarth; o pacto verbal para que “o quadro envelhecesse em seu lugar” de Dorian; a revelação no final da leitura em agosto de 2010 do Objeto de pesquisa por nossa autora... Esses momentos nos aproximam, de maneira abrupta e cortante, daquilo que Wilde “captou” em Aristóteles, apropriou-se, e transformou na sua estética, no seu “fazer teórico”: “a energia da vida”.

(Vale salientar que consideramos Frenhofer como cego para os seus contemporâneos Porbus e Poussin por não enxergar o seu “muro de pintura” no quadro, mas ao mesmo tempo visionário, por “antecipar” o que seria realizado quase um século depois na arte moderna por artistas tais como Polock, Riompele, entre outros. Ou feito Jorge Luis Borges em “Kafka e seus precursores” quando afirma que, de maneira “às avessas”, Zenão, Han Yu, Kiekegaard, Browning, Léon Bloy e lorde Dunsany “prefiguram” o escritor judeu-tcheco por vir, porque “cada escritor cria seus precursores” (BORGES, (1951 in) 1989).)

Sigamos Didi-Huberman em mais um “mergulho em abismo” em outro filósofo (também) francês, Jacques Derrida (1930-2004).

Derrida: “O hímen, consumação dos diferentes, continuidade e confusão do coito, casamento, confunde-se com aquilo de que parece derivar: o hímen como écran protetor, cofre da virgindade, parede vaginal, véu muito fino e invisível que, diante do útero, mantém-se entre o dentro e o fora da mulher, entre o desejo e a realização, por conseguinte. Ele não é nem o desejo nem o prazer, mas entre os dois. Nem o futuro nem o presente, mas entre os dois. É o hímen que o desejo sonha penetrar, perfurar numa violência que é (ao mesmo tempo e entre) o amor e o assassínio”. (DERRIDA apud DIDI- HUBERMAN, 2012, p. 76)

(Entre o desejo e a realização, nem o futuro nem o presente, mas entre os dois: o “interstício” da “prefiguração” na ficção de Wilde e do “preenchimento” na narrativa histórica posterior do cárcere de Reading; a “anunciação” no conto de Balzac do que será “realizado” no final por Frenhofer e “encarnado” no “fazer teórico” de Didi-Huberman...)

Perfazer a pintura, fazê-la ir até o fim. Isto pôde significar antes de tudo algo como sua implicação no ideal: pintura adequada à sua ideia, a seu projeto, a seu dispositivo, mesmo a seu algoritmo. Seria ali uma perfeição, digamos, platônica ou, diversamente, pitagórica. Houve outra, não menos mítica, desta feita ovidiana, pode-se dizer, e que supunha a perfeição da pintura como o acontecimento de sua metamorfose: como se ela fosse requisitada a se tornar o que representava, a se per-fazer em corpo. (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 105)

Forma e conteúdo convergentes, alma e corpo congruentes. Esta é a proposta de Balzac em “A obra-prima desconhecida”. Este é o “fazer teórico”, que é um “fazer fazendo” de Georges Didi-Huberman em A pintura encarnada. Esta é a “carcaça” de O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, que analisamos e apreendemos até a última gota de seu conhecimento.

− [...] É assim, e não é assim. O que falta? Um nada, mas esse nada é tudo. Detendes a aparência da vida, mas não expressais seu excesso que transborda, aquele não sei quê que é talvez a alma e que paira nebulosamente sobre o invólucro; enfim, aquela flor de vida que surpreenderam Ticiano e Rafael. (BALZAC apud DIDI-HUBERMAN, (1837 in) 2012, p. 157)