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Com a tarefa de explicitar a articulação em torno do referencial punk na cidade do Rio de Janeiro, foi publicado em 1985 pela Jorge Zahar Editora o livro “Movimento Punk na Cidade: invasão dos bandos sub”100, de autoria de Janice Caiafa Pereira e Silva, resultante da dissertação de Mestrado homônima, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1985.

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Ibidem, p. 18. 100

A referida pesquisa valeu-se de um amplo empreendimento etnográfico, desenvolvido ao longo de 19 meses entre 1982 e 1983, abordagem esta que foi situada pela autora da seguinte forma:

E é assim que gostaria de situar meu trabalho no campo das pesquisas em antropologia: como explorando, sobretudo, essa especificidade do trabalho antropológico em que o campo é a oportunidade de conhecer de dentro uma prática social concreta, estudar um grupo a partir de uma experiência como ele, participar dos momentos de atualização de seu funcionamento.101

Ressaltando que:

A situação do antropólogo estudando em sua sociedade coloca a questão da distância cultural, pois que ai, supostamente a familiaridade com os padrões culturais em jogo impediria o estranhamento necessário a uma pesquisa eficiente e isenta.102

Ademais, para complementar sua etnografia, Janice Caiafa valeu- se de trechos de fanzines103 do punk carioca naquele contexto. Mesmo

101

Ibidem, p. 21. 102

Ibidem, loc. cit. 103

Fanzine trata-se de uma palavra com origem no idioma inglês, em que Fan significa fã, e zine, é uma abreviação utilizada para designar a palavra magazine ou revista, de maneira simplificada seria a revista do fã. Os fanzines por vezes tenha ido além desta definição inicial de revista do fã, embora se tratando de uma publicação amadora, que em geral não apresenta fins lucrativos e de pequena tiragem em função de seu modo de produção artesanal. O fanzine não costuma apresentar periodicidade regular, pois depende de aspectos como disponibilidade de tempo e dinheiro das pessoas que mantém o projeto. Em seu interior os fanzines caracterizam-se pela linguagem direta em seus textos e pelo uso indiscriminado de ilustrações, constituindo por sua vez uma forma de livre expressão e difusão de ideias, e recorrentemente acabam funcionando como uma espécie de termômetro do clima vivido entre estes, devido ao fato dos fanzines apresentarem papel de destaque na reelaboração dos princípios éticos e morais entre estes, graças a sua linguagem franca e aberta. Ainda a respeito da temática fanzine segundo Ana Camilla Negri, o primeiro fanzine produzido no mundo foi o The Comet, feito por Roy Palmer, nos Estados Unidos, em maio de 1930. Já no Brasil o pioneirismo é de Edson Rontani, que em 1965, como homenagem ao desenhista de Flash Gordon resolveu fundar o Ficção, com o propósito de editar um boletim para abordar quadrinhos

diante desse amplo aparato metodológico, a pesquisadora procurou explicitar – em seu capítulo introdutório – que existia uma incapacidade de classificar o punk através de padrões fechados, ponderando que, quando se tentava capturar o punk, ele aparecia na ausência, assemelhando-se a um vulto “que passava, num risco impressionista, e acabamos por filmar o espaço entre eles”104. Por conseguinte, essa dificuldade em compreender aquilo que seria o punk implicou na ótica dada ao seu trabalho, pois passou a levar em consideração que a potência do grupo era “surgir do nada, ou de um breu tão profundo que a escuridão os dissimula pelos contornos dos becos. Na penumbra, a distância das negociações mais óbvias, seu aparecimento resplende [...] uma luz bem mais intensa”105. Dessa forma, a autora buscou justificar a recusa em priorizar elementos de homogeneidade e padronização nos sujeitos que partilhavam dos referenciais punk, uma vez que esse tipo de empreendimento determinista não se tornava exequível.

Assim, a pesquisadora visualizou seu trabalho circunscrito de tal forma diante dos demais sobre a temática da juventude:

Isso me localizou, na literatura sociológica, entre as pesquisas sobre as gangues e os guetos, e sobre o fenômeno da delinquência juvenil. Embora os punks não sejam delinquentes "típicos" segundo as classificações, incorrem pelo menos num ''delito de status" [...] esse clima de transgressão e atmosfera entre os punks, esse abuso, esse excesso para sua idade e sua classe. E ainda o

e reunir os amantes dessa arte. cf. NEGRI, Ana Carolina: Quarenta anos de fanzine no Brasil: o pioneirismo de Edson Rontani. In: V ENCONTRO DOS NÚCLEOS DE PESQUISA DA INTERCOM, 2005, São Paulo, Anais, São Paulo, USP, 2005, p. 1 - 12 Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R0469-1.pdf> Acesso em: 05 jun. 2008.

104

CAIAFA, Janice. 1985b, p. 17. 105

que as pesquisas em sociológicas nos contam sobre a cidade.106

Tais postulados claramente indicam certo distanciamento da pesquisadora para com tendências funcionalistas e/ou estruturalizantes de investigação social, que caracterizavam o jovem como “sujeito/problema”. Portanto, o caminho seguido por Janice Caiafa foi procurar decodificar as práticas e linguagens daqueles que se identificavam enquanto punks, buscando, a partir delas, desvelar a pluralidade na qual eram compreendidas pelos diversos sujeitos, optando por construir uma teia narrativa capaz de manter o aspecto de caderno de campo, primando pela exposição cronológica de seus contatos com os punks, a fim de que as descobertas realizadas pela pesquisadora no decurso da pesquisa também sirvam para pouco a pouco inserir o leitor no universo punk. Ademais, em conformidade a essa intencionalidade, paulatinamente vão sendo apresentados alguns aspectos das práticas culturais dos sujeitos punks, com atenção especial para a dança, a música, a estética e a gestualidade.

Assim, os capítulos ficaram divididos da seguinte forma: (I-“sem título”; II – Introdução; III – Esta Noite no Dancy; IV – O Rigor Noturno dos Encontros; V – Ódios às Tevês; VI – À Semiluz do Sub: Primeiro Segredo; VII – A Força de uma Esquiva; VIII – Duas Festas ou “O Que se Passou?”; IX – Ao Longo da Jornada; X – Numa Esquina Qualquer; XI – Nômades e Vagabundos; XII – Na Pista do Movimento; XIII – Isso Não É uma Suástica; Uma Estratégia Fatal; Guerra Pura e Paz Artifícial; XIV – Tempo: Ritmo, Experimentação; XV – A Mina Punk; XVI – O Fim; XVII – O movimento Hard- Core (M H C); XVIII – Heavy-Metal e Headbanger).

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A leitura de que o punk escapava a qualquer tipo de captura, em complementariedade com a estrutura narrativa presente no texto, tornou ainda mais evidente sua negação ao funcionalismo – modo de proposição teórica recorrentemente utilizada em estudos acerca da juventude a época107 – e por consequência ao estruturalismo108. Assim, em determinados momentos de sua investigação, é amparada por elementos de orientação pós-estruturalista109. Tais proposições em especial são evidenciadas no capítulo intitulado “Isto não é uma suástica” em que é traçado um paralelo com a obra do filósofo francês Michel Foucault “Isto não é um cachimbo”110, com o objetivo de demonstrar que a suástica da forma como era utilizada pelos punks cariocas apresenta significado distinto ao seu significante, ou seja, não representava um pensamento apologético ao nazismo, mas sim o contrário, significava negação ao pensamento nazista. A autora justifica tal prática destacando que o motivo da apropriação da suástica pelos punks seria uma forma de demarcar o território do grupo, pois a suástica era um elemento tão pesado, com herança tão marcante, que seria impossível de ser incorporado pelo mercado da moda, tal como ocorreu com as roupas dos hippies. Portanto, o

107

Cf. ABRAMO, Helena. op. cit. 108

Corrente epistemológica fundamentada na sobreposição das estruturas aos conteúdos objetivos. Desse modo, as estruturas possuem função determinante sobre as ações dos sujeitos. Assim, o gerativismo se estabelecia enquanto uma exigência explícita da corrente. Cf. DOSSE, François. História do Estruturalismo: o campo de signo – 1945/1966. v. 1. Bauru/SP: EDUSC, 2007; DOSSE, François. História do Estruturalismo: o canto do cisne, de 1967 a nossos dias. v. 2. Bauru/SP: EDUSC, 2007.

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O pós-estruturalismo se apresenta como uma concepção teórica que tal como o estruturalismo vislumbra a existência de estruturas que sobrepõe às ações objetivas, determinado, inclusive, as ações dos sujeitos. No entanto, para os pós-estruturalistas essas estruturas não se apresentam de forma rígida, passando por constante processo de redefinição. Em meio a essa corrente filosófica se destacaram os estudos de Jacques Derrida e Michel Foucault. Acerca do pós-estruturalismo. Cf. VASCONCELOS, José Antônio. A história sitiada. In: ______. Quem tem medo de teoria? A ameaça do pós- modernismo na historiografia americana. São Paulo: Annablume, 2005. p. 75- 152 110

uso da suástica tinha o efeito de estabelecer uma violência visual, com o objetivo de agredir a sociedade simbolicamente, mas que também defendesse a apropriação de seus referenciais pelo mercado.

Seguindo a mesma lógica procurou enquadrar o Hard Core como uma vertente musical que surgiu justamente com a finalidade de ser inassimilável. Pois, “o hard-core é como a suástica: sua violência é o que o torna inassimilável e, portanto o salva e ao mesmo tempo o aproxima da absoluta autodestruição. Um pouco mais e é o fim”111.

Esta aproximação teórica de Janice Caiafa para com tendências pós-estruturalistas – vertente teórica que ainda era embrionária no Brasil – talvez possa ser explicada pelo fato de possuir graduação em Psicologia, campo do conhecimento que teve contato prévio com as obras de autores como Gilles Deleuze e Felix Guattari, que por sua vez foram recorrentemente citados ao longo da referida obra.

Destarte, o modo como foi conduzida a narrativa que privilegiou a cronologia das ações cotidianas dos punks, bem como a inexistência de um capítulo de orientação puramente teórico/metodológico dificulta a efetiva compreensão do problema central do trabalho, embora se possa inferir que este seria: Quais as práticas culturais são compartilhadas em torno do referencial punk na cidade do Rio de Janeiro?

Nesse sentido, a obra “Movimento Punk na Cidade: invasão dos bandos sub” embora seja um trabalho produzido na área da Antropologia Social, sua narrativa da História do punk no Rio de Janeiro, ainda que caracterizada pela curtíssima duração, e em última instância, dispõe de elementos que permitem estabelecer uma relação com o saber histórico difundido a partir dos postulados teóricos da História Cultural devido ao

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fato de contemplar um saber diacrítico que opera em escala reduzida, explorando novos sujeitos e objetos. Por outro lado, o referido trabalho, ainda que em uma proporção menor à encontrada no trabalho pioneiro de Antônio Bivar, prioriza a articulação em torno do Rock n’ Roll, quando em suas primeiras páginas faz uma breve e simplória abordagem histórica da emergência do punk no contexto global. Nessa análise ao privilegiar o referido gênero musical, acabou em última instância valorizando alguns personagens em torno da produção musical, indiretamente transmitindo a ideia de “pioneiros do punk”, e consequentemente renegando os demais sujeitos e práticas a um segundo patamar. Aproximando assim, das tradições historiográficas correntes no século XIX, que procuravam valorizar os grandes sujeitos em detrimentos de outros.

Em contrapartida a essa leitura que eventualmente possa ser feita nas entrelinhas, é primordial destacar que Janice Caiafa, ao longo de todo seu texto, procura deixar de forma explicita que o Rock n’ Roll – em especial articulado ao punk – atua como um aglutinador democrático e não como algo que cria uma distinção entre produtores e receptores, em que a dinâmica empreendida pelo punk sobre o Rock n’ Roll, lhe subverte, transforma-o em algo novo, como posto abaixo:

Assim, em seu percurso, o rock é quase sem origem, ele funciona mais como um hino mesmo dos jovens, música do planeta Terra. Com isso o rock tem, de princípio, uma função política: ao impor essa estranheza em qualquer lugar. Em vários momentos de sua passagem, contudo, uma situação de comércio e capitalização diluiu essa potência, banalizando-o, fazendo dele mera mercadoria vendável, moda, onda. É o punk que resgata a força política do rock ao fazer (imediatamente, diretamente) um instrumento de intervenção – na forma da música, nas letras, na atitude. Embora os punks não façam rock – "punk-rock" é ligeiramente inadequado, e é talvez no

interstício dessa inadequação que a questão do Movimento Punk se desdobra mais vivamente.112

Questões como esta, compõe um rico quadro que garantiu ineditismo e destaque à pesquisa de Janice Caiafa, que, articulado ao alcance nacional da editora (Jorge Zahar), garantiu que a obra se tornasse uma das principais fontes de consulta nos novos trabalhos que surgiram acerca da temática punk no Brasil, enaltecendo a capacidade da autora em construir um método analítico específico para compreensão dos punks cariocas, em contraposição às tendências de sua época, que priorizavam os estudos dos jovens enviesados pelo estigma da delinquência. Destarte, esses postulados conjugados com a análise empreendida ao longo desse texto elucidam a atualidade do trabalho “Movimento Punk na Cidade: invasão dos bandos sub”.

***

Após a publicação do trabalho de Janice Caiafa em 1985, de certo modo, houve um influxo na produção de trabalhos relativos ao punk no Brasil, somente sendo superado na década seguinte. Em primeira instância, esse fenômeno pode ser compreendido como um processo “natural” da ausência de “novidades” relativas ao tema que fossem capazes de atender o interesse do público – fator que havia proporcionado a confecção e editoração dos primeiros trabalhos por editoras de abrangência nacional113.

112

Ibidem, p. 11. 113

No ambiente das Universidades, é importante relembrar que o baixo volume de trabalhos era conjuntural, não se limitando apenas ao punk, e sim contingencial de todo universo juvenil. Em que, nessa década dava-se pouca importância a estes temas – ressalva feita apenas a produção do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. De maneira geral, tais temas eram compreendidos pela academia brasileira como temas menores.

A despeito disso, no campo da disciplina História, aparentemente dois fatores limitavam ainda mais a produção de saber concernente ao punk. O primeiro remete à constatação – já enunciada – de Ronaldo Vainfas, que destacou que os temas com acepção cultural geralmente eram rechaçados entre os historiadores daquele período, sendo que eram vistos, por grande parte dos pares, como temáticas reacionárias. O segundo fator, mas não menos importante, deve-se a certa resistência em construir material com proximidade temporal ao tempo vivido pelo pesquisador, mesmo diante do significativo aumento de teses e dissertações situadas no período republicano, e até mesmo temas relativos ao tempo presente como o “movimento de 64”. Hegemonicamente ainda se valorizava o maior afastamento cronológico, pois ele atuava como elemento de “respaldo científico”, por sua vez, praticamente inibindo temas considerados de temporalidade imediata como o punk. Portanto, acabaram se destacando na década de 1980 os trabalhos que estavam situados em campos do conhecimento que não apresentavam limitadores temporais, como o Jornalismo e a Antropologia, em contrapartida, nessa década não foi possível evidenciar nenhum trabalho com densa análise histórica.

Contudo, foi possível observar ricas análises qualitativas a respeito das relações estabelecidas pelos punks naquele período, cuja síntese da apreciação da época fornece elementos de aproximação entre os trabalhos, evidenciando em nesses pontos de observação em comum, como: a violência cotidiana transbordada em prática; questões sobre genêro e sexualidade na “cena punk”; a legitimidade do punk nacional.

1. 2 – A violência cotidiana transbordada em prática: passos da Guerra