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CARMEN MIRANDA E O SAMBA: A “Embaixatriz do Samba” e a Identidade

É impossível falar da figura de Carmen Miranda como intérprete dos nossos sambas e marchinhas, sem adentrar na história da origem do Samba, que de música marginalizada, de negro e do morro, na década de 1930 (anos em que Carmen também firmou sua carreira), passa a ser visto como parte da nossa identidade nacional. Carmen Miranda, a cantora, começa a surgir no final da década de 1920 e início da década de 1930. Sua primeira aparição pública acontece em 1929, em um festival beneficente, coordenado por Josué de Barros e patrocinado por um político, no Instituto Nacional de Música. Começava também a Era Vargas. O governo, ao mesmo tempo, que demonstrava simpatia pela arte dita culta, não ignorava as manifestações artísticas, aquelas oriundas das camadas mais populares, pois politicamente o governo tinha por objetivo identificar-se com todos os segmentos da sociedade, formados por grupos distintos e tinha como princípio apoiar e reconhecer todos os tipos de manifestações culturais.

No início do século, o Rio de Janeiro tinha uma população de um milhão de habitantes. Entre eles, os recém-chegados: os imigrantes vindos de outros países, dos lugares mais distantes e diferentes. Os europeus chegaram com o intuito de substituir a mão-de-obra escrava negra, na lavoura. Outros queriam ficar nos grandes centros. E vinha também o imigrante interno, os brasileiros nordestinos que migravam para o sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente) em busca de emprego, em busca de melhor sorte. Estrangeiros, brancos e negros dividiam o espaço urbano do Rio e a eles se juntavam os negros, escravos já libertos, que há umas três décadas era quase metade da população.

Era tempos de grandes mudanças urbanas. Uma grande reforma na região central do Rio de Janeiro estava sendo empreendida pelo governo do então prefeito Pereira Passos. Ali orbitavam e habitavam os recém–chegados sem ocupação definida e viviam em condições sub-humanas, em cortiços, na zona portuária. Era um reordenamento da paisagem urbana com abertura de grandes avenidas seguindo o modelo dos boulevards parisienses. Essa nova organização da paisagem urbana,

também tinha a pretensão de reorganizar a sociedade. O Centro foi modernizado e não havia lugar para seus antigos moradores, que eram habitantes indesejados nessa nova ordem de ruas mais largas e pavimentadas, não comportando seus antigos moradores, que sem opção, subiram os morros, porque não combinavam com os novos tempos. Segundo Tânia da Costa Garcia ”tudo o que pudesse revelar o “atraso” deveria ser banido.”(GARCIA, 2004, p. 29). Tudo tinha que estar em harmonia com essa nova civilização, pois para a nação republicana, o Rio de Janeiro seria o modelo, o cartão postal do Brasil. Mas, Pereira Passos não conseguiu garantir que tudo teria essa nova fachada de modernidade. Algo resistia no velho centro. A Lapa continuou abrigando a gente de baixa renda e a ser a zona boêmia do Rio, com cabarés luxuosos e pensões que eram prostíbulos e, bastante perigosa, com malandros e cafetões circulando no lugar. Carmen Miranda viveu sua infância na Lapa, morando com a família num quarto de pensão, custeada pelo ganho do pai, como barbeiro. Com 16 anos, a família muda para a Rua do Comércio, onde abriu uma hospedaria que também servia refeições.

Com o desenvolvimento urbano, crescia a indústria, o comércio, o setor de serviços e como também a indústria do entretenimento. Companhias de teatro e espetáculos de óperas que se apresentavam na cidade foram se fixando e descobrindo que havia um potencial no mercado do Rio de Janeiro. O Teatro de Revista começa a fazer sucesso e os empresários, atentos ao sucesso e aos lucros, oferecem ingressos a baixos preços e democratizam o acesso ao teatro, de um número maior de pessoas. O cinema também começava a ser um bom divertimento, tanto para investidores, quanto para o público, pois era uma opção mais barata de lazer.

Tendo esse mundo do entretenimento tão próximo, Carmen Miranda, como tantas outras meninas da sua idade, descobria a cidade além dos arredores da sua vizinhança e nessa época começam a circular as primeiras revistas que estampavam a vida de glamour dos atores e atrizes do cinema americano, e todos esperavam pelo

happy end das histórias de amor, no escurinho do cinema. E Carmen queria ser uma

dessas artistas. Tanto é que em 1926, foi notícia numa revista especializada em cinema, tendo uma foto publicada na Revista Seleta, como uma figurante do filme “A esposa do solteiro.” O nome dela não constou nos créditos, mas a legenda da foto, do crítico Pedro Lima dizia assim: “uma extra de nossa filmagem... E depois haverá quem duvide se podemos ou não ter estrelas.” (MENDONÇA, 1999, p.25). Parecia uma premonição ter sido essa observação escrita por Pedro Lima, que no futuro escreveria muitas críticas sobre os filmes de Carmen em Hollywood.

Na década de 1920, se fosse nos dias atuais, o Rio de Janeiro seria a cidade do

show-business. Era a cidade espetáculo. “O teatro de Revista, o cinema, o rádio e a

imprensa escrita acenavam como oportunidade para aqueles que queriam se aventurar numa profissão que exigiu simplesmente “vocação.” (GARCIA, 2004, p.31). Em 1929, o samba já era um ritmo definido, depois que o primeiro samba foi registrado em gravação, sendo atribuído sua autoria a Donga, que era frequentador da casa da Tia Ciata (sobre ela falamos mais adiante), na Praça Onze e sobre isto comenta Hermano Vianna, no seu livro “O Mistério do Samba”:

Foi numa das noitadas musicais na casa dessa tia baiana que foi composto, coletivamente, o samba Pelo Telefone, que acabou entrando para a história como o primeiro samba registrado (como composição de Donga – um golpe que rendeu muitas desconfianças e até inimizades entre os sambistas pioneiros). (VIANNA, 2012, p.112)

Sobre isso, Tânia da Costa Garcia também dá conta, quanto à autoria do primeiro samba ser de Donga: “O primeiro samba gravado Pelo Telefone, cuja autoria é atribuída a Donga, filho da baiana Tia Amélia, teria surgido numa dessas rodas de pagode – portanto de autoria coletiva – na casa da Tia Ciata.” (GARCIA, 2004, p. 125). Essa autoria de Pelo telefone gera polêmica até hoje e vários autores questionam esse fato, mas historicamente foi creditado a Donga, o primeiro samba gravado. José Ramos Tinhorão também cita esse fato:

Foi quando, na Rua Visconde de Itaúna, na casa de “Tia Ciata, uma das baianas pioneiras dos velhos ranchos da Saúde (e fundadora, ela mesma, do Rancho Rosa Branca), um grupo de compositores semialfabetizados elaborou um arranjo musical com temas urbanos e sertanejos que, ao ser lançado para o carnaval de l917, acabou se constituindo no grande achado musical do samba carioca”. (apud. SIQUEIRA, 2013, p.143).

Este texto faz referência a Pelo Telefone, de Donga (Ernesto Santos) cujo crédito, o tirou do anonimato. A música foi registrada como “samba carnavalesco” em 1916, para o carnaval de 1917. A casa da Tia Ciata era localizada na Praça Onze, que era conhecida como o coração da Pequena África. O que cantavam nas casas das tias baianas, na casa da Tia Ciata, a mais famosa, moradora do nº 117, da rua Visconde de Itaúna, eram músicas que evocam o Nordeste, as festas de Natal e de Reis da Bahia -

de onde vieram a maioria delas - sendo inseridos improvisos feitos no momento. Não se caracterizava ainda o samba, como hoje o conhecemos: “Eram colchas de retalhos de motivos folclóricos.“ (FRANCESCHI, 2010, p.31). Num desses improvisos, em 1916, surge uma dessas colchas musicadas, sendo batizadas de Pelo Telefone, com destaque para o gênero samba. Foi registrada somente a música, na Biblioteca Nacional, por Ernesto Maria dos Santos, o Donga. Sobre isso, comenta Humberto M. Franceschi, no seu livro Samba de Sambar do Estácio:

A primeira e a terceira das três gravações desta colcha de retalhos, fixada na cera pela Casa Edison, todas com o título de “Pelo Telefone”, foram instrumentais, não continham letra. Só a segunda, interpretada por Baiano, teve letra, a mesma do título. A mesma do registro da Biblioteca Nacional. Logo após seu lançamento, surgiu contestação de autoria feita na casa da Tia Ciata. A contestação trazia o nome de “Roceiro’, com a seguinte estrofe:

Pelo telefone A minha boa gente Mandou me avisar Que meu bom arranjo Era oferecido

Para se cantar: Aí, aí, aí

Leva a mão na consciência, meu bem Aí, aí, aí

Mas para que tanta presença, meu bem? Oh que cara dura

De dizer nas rodas Que este arranjo é teu! É do bom Hilário E da velha Ciata Que o Sinhô escreveu. Tomara que tu apanhes Para não tornar a fazer isso Escrever o que é dos outros Sem olhar o compromisso. (FRANCESCHI, 2010, p. 32-3)

Dessa forma, “ Donga, o suposto compositor dessa colcha de retalhos musicais, calou e deixou que se consolidasse o fato como sendo daquele carnaval de 1916. Até hoje ecoa como tese acadêmica. De samba, como gênero, não tem nada.” (FRANCESCHI, 2010, p.33)

Mesmo com esse registro do samba, já como estilo musical, no mesmo ano da sua primeira aparição num festival (1929), Carmen Miranda apresentava-se num programa de rádio de modinhas brasileiras. O rádio começava a dar os primeiros passos e já era uma realidade no Brasil. E tinha sido inaugurado no Governo Vargas com um perfil educativo e ainda não comercial. O controle e fiscalização da programação das emissoras cabiam ao Estado. Não há registro do que Carmen cantou, mas deve ter sido uma modinha e não um samba, pois não era comum uma moça branca cantar samba e também a modinha, embora classificada como popular, era um gênero bem apreciado desde o século XIX e aceito nos setores das chamadas classes sociais mais cultas e, porisso, tocada nas rádios educadoras.

Muitos autores que escreveram sobre a origem do samba, começam com a tentativa de deciframento da palavra “samba.” Vamos falar um pouco sobre isso, mas vamos procurar enfocar aqui o “desenegrecimnto” ou o “branqueamento” do samba que começa a se configurar no Governo Vargas e o surgimento de compositores não ligados ao morro, brancos, alguns de famílias abastardas como Ary Barroso, que era de Ubá- Minas Gerais e filho de comerciante. Joubert de Carvalho que era médico cardiologista, Aloysio de Oliveira, advogado, Noel Rosa que também era estudante de Medicina e intérpretes como Carmen Miranda, que não era cabrocha do morro, era branca e europeia. Veremos também como o “samba”, coisa de preto, de malandro do morro, música maldita, marginal, ligado ao batuque da macumba vai assumindo o papel de símbolo nacional. Os músicos negros sofriam repressão severa da polícia, bastava olhar a mão do sujeito e notar os calos das cordas do violão, a pergunta era de praxe: você toca violão? Se afirmativo, estava preso. O samba era proibido de ser tocado e onde tinha uma aglomeração de sambistas, a polícia chegava. Isto até o Governo Vargas. No carnaval era liberado, porque se tocava marchinhas, maxixes, lundus e outros ritmos. O refúgio dos sambistas era a casa das Tias, Como Tia Ciata (Hilária Batista de Oliveira, nascida em Salvador em 1854, chegando ao Rio de Janeiro com 22 anos, a mais famosa delas), a Tia Amélia (mãe do Donga), Tia Mônica e tantas outras. Ambiente respeitado pela polícia, na casa da Tia Ciata se comemorava a Festa dos Orixás, em seu endereço na Praça Onze, também chamada de Pequena África. Depois da cerimônia religiosa, frequentemente antecedida pela missa, se formava o pagode. (MOURA, R, Tia Ciata e

A Pequena África no Rio de Janeiro, 1983, apud GARCIA, 2004, p.122).

Já havia o sincretismo religioso, porque os negros não podiam celebrar seus rituais africanos livremente. As “tias” baianas aglutinavam os baianos que tinham

migrado para o Rio, assim como também negros cariocas e brancos que tinham a mesma situação sócio-econômica e partilhavam a mesma crença. A missa acontecia antes da Festa dos Orixás e logo em seguida era formada a roda de samba com a maioria dos que participavam do ritual religioso. O ritmo do samba era tão ligado aos tambores da macumba e a cachaça, que muitos dos presentes ficavam tomados, com o “corpo aberto” (numa expressão usada nos rituais afros) durante o samba e, muitos deles recebiam “entidades” como comprovamos na letra do samba “Samba de Nêgo.” composto por Pixinguinha e gravado por Francisco Alves, para o carnaval de 1928:

Samba de nêgo

Não se pode frequentar Só tem cachaça Pra gente se embriagar Eu fui num samba Em casa de mãe Inez No melhor da festa Fomos todos pro xadrez No fim do samba Minha caboca chegou Virei os óio

E meu santo me pegou Caí de lado

Virei de frente, virei de banda Meu santo disse

Que eu vinha lá de Aruanda.2

Assim a casa das “tias” era um lugar respeitado pela polícia, porque acontecia o ritual religioso da missa, mas depois todos iam para o quintal, onde acontecia o ritual afro, o batuque e as rodas de samba. Alguns músicos negros já eram famosos e respeitados, como era o caso de Pixinguinha, Donga e João Pernambuco, que juntos formavam o Grupo Caxangá e convidados para tocarem na sala de espera do Cine Palais (prática muito comum na época e Ernesto Nazareth era um desses músicos que tocavam no hall dos cinemas antes e durante os intervalos das seções), escolheram oito integrantes do seu grupo, que tocavam flauta, cavaquinho, bandolim, violão, ganzá e pandeiro e, daí nasceu os Oito Batutas, batizados com esse nome por Isaac Frankel,

2. Segundo Cecília Meireles no seu ensaio Batuque, Samba e Macumba – Estudo de Gesto e de Ritmo

1926-1934, Ed. Funarte, 1983, “Se a umbanda é o terreiro físico, onde se desenvolve a macumba, um outro terreiro existe, na imaginação do negro, em plano astral, correspondente àquele, e onde repercute o bem e o mal que nele se pratica (...). É o terreiro da aruanda (p. 66).

dono do Cine Palais. E segundo Hermano Vianna, no seu livro O Mistério do Samba (2012, p.115): “seu repertório era formado por maxixes, lundus, canções sertanejas, corta-jacas, batuques, cateretês (o samba ainda não aparecia como estilo musical distinto).” Segundo ele, Isaac Frankel cometeu uma ousadia contratando uma banda para tocar num dos cinemas mais refinados do centro do Rio, em se tratando de um grupo integrado, na sua maioria por negros. Isso gerou polêmica e foi um verdadeiro escândalo, negros tocando para os ouvidos aristocratas que frequentavam os cinemas. Mas, eles conquistaram o Rio de Janeiro com essas apresentações no ano de 1919. Em 1922, isso ainda era lembrado na imprensa. Na Gazeta de Notícias de 22 de janeiro de 1922, o jornalista Benjamin Costallat relembra o fato em artigo: “Foi um verdadeiro escândalo, quando, há quatro anos, o “Oito Batutas” apareceram. Eram músicos brasileiros que vinham cantar coisas brasileiras.” E finaliza: “Segundo os descontentes, era uma desmoralização para o Brasil ter na principal artéria de sua capital uma orquestra de negros.” (citado em Silva & Oliveira Filho, 1979, p.44-5, apud VIANNA, 2012, p.115).

Para ser conhecido hoje, mundialmente, como a “música do Brasil”, com algumas publicações a seu respeito, o Samba “ só não conseguiu fazer com que seus historiadores chegassem a um consenso quanto às suas origens, ao seu nascimento, ao seu desenvolvimento.” (SIQUEIRA, 2012, p.15). Mário de Andrade até ensaiou um estudo desse ritmo, mas não se aprofundou, deixando de fazer um estudo definitivo sobre a origem e sua representatividade no processo histórico cultural da música popular brasileira. Com certeza, essa falta de interesse se deu ao fato do Samba estar ligado às práticas oriundas da cultura negra, da cultura afro. E o negro, talvez seja, um dos grandes problemas para que o Brasil viesse a se consolidar como Estado. Isso chega a ser um paradoxo, pois no processo de formação do Estado, nos fins do século XIX e, no contexto da década de 1930, quando se firma como identidade nacional e ao mesmo tempo dar-se o “desenegrecimento” ideológico do Samba, o negro que fornece todos os elementos culturais ao Estado, dando subsídios para a consolidação e construção da identidade nacional, lhe é negado a paternidade desses elementos culturais. Esses estudos foram adiados, mas hoje, na área das Ciências Humanas, e não só no campo da História, há um interesse acadêmico em desvendar o “mistério do samba”, com destaque às pertinências com suas relações com a política e a construção da brasilidade, sendo relevantes para o entendimento da nossa história cultural.

Passamos a uma pergunta que é essencial respondê-la para que nosso estudo evolua até a Era Vargas, que é um dos interesses do nosso trabalho, pois é o período que surge, nos fins dos anos de 1920 e toda década de 1930, o fenômeno Carmen Miranda, até 1939, quando parte para os Estados Unidos. Afinal o que é o samba? De onde veio?