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NOITADA DE VIOLÃO: O encontro entre intelectuais e sambistas

De 1916, quando é registrado em mídia e reconhecido como o gênero musical, o primeiro samba Pelo Telefone, atribuído sua autoria a Donga, avançamos para dez anos, depois de 1926, quando acontece no Rio de Janeiro, um encontro bastante heterogêneo e que para o antropólogo Hermano Vianna no seu livro O Mistério do

Samba, foi essencial para que o samba deixasse de ser coisa de negro, “samba de nêgo”

como diz a letra do samba gravado por Carmen Miranda, em 1929, composição de Ary Barroso, Marques Pinto e Luiz Peixoto, para frequentar os salões da chamada burguesia branca e ser a música da identidade nacional:

O Nêgo no Samba Samba de nêgo quebra os quadris Samba de nêgo tem para ti

Samba de nêgo, ôi, ôi, sempre na ponta

Samba de nêgo, meu bem, me deixa tonta (bis)

No samba branco se escangaia No samba nêgo bom se espraia.

No samba branco não tem jeito, meu bem No samba nêgo nasce feito (bis)

É como se o negro já nascesse feito para o samba. Era o negro que tinha a ginga, o requebro nos quadris e o branco não tinha jeito para o samba.

No tal encontro registrado por Hermano Vianna, reuniu no Rio de Janeiro, de um lado intelectuais e do outro, a gente do samba. Era a primeira vez que Gilberto Freyre, aos 26 anos, visitava o Rio, depois de concluir seus estudos universitários nos Estados Unidos. Ele até registra esse encontro no livro Tempo Morto e outros Tempos (FREYRE, 1975, p. 189). Nesse encontro que ele nomeou de “noitada de violão”

participaram o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o jornalista e promotor Prudente de Morais Neto, Heitor Villa-Lobos, o músico e compositor clássico Luciano Gallet, os sambistas: Patrício Teixeira, Donga, e Pixinguinha, que foram eternizados com esses apelidos no universo da música popular brasileira.

O encontro reuniu dois grupos bem diferentes da sociedade brasileira naquele começo do século XX: de um lado, representantes da intelectualidade e da arte erudita, todos descendentes de tradicionais famílias brancas, incluindo Prudente de Morais Neto (um avô Presidente da República), do outro lado, músicos negros ou mestiços, oriundos das camadas menos abastadas do Rio de Janeiro. Os jovens escritores Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda, anos depois lançaram dois clássicos da literatura brasileira:

Casa grande e senzala (1933) e Raízes do Brasil (1936), respectivamente, livros

essenciais para a definição do povo brasileiro.

Junto deles, Alfredo Viana (Pixinguinha), Ernesto Joaquim Maria dos Santos (Donga) e Patrício Teixeira, nomes que definiam a música, que era também, a partir dos anos 1930 considerada aquela que existia de mais brasileiro: o samba. Foi o cordial encontro do Brasil mestiço.

Hermano Vianna destaca esse encontro como definitivo para que o samba se tornasse o símbolo da identidade nacional:

Essa “noitada de violão” pode servir como alegoria, no sentido carnavalesco da palavra, da “invenção de uma tradição, aquela do Brasil Mestiço onde a música samba ocupa lugar de destaque como elemento definidor da nacionalidade. A naturalidade do episódio não nos deve enganar: seu aspecto de fato corriqueiro foi obviamente construído como também acontece com acontecimentos narrados em mitos fundadores de todas as tradições. O fato do tal encontro não ter sido transformado em mito, e tampouco ser lembrado como algo extraordinário pelos participantes e seus biógrafos, só mostra que se acreditava realmente que uma reunião como aquela era algo banal, coisa de todo dia, indigno de um registro mais cuidadoso. (VIANNA, 2012, p.20-21).

O próprio Gilberto Freyre e outros que participaram desse encontro, escreveram sobre isso. Cada um com a sua versão. Gilberto Freyre publica o fato no seu livro já citado, chamando o encontro de “noitada de violão”, com alguma cachaça e com os brasileiríssimos Pixinguinha, Patrício e Donga. (FREYRE, 1975, p.189). Nos bastidores, muitas coisas contribuíram para que esse encontro acontecesse. A Semana de Arte Moderna já havia acontecido há quatro anos e os cariocas já começavam a carnavalizar os ensinamentos da vanguarda paulista. As reformas modernizadoras do

prefeito Pereira Passos já estavam concluídas e a modernização continuava calçada no discurso das elites políticas republicanas que tinha justificativa moral e social para essas reformas com os slogans de progresso, higiene e civilização. Na verdade, o que interessava mesmo era o conceito de higiene e a civilização capitalista, inspirada na Europa. A imagem que eles queriam exportar do Brasil era de “um país higiênico, burguês, moderno e acima de tudo, branco.” (FENERICK, 2005, p.15).

Mas, o encontro de Gilberto Freyre com Pixinguinha já deixa pistas da iniciação do processo de transformação do samba como “símbolo do negro”, para se transformar em “símbolo nacional” ou “símbolo da brasilidade”, mesmo que essa noitada boêmia foi apenas mais uma reunião de intelectuais e músicos das camadas populares, dentro da longa tradição de relações entre vários segmentos da elite brasileira (fazendeiros, políticos, aristocratas, escritores, etc) com as várias manifestações da musicalidade afro-brasileira (VIANNA, 2012), mas foi decisivo para a cultura popular e, principalmente, para o samba.

A história do samba geralmente é resumida e aceita como um ritmo que era restrito e exclusivo dos morros, favelas, sendo que tempos depois foi conquistando o gosto musical das elites que viviam distantes da cultura popular e afro-brasileira. Nos primórdios era produto do morro, marginalizado, perseguido pela polícia e se escondia nos rituais do candomblé, na casa das “Tias” baianas, onde era levemente mais aceito. Mas, foi a crescente valorização do carnaval que impulsionou o samba a ser consumido por todo o povo brasileiro e se transformou na “coisa brasileira” por excelência. Antônio Cândido faz referência “ao interesse pelas coisas brasileiras” que aflorou no coração dos brasileiros, nos revolucionários anos 1930. A citação de Antônio Cândido, no post scriptum do seu artigo “A Revolução de 1930 e a cultura”5 nos possibilita entender a história da transformação do samba em identidade nacional, em música nacional:

Aqui foram abordados alguns aspectos da vida cultural posterior a 1930, mas haveria muitos outros, relativos ao teatro, rádio, cinema, música, que escapam à minha competência. Lembro apenas que na música popular ocorreu um processo equivalente de “generalização” e “normalização”, só que a partir das esferas populares, rumo às camadas médias e superiores. Nos anos 30 e 40, por exemplo, o samba

5 Este artigo foi exposto em Porto Alegre a 10 de outubro de 1980 no painel “ O processo de 30 e suas

consequências”, parte do Simpósio sobre a revolução de 1930 no Rio Grande do Sul, organizado pela Universidade Federal daquele Estado; e foi publicado no livro do mesmo título, Porto Alegre, ERUS, 1983 e republicado da Revista Novos Estudos Cebrap nº 4 – São Paulo em abril de 1984.

e a marcha, antes praticamente confinados aos morros e subúrbios do Rio, conquistaram o país e todas as classes, tornando-se um pão-nosso quotidiano de consumo cultural. Enquanto nos anos 20 um mestre supremo como Sinhô era de atuação restrita, a partir de 1930 ganharam escala nacional homens como Noel Rosa, Ismael Silva, Almirante, Lamartine Babo, Joao da Bahiana, Nássara, João de Barro e muitos outros. Eles foram o grande estímulo para o triunfo avassalador da música popular nos anos 60, inclusive de sua interpenetração com a poesia erudita, numa quebra de barreiras que é dos fatos mais importantes da nossa cultura contemporânea e começou a se definir nos anos 30, com o interesse pelas coisas brasileiras que sucedeu ao movimento revolucionário. (CÂNDIDO, 1984, p.36).

Esta citação é esclarecedora para justificar até o “triunfo avassalador” da MPB nos anos 1960, a época dos festivais e o surgimento de grandes compositores como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto-Erasmo Carlos e outros, mas tudo começou nos anos 1930 e 1940. Mas, o que seria “as coisas brasileiras” de que cita Antônio Cândido e que tanto interesse desperta ao ponto de transformar algo marginal em símbolo nacional? O brasileiro passa a ter interesse e, mais que isso, valorizar “coisas” como o samba, a feijoada, (que também se transforma em prato nacional) e a mestiçagem, principalmente entre as raças brancas e negras. (VIANNA, 2012).

A valorização do samba como um fenômeno da música mestiça. A mestiçagem que era sinônimo de todos os males nacionais, depois de Casa Grande e Senzala (1933) aparece regenerada. Tudo isso provocou esse interesse repentino pelas “coisas brasileiras.” O Brasil diferentemente de outras sociedades capitalistas escolhe, através dos produtores dos símbolos nacionais e dos agenciadores da cultura de massa, exatamente os itens culturais produzidos no âmbito dos grupos dominados, sendo feito um grande investimento cultural que levou a identificar as “coisas brasileiras”, com as coisas da mestiçagem, notadamente as de origem afro-brasileira, sendo isso que levou a turma de “Gilberto Freyre a se encantar com a Turma do Samba (Pixinguinha, Donga, Patrício), justamente num momento tão importante para a formação de ideia de um Brasil “destapado,“ o “afloramento” de um Brasil autêntico.” (VIANNA, 2012, p.32). Duas coisas podemos destacar distintamente: a aceitação do samba e a outra, o culto do samba, alçado a símbolo da nossa brasilidade e identidade .

O Rio de Janeiro com todas as suas mudanças para se transformar no cartão- postal do Brasil, abriga todas as manifestações culturais que serão exportadas para o resto do país e assimiladas em cada Estado, juntando-se às suas tradições locais. E a

população urbana e seus intérpretes eram levados para o resto do país e promoveram uma integração nacional. Um bom exemplo disso são as músicas de carnaval, gravadas por cantores de “meio de ano”, mas que no carnaval lançavam músicas exclusivas para o reinado de momo. Lançadas geralmente no final do ano, começavam a ser divulgadas pelo rádio, chegavam às outras cidades através do disco e do cinema e, nos dias da folia, já estavam na ponta da língua da população e, então surgiam os sucessos que ficavam por muitos carnavais, como é o caso de “Taí” e “Mamãe eu quero”, ambas gravadas por Carmen Miranda, que até hoje são cantadas em todos os carnavais.

O Rio de Janeiro transforma o “samba de negro” em “samba carioca.” Aos sambistas/compositores negros ou mestiços, já nomeados como: Pixinguinha, Donga, Patrício Teixeira, Ismael Silva, Sinhô e outros, junta-se outros brancos como Noel Rosa, Joubert de Carvalho, Ary Barroso, João de Barro e começa assim o “branqueamento” do samba. A problemática da mestiçagem já era um pensamento bastante discutido pelos nossos primeiros cientistas sociais, como Silvio Romero, Joaquim Nabuco e outros, “mas estes senhores, mesmo defendendo a origem mestiça do povo brasileiro, ainda não aceitavam a contribuição do negro e do índio como positivas.”(GARCIA, 2004, p.42).

Nestas sempre consideradas “camadas inferiores” da sociedade, estariam condensadas o nosso atraso como civilização. Para a superação desse atraso era necessário um processo contínuo de “branqueamento.” Haveria um aprimoramento do branco para dar condições do negro criar a música popular, pois sozinho ele não teria condições intelectuais. Para eles, o negro poderia ter a impulsividade, sensualidade, mas só os brancos, a “raça superior”, poderia selecionar e ordenar, dando sentido a sua musicalidade. As “camadas cultas” tinham o negro como uma pedra bruta a ser lapidada, ou seja, civilizada. Essa mistura só foi aceita por ter sido submetida a esse processo. Este foi o ponto de concórdia para que a canção popular urbana fosse aceita e veiculada na mídia, também emergente, como a identidade, a representação do nacional.

Entretanto, não houve essa homogenia, no fazer da canção popular e a unidade planejada por estes agentes mediadores do poder, e esse gênero musical que representava a identidade do povo brasileiro fez emergir temas que comprometiam todo o acordo, por conta da liberdade de expressão que cada compositor tinha dos temas da sua inspiração e que mais lhes inquietavam. Então, a desordem e a desorganização marcariam a canção popular urbana. “Apresentava um outro universo simbólico, sendo ao mesmo tempo, produto e processo das representações em torno da nossa identidade nacional.” (GARCIA, 2004, p.43). Dito isto, que reflete a opinião contida no trabalho de

Tânia Garcia, nos alinhamos mais com a do estudo de Hermano Vianna, que tem sua importância na medida que nos alerta para a premissa de não se trabalhar in totum como se os universos culturais fossem diferentes e estanques. É preciso perceber os conectores e a circularidade culturais entre os diferentes extratos da sociedade.

Por outro lado, como já observou outros autores, O Mistério do Samba, de Hermano Vianna, é na sua essência um estudo sobre relações entre intelectuais e a cultura popular, quando a música perde toda a sua autonomia, sendo determinada pelos significados destas relações. O autor não se preocupou em observar, ou observou e deu pouca importância, para a música popular do período, quando poderia ter observado que o termo “samba” tinha uma série de significados, fato não destacado no seu livro, pois nota-se que rotula uniformemente toda a música produzida pelos negros cariocas. Isto o leva a cometer alguns equívocos, qual dar um papel central na elevação do samba a Pixinguinha e Donga, dois dos compositores mais versáteis e criativos da música popular que eram virtuoses em vários estilos, mas não no samba, tal qual hoje é conhecido. O estudo de Hermano Vianna é focado na década de 1920 e o termo “samba” ainda não era definido como um ritmo preciso e diferenciado do lundu, maxixe, choro, pois o termo “samba” ainda era recente e como disse Almirante, citado anteriormente, os compositores ainda tinham dificuldade de identificar o ritmo das suas criações na hora de batizá-las e registrá-las. E um dos significados do termo “samba” era a música feita por Donga e Pixinguinha, que somente neste sentido podem ser nomeados de “sambistas”. Nos anos 1930 é que o termo “samba” passou a significar um ritmo mais cadenciado, conhecido como o “samba do Estácio”. Sendo assim, “Pixinguinha e Donga estariam mais perto de ter sido derrotados neste processo do que serem alçados a símbolo do mesmo.” (FENERICK, 2005, p.36).

Rotular o talento de Pixinguinha somente como sambista é muito pouco, pois ele era um músico completo. Gostava de tocar jazz, a música americana, a música clássica, o tango ou qualquer outro gênero. Era um músico por excelência, tanto é que quando a gravadora americana RCA Victor se instalou no Brasil (1927), a sua orquestra foi contratada para acompanhar todo o seu cast, principalmente Carmen Miranda. Entre as suas criações já constavam chorinhos antológicos, lundus, maxixes, etc. Transitava entre os músicos eruditos, como Villa-Lobos, com total respeito destes. E apesar da modernização do Rio de Janeiro, que era a vitrine civilizada do Brasil, quando foram expulsos todos os habitantes dos cortiços e malocas, os habitués dos botequins e freges (bares populares), além dos vendedores ambulantes com suas barracas e carrinhos de

rua, ainda perseguia-se o seresteiro e os instrumentos populares (violão, pandeiro, cuícas), os “pés descalços” e os “sem camisas”, os macumbeiros, os curandeiros populares e até as festas da Glória e da Penha. Vale lembrar que as festas da Penha eram o termômetro para quem quisesse fazer sucesso. Se uma música fizesse sucesso na Penha, era certo que estouraria no Brasil inteiro.

Mesmo com esses dois mundos distintos, a “elite civilizada” e a “plebe atrasada” que pareciam delimitados, separados, significavam apenas um desejo, mas que um fato real. É neste mundo que nasce o Samba Moderno no Rio de Janeiro (FENERICK, 2005). As muralhas sociais estavam definidas, mas o som do violão, da cuíca e do pandeiro ecoavam pela cidade, além dessas barreiras sócio-políticas, os locais de contatos entre as diversas camadas sociais proliferam por toda cidade. Estando no Teatro Municipal, a poucas quadras se avistava os Arcos da Lapa e no entorno, o bairro da Lapa, que abrigava a boemia literária, era refúgio da malandragem boêmia (o pessoal da lira), sambistas, os luxuosos cabarés franceses, os salões, restaurantes, confeitarias, cafés e botequins. A Lapa era a boemia artística de literários e músicos, artistas plásticos e jornalistas, que conviviam com o ambiente histórico do lugar, misturando-se aos tipos populares como: meninos de rua, malandros, macumbeiros e os artistas vindos das camadas mais pobres da população. Essa mistura definia os espaços que eram mesclados por todos esses extratos e delineavam outra realidade, além da planejada, promovendo um verdadeiro intercâmbio cultural. A música era ouvida por toda a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Pixinguinha, que era músico na Lapa dessa época, reforça isso, no seu depoimento para o MIS (Museu da Imagem e do Som), em 1970: “Tinha uma vida noturna muito grande. A Lapa era uma autêntica concentração de artistas, não só adeptos do chorinho, mas de toda a música popular.”

E foi exatamente para a Lapa que a Família Cunha mudou-se em 1915. De lá só sairia em 1925, voltando para a zona comercial do Rio. Carmen conviveu nesse ambiente por 10 anos, no período da sua adolescência e foi uma testemunha de todas as mudanças ocorridas na Lapa, que tinha a fama de ser a Montmartre do Rio de Janeiro, que estava mais para Pigalle, em 1923, conforme afirma Ruy Castro:

Definitivamente, a Lapa de 1920 – pelo menos, à noite – já não era a mesma de 1915. A proximidade com o Palácio do Catete, o Senado, a Câmara e os ministérios tornou-se ideal para os políticos e comerciantes de visitas, nacionais e estrangeiros (...) Abriram-se cafés e restaurantes com orquestras de violinos, chopes-berrantes, cafés- cantantes. A música estava em toda parte – a quantidade de pianos per

capita devia ser a maior. E a mistura de intelectuais, boêmia e malandros dava à Lapa uma nova e deliciosa atmosfera canalha. (CASTRO, 2005, p.15).

Da Lapa ecoavam todos os gritos de modernidade. Cosmopolita, conviviam ricos e pobres. Elegantes homens de smoking e barbas feitas transitavam entre pobres desdentados e de chinelos. Os escritores franceses eram discutidos nos restaurantes e cabarés de luxo, em meio a goles de champanhe e embalados por valsas francesas. A Lapa era clássica e popular. “Podia-se esbarrar em Villa-Lobos, Di Cavalcanti, além de músicos, pintores, poetas, cronistas, jornalistas que transformavam a Lapa nessa Montmartre carioca.” ( CASTRO, 2005, p.19).

Quando Carmen mudou-se da Lapa, tudo fica para trás, mas ela levou consigo tudo que presenciou e isso ajudou a construir sua personalidade. Levou consigo um repertório de gírias, de gingas, de palavrões que a acompanhou a vida inteira.

Essa modernização do Rio de Janeiro e do país já se fazia notar desde o começo do século XX. Cada vez mais amiúde, se agigantava a relação entre os diversos mundos culturais. Entretanto, a polícia continuava a perseguir o sambista e o músico popular. Os policiais legavam o samba, as práticas religiosas afro e cumpriam ordens. Não sabiam eles que acontecia encontros entre Pixinguinha e Heitor Villa-Lobos, Gilberto Freyre, etc. João da Bahiana sofreu essa perseguição muitas vezes: “.. samba e pandeiro eram proibidos. A polícia perseguia a gente. Eu ia tocar na Festa da Penha e a polícia me tomava o instrumento “ (...) declarou ele num depoimento ao MIS (Museu da Imagem e do Som, 1966/1968). O instrumento era o pandeiro.

Sem poder conter a penetração do samba nos salões nobres e o surgimento de cantores e cantoras com a chegada das gravadoras estrangeiras ao Brasil, o governo começa a valorizar as manifestações populares. Começa a Era Vargas, que cobre o período de 1930-1945. Neste ano chega ao fim o Estado Novo (1937-1945), mas não o fim de Getúlio Vargas na política, pois em 1951, retornaria à presidência pelo voto popular e fica até 1954, quando pressionado pelas velhas oligarquias, suicida-se.

A Era Vargas foi responsável por muitas mudanças no Brasil na área social, trabalhista e também cultural. O rádio já era uma realidade desde 1923, quando foi inaugurada a Rádio Sociedade, tendo como seu diretor, o antropólogo Roquete Pinto, cujo objetivo era transformar o rádio num movimento civilizador e educador da população. Em 1927 surge a PRA-9 no Rio de Janeiro. O rádio começa a ser um veículo de divulgação da canção popular. Vale lembrar que a década de 1920 foi considerada “A era do jazz” pelo escritor Scott Fitzgerald. O Brasil também aderiu a esse modismo e a onda do jazz-bands invadiu o país. Esse modismo veio a estimular a música

instrumental e não havia festa no Brasil, de Porto Alegre ao Rio de Janeiro, São Paulo e também estados do Nordeste, que não se tocasse jazz. Do Bando da Lua a Pixinguinha todos sofreram influência dessa nova moda e outros ritmos vindos dos Estados Unidos como o blues, o ragtime, charleston, fox, foxtrot (muito parecido com o andamento das marchinhas) e claro, o jazz. A crítica musical da época escrevia acusações de americanização da canção nacional. Nem “Carinhoso” de Pixinguinha, assim como outras composições suas, escaparam da crítica de influência na introdução, melodia, música e no andamento de elementos do foxtrot, e a tal influência yankee. A cultura americana penetrava no mundo inteiro, através dos discos e do cinema.