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2. DO IMAGINÁRIO POPULARPARA A ESCRITA: A ETERNA

2.5. CARMILLA – A CONDESSA LÉSBICA

Figura XI - Carmilla (1872)

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Fitzgerald,_funeral_from

_Carmilla.jpg

À medida que o século XIX se aproxima do seu final, novos vampiros aparecem, cada vez mais ousados, assustadores e inebriantes. Em 1872 um irlandês chamado Sheridan Le Fanu cria a mais famosa de todas as vampiras, Carmilla, uma sanguessuga explicitamente lésbica. Nesse conto audaz, Le Fanu choca por seu vanguardismo, pois naquela época o Reino Unido estava sob a regência de uma das mais moralistas monarcas, Rainha Vitória, a qual pregava restrições sexuais, homosse- xualidade masculina era um crime passível de prisão e o desejo femini-

no algo proibido de ser mencionado por moças decentes. Le Fanu57 não se intimida com o status quo da época e desafia os valores vitorianos vigentes e cria a primeira vampira nitidamente lésbica, J. Gordon Mel- ton explica que:

Conforme muitas pessoas já observaram ao discu- tir Carmilla, seu fascínio por Laura e pela filha do general, uma afeição ―lembrando a paixão do a- mor‖, tem conotações mais que superficiais sobre o lesbianismo. Nas histórias de horror, de um modo geral, os autores puderam retratar os temas sexuais em formas que não estariam à sua disposi- ção por outros meios. No início da história, por exemplo, Carmilla inicia seu ataque sobre Laura ao colocar seus ―belos braços‖ em volta de seu pescoço e com seu rosto tocando-lhe os lábios, emitindo doces palavras de sedução. Conquanto escritores anteriores tenham abordado o lamiai vampírico e outros vampiros do sexo feminino que atacavam seus amantes do sexo masculino, ―Carmilla‖ introduziu o morto-vivo na literatura

gótica (MELTON, 1995, p. 103, negrito do autor).

Melton destaca que histórias de horror proporcionam aos autores a oportunidade de escrever sobre a sexualidade, sendo assim, Le Fanu utilizou-se desse gênero para ousar, criando assim a primeira vampira que foge aos padrões moralistas da sua época. Carmilla assusta, não só por sua sede de sangue, mas também por sua atitude irreverente, ela parece representar tudo aquilo que os conservadores pensavam de uma mulher moderna na segunda metade do século XIX.

Ressaltamos que naquela época a mulher já engatinhava como conquistadora de seu espaço, muitas já trabalhavam e começavam a expor seus pensamentos, todavia isso era visto negativamente pela soci- edade patriarcal. Essa mulher moderna que ousava pensar só podia estar

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Após sua morte em Dublin, no dia 7 de fevereiro de 1873, a reputação de Le Fanu se deslocou para a obscuridade durante quase um século, embora tivesse como admiradores escritores como Henry James e Dorothy Sayers. Um dos principais motivos para essa negligência pela elite literária parece ter sido o assunto de suas obras. Durante muitas décadas a grande maioria dos críticos literários desdenharam a ficção do horror sobrenatural, e dessa forma negligen- ciaram seus maiores criadores. À medida que a ficção gótica foi garantindo seu lugar na última geração, seguiu-se rapidamente uma reavaliação crítica do gêne- ro (MELTON, 2008, p. 274).

possuída por um demônio, ou talvez ela fosse o próprio. Portanto, meta- foricamente, Carmilla pode representar as mulheres vanguardistas da época, seu maior Diabolismo reside no fato de ela ser dona de seu desejo sexual, algo terminantemente proibido para as mulheres pudicas da era vitoriana.

Nessa novela, a vampira não tem o poder de criar outras, como ela, instantaneamente. A explicação de como os vampiros se proliferam é dada por um dos personagens da trama, barão Vordenburg:

Uma pessoa, mais ou menos dissoluta, dá fim à própria vida. Em certas circunstâncias esse suicida pode se transformar em vampiro. Esse espectro visita pessoas vivas durante o sono; essas pessoas morrem, e no túmulo se transformam em outros vampiros. Foi o que aconteceu à bela Millarca, que morrera assombrada por um desses demônios (LE FANU, 2009, p.166).

Para o catolicismo, todo pecado tem suas consequências, portanto o ser humano, de acordo com os ensinamentos cristãos, terá suas devi- das punições. Adiantar a morte, significa contrariar a vontade de Deus e, portanto, ser renegado por ele. Desta forma o suicida torna-se uma víti- ma perfeita para os demônios.

Segundo Anthony Masters,no livroThe Natural History of the Vampire(1972):

Embora o suicídio estar sendo visto de uma ma- neira mais liberal este século, o ensino tradicional cristão pregava que era contra a vontade de Deus tirar a própria vida, e, portanto, o suicídio era uma grande heresia. A dominação divina deve reinar

e o homem deve se submeter ao ceifador e não a sua própria mão (MASTERS, 1972, p. 193,

negrito nosso, tradução nossa)58.

A explicação de Master mostra que o suicídio é uma grande here- sia e que ninguém tem direito de tirar a própria vida. Na Idade Média, muitas pessoas começaram a se suicidar para poder ir para junto de

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Although a more liberal approach has been taken this century to the suicide, traditional Christian teaching dictated that it was against the will of God to take one´s own life, and therefore a suicide was a serious miscreant. Divine domina- tion must reign and man must submit to the grim reaper and not to his own hand.

Deus, a reação da Igreja para coibir tais práticas foi propagar a notícia que quem se suicidasse jamais alcançaria o reino dos céus, também proibiram que os corpos dos suicidas fossem enterrados, mas sim que fossem deixados ao relento para serem devorados por animais.

Sendo assim, criaram-se lendas e mitos, provavelmente inspira- dos em tais ideias, demonizando os suicidas e transformando-os em mortos-vivos na figura do vampiro, essas narrativas orais foram apropri- adas e incrementadas pelos escritores (como Le Fanu) de literatura vam- pírica em vários aspectos, fazendo do sanguessuga um monstro com várias facetas. Segundo Raymond T. McNally & Radu Florescu:

A crença em mortos vivos ambulantes e em vam- piros bebedores de sangue talvez nunca desapare- ça. Foi somente no século passado ─ 1823 para

ser exato ─ que a Inglaterra pôs fora da lei a prática de enterrar estacas no coração dos sui- cidas. Hoje é na Transilvânia que a lenda dos

vampiros tem seu apelo mais forte (McNALLY & FLORESCU, 1995, p. 127, negrito nosso). Em vista da afirmação dos autores, podemos dizer que para os in- gleses do início do século XIX, o vampiro representava um perigo real e, desta forma, a ficção parece confundir-se com a realidade, lembremos que a data da proibição do estaqueamento de mortos foi em 1823, quase que conjuntamente com o lançamento do conto O vampiro (1819) de Polidori.

Uma das inovações de Le Fanu ―é a sugestão de que o vampiro se limitava a escolher um nome que fosse relacionado por anagrama ao seu nome verdadeiro. Tanto Carmilla como Millarca são derivados de Mircalla (MELTON, 1995, p. 103, negrito nosso).