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4. ANÁLISE

4.1 O S ENQUADRAMENTOS DO IMPEACHMENT

4.1.1 CartaCapital e o golpe em curso

A revista enquadra o processo de impeachment desde seu início como golpe parlamentar. Os vários editoriais escritos por Mino Carta, fundador da revista, denunciam um complô entre várias instâncias sociais, incluindo os meios de comunicação, como responsáveis pelo impedimento:

Somos espectadores de um enredo assustador, a negar a democracia que acreditamos viver, mas nem todos entendem que o espetáculo é trágico. [...] Ora, ora. Impeachment era e continua a ser golpe. [...] Tempo de chantagem. [...] Esta é a democracia brasileira, diariamente chantageada pela mídia nativa.50

Eduardo Cunha é um personagem principal da trama, pois, na qualidade de presidente da Câmara dos Deputados, foi o responsável pela abertura do inquérito. Nesse momento, ele aceitou o pedido escrito por Miguel Reale Jr, Hélio Bicudo e Janaína Paschoal, segundo CartaCapital, por vingança. Dilma teria prometido que o PT não votaria pela cassação de Eduardo Cunha, na Comissão de Ética. Quando isso não se confirmou, Cunha abriu o processo contra a presidenta.

Não foi por qualquer razão de natureza técnica. [...] foi, acima de tudo, um ato de desespero. [...] Cunha jogou a toalha. Um gesto simbólico de desespero. [...] Meses atrás, ao anunciar seu rompimento com Dilma, ele prometeu ‘incendiar’ o governo. Isso porque julgava que Dilma pudesse interferir nas ações do MPF ou mesmo nas ações da PF. Se quisesse, não deveria. Cunha, no centro da crise política, foi mais longe. Com apoio da oposição, notadamente o PSDB, atrapalhou bastante, e ainda atrapalha, a

administração de Dilma. [...] Para tentar queimar Dilma ateou fogo às vestes. [...] O golpe, em formato de impeachment, dificilmente será bem sucedido.51

Como o trecho deixa explícito, em dezembro de 2015, quando o pedido foi aceito, a expectativa de que tudo poderia ser diferente e que havia saída para o impeachment era real, apesar de o fracasso da presidenta no jogo político e econômico ser sinalizado, como discutido no capítulo 1. As mudanças nos cargos ministeriais pareciam dar fôlego à estratégia da presidenta: “Dilma Rousseff ganhou um novo gás, enquanto prepara um lance ousado em defesa do próprio mandato, a troca do ministro da fazenda. [...] Ao mesmo tempo, a presidenta busca sinalizar ao País o que virá pela frente, se permanecer no cargo”52. A esperança dela e de sua equipe residia na retomada da economia: “Precisamos construir uma nova equação para a economia brasileira” 53. O fator econômico aparece muitas vezes ao longo dos meses analisados, como um termômetro do próprio governo.

Logo no começo de 2016, em fevereiro, o processo é descrito como “desgastante, embora enfraquecido’54 e o leitor aproveita para denunciar uma classe à direita que estaria por trás do golpe: “[...] A tática do impeachment via golpe de Estado, é um recurso dentre vários disponíveis [do projeto de poder da direita]”55. Através de seu editorial, a revista demonstra a insatisfação com o governo Dilma e reforça a denúncia contra os meios de comunicação:

CartaCapital sabe, e repete, que no poder o PT portou-se como os demais clubes recreativos envolvidos na arena política. Sabe, porém, e repete, que a tentativa de impeachment é francamente golpista e que os argumentos até o momento trombeteados para incriminar o melhor presidente pós-ditadura por ora o fortaleceram de tão inconsistentes. [...] a mídia nativa vende fumaça e, ao cabo, a realidade ficará nua.56

O que Mino Carta está defendendo não é só um governo da presidenta eleita, mas um projeto político, é Lula e o que eles representaram durante os anos no poder, apesar das críticas contundentes ao PT e às decisões erradas tomadas por ambos – Lula e Dilma.

Após seu afastamento em abril, com a votação da Câmara dos Deputados no domingo 17, o clima já era menos esperançoso, como dito pelo sociólogo Eugenio Sosa: “São golpes do século XXI, com uma roupagem constitucional, mais midiáticos e sem ter os

51 DIAS, M. Carta Capital, 09 de dezembro de 2015, p.16.

52 BARROCAL, A. Carta Capital, 23 de dezembro de 2015, p.16.

53 BARROCAL, A. Carta Capital, 23 de dezembro de 2015, p.16.

54 Seu país, Carta Capital, 10 de fevereiro de 2016, p.24.

55 Leitor, Carta Capital, 03 de fevereiro de 2016, p.7.

militares como protagonistas”57. E outras tematizações, como a polarização evidente no país, ganharam destaque: “A polarização e o discurso de ódio não são um fenômeno nacional. [...] A revista alemã Der Spiegel adverte: podemos estar diante de ‘uma era na qual serão cada vez mais fortes aqueles que não oferecem qualquer solução, os que só oferecem rejeição e medo’”58. E ainda:

Nos dias de hoje, como seria de imaginar, experimentamos uma conjuntura de forte exacerbação dos sentimentos da parcela política mobilizada. Nunca tivemos, em nossa breve história democrática, um período de polarização tão intensa, com uma clivagem ideológica tão nítida.59

A radicalização tomou conta do país após uma escalada policial, judicial, midiática e política contra o governo e o PT. [...] Segundo se observa em protestos de rua, redes sociais da internet, bares, reuniões familiares e no plenário do Congresso, parece iminente um acontecimento mais grave. O mandato de Dilma Rousseff corre riscos enormes [...].60

Este ambiente que estamos vivendo destroi a democracia, estamos indo para um vale-tudo. [Jaques Wagner]61

Em agosto, Miguel Martins, colunista fixo de CartaCapital escreve: “Embora municiada por vitórias jurídicas relevantes, a campanha de Dilma para comprovar a ilegalidade de seu afastamento não tem conseguido produzir fatos políticos relevantes a reforçar sua defesa”62. Também este foi o mês das Olimpíadas e no editorial do dia 16, fica clara a condenação do megaevento e do governo interino, que ignoram a situação crítica do país: “A farsa trágica que vivemos ganha, neste momento, um sinistro cenário de insensatez, qual fosse a celebração do desastre”63. As celebrações de abertura dos Jogos Olímpicos, de certa forma, distraem a sociedade da realidade do impedimento que chegava à fase final, na concepção do colunista.

O tom de tragédia também é reiterado ao longo dos meses analisados, apesar de uma melhora na perspectiva no começo do ano (janeiro/fevereiro), com o aumento da aprovação da ex-presidenta nas pesquisas de opinião de dezembro. A partir de março, a

57 GOMBATA, CartaCapital, 06 de abril de 2016, p.47.

58 BELUZZO; GALÍPOLO, CartaCapital, 06 de abril de 2016, p.28.

59 COIMBRA, CartaCapital, 16 de março de 2016, p.24.

60 BARROCAL; MARTINS, CartaCapital, 23 de março de 2016, p.14.

61 BARROCAL, CartaCapital, 09 de março de 2016, p.18.

62 MARTINS, CartaCapital, 03 de agosto de 2016, p.38.

popularidade já cai novamente de acordo com as sondagens64, e os apoiadores da ex-presidenta também não são os maiores crentes na vitória.

É importante retomar a postura de crítica adotada por CartaCapital em relação aos outros meios de comunicação. Além de criticar abertamente a cobertura feita pelos grandes veículos de comunicação do país, a revista buscou desmsitifcar a questão da neutralidade jornalística, adotando um “lado” na questão política, sem se abster de criticá-lo também:

Em qual país habilitado a figurar no celebrado G20, topo do mundo, a mídia assume o papel de partido político, e como tal se porta para ameaçar um governo legitimamente eleito [...]? Outra peculiaridade da nossa situação é o silêncio do governo atacado e que se deixa acuar, vítima de uma espantosa catatonia [...]. Na opinião de CartaCapital, não há saída para o governo e PT, a partir do reconhecimento de erros gravíssimos, o retorno às origens, embora temperadas pelas consequências dos eventos históricos que marcaram o mundo desde 1980 sem abalar a ideia central da procura infatigável da igualdade.65

O que observamos é que o quadro de sentido que fornece a resposta à indagação de Goffman, “o que está acontecendo aqui?” e que pode ser reformulada como “o que está acontecendo na política no ano de 2016?”, em Carta Capital, é o enquadramento do golpe em suas várias facetas: econômica, social, política, jurídica, midiática.

Essas disputas simbólicas em torno do enquadramento, com diferenças na maneira de conceber o que se passava ao longo do processo do impeachment, revelam como os quadros de sentido são socialmente referenciados. Existe a materialidade da experiência e as afetações decorridas do acontecimento, mas elas só são decodificadas culturalmente, dentro do grupo e das referências simbólicas desse grupo. Por isso, o enquadramento dado ao processo pode ser e é muito diferente em ambas as revistas pois definir o que aconteceu é dotar o acontecimento de sentido e, por consequência, construir afinidades com leitores diferentes. Quando definem o enquadramento do impeachment, os veículos revelam que o próprio conceito de democracia é diferente em cada um. Se a “democracia é um conceito em disputa” (MIGUEL, 2016, p.31), o próprio impeachment também é.

64 “tudo conspira a favor do impeachment de Dilma, a começar pela opinião pública. Segundo o instituto datafolha, quase 70% dos eleitores gostariam que a presidente fosse destituida do cargo”. PEREIRA; Veja, 30 de março de 2016, p.51.