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A construção das imagens públicas de Dilma Rousseff e Michel Temer durante o impeachment de 2016

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Academic year: 2021

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Laura Antônio Lima

A construção das imagens públicas de Dilma Rousseff e Michel Temer

durante o impeachment de 2016

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Belo Horizonte

2018

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Laura Antônio Lima

A construção das imagens públicas de Dilma Rousseff e Michel Temer

durante o impeachment de 2016

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Minas Gerais.

Área de Concentração: Comunicação e Sociabilidade Contemporânea

Linha de pesquisa: Processos Comunicativos e Práticas Sociais

Orientadora: Profa. Dra. Paula Guimarães Simões

Belo Horizonte

2018

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Para minha avó, pelo afeto.

Para minha mãe, pela força terna.

Para meu pai (in memorian), pelo entusiasmo pelo saber.

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AGRADECIMENTOS

As dissertações que concluem mestrados têm apenas um nome de autoria, mas a verdade é que este, como qualquer outro trabalho acadêmico, só pode ser feito em conjunto.

Por isso, gostaria de agradecer às pessoas que tornaram tudo possível.

À minha orientadora, Paula, por acreditar em mim como pesquisadora e aluna, pacientemente embarcar comigo nas mil versões desse texto, acalmar dúvidas no caminho e ser uma referência.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela bolsa concedida durante os 24 meses de mestrado. E àqueles e àquelas que contribuem diariamente para o financiamento de ensino, pesquisa e extensão no Brasil.

À UFMG, especialmente à FAFICH, pela imensa oportunidade de estar nesse lugar e me formar como estudante, professora e pesquisadora.

Às professoras Luciana de Oliveira, Laura Guimarães e Ângela Marques, que contribuíram enormemente para este trabalho e para minha formação no mestrado. Assim como o professor Camilo Aggio, com as sugestões na qualificação. Também agradeço às profas. Rousiley Maia e Regina Helena e ao prof. Márcio Simeone pelas disciplinas.

Ao PPGCOM-UFMG, especialmente à Elaine e Tatiane, pelo trabalho indispensável e pouco valorizado nos bastidores de um programa de pós-graduação, ao coordenador prof. Carlos Mendonça, e a todos/as professores/as que fazem parte do programa.

Ao GRIS, o melhor grupo de pesquisa que poderia ter participado, e todas as pessoas que fizeram ou fazem parte desse lugar único de afetos, especialmente à profa. Vera França, pelas contribuições na qualificação, nas reuniões de pesquisa e nas disciplinas. Ao Grislab, lugar de extensão, onde aprendi muito sobre trabalho em conjunto. À minha família acadêmica Ju, Enise, Clara, Afonso, Gáudio e Samuel, pelas melhores reuniões do GrisMorte.

A todo grupo que conheci e será parte da minha vida: Ana Karina, Poly, Maíra, Malu, Fernanda, Suzana, Lívia, Letícia, Tamires, Fabíola, Mayra, Paulo, Camila, Gilvan, Terezinha, Vanessa. Às Grisetes (Ju, Júlia, Isabelle, Mayra, Isabella, Karine, Fernanda, Poly, Ana Karina, Duda e Enise), pelo apoio, carinho e comemorações. Ao grupo do Projeto Teorias, que me ensinou que o tempo de um projeto não é nada perto da superação de desafios e celebração de cada passo no caminho!

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Ao “mestradinho”, pela força que só as experiências compartilhadas conseguem promover. Obrigada, Afonso, por ser muito mais que um colega de mestrado, pela amizade construída. Também agradeço à Thaís, Paula, Bárbara, Iara, Txai, João e Thiago por todas as conversas, saídas, conselhos e laços formados indispensáveis.

Não posso deixar de agradecer às pessoas que fizeram parte dessa caminhada acadêmica na primeira iniciação científica: prof. Ricardo Fabrino, Stephanie, Wesley e Yza, por me mostrarem uma academia possível, comprometida, ética e humana.

É preciso agradecer também àquelas pessoas que, fora dos muros da universidade, foram meu suporte, minha distração, meu consolo e minha alegria. À Nath, Camila, Maíra, por serem quem são e me ouvirem e enxergarem como eu sou. Ao Filipe, por me lembrar (sem querer) que andar mais do que a metade do caminho vale a pena (por algumas pessoas).

À Cinthia, Camila, Laurie e Nath, amigas da e pra vida inteira. À Cris, Lívia, Déborah e Marina, pelos encontros raros, mas especiais.

À minha família materna, pelo amor e força inigualáveis. À minha avó Divina, por nunca ter desistido e permitido que hoje eu trilhasse esse caminho, obrigada por me fazer quem eu sou. Ao meu avô José, pelo amor em forma de preocupação e café. Às minhas tias e tios, às primas e primos, vocês são demais. À minha afilhada, Maria, obrigada pelo privilégio de acompanhar seu crescimento.

A você, pai. Esse título só tem significado porque você me ensinou desde muito cedo a riqueza do conhecimento. Me ensinou que ser gentil, afetuosa e interessada, era o certo. E me deixou um tanto de saudade.

A você, mãe, por tudo. Por ser meu esteio, fonte de inspiração, energia e amor.

Pela palavra que acolhe, pela luz, pela força, por acreditar sem reservas. Obrigada por ouvir quando eu não consigo falar e ver quando eu não consigo mostrar. Obrigada por estar ao meu lado.

E agradeço às manifestações do Divino que me permitem estar aqui e viver intensamente.

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo analisar a construção das imagens públicas de Dilma Rousseff e Michel Temer durante o processo de impeachment de 2016. Para tanto, no primeiro capítulo, percorre teoricamente quatro eixos causais anteriores ao processo: a crise econômica, a crise política, a polarização que se acirrou no país e a tematização da corrupção.

Em seguida, no segundo capítulo, abordamos o conceito de imagem pública que nos é fundamental, a partir das contribuições de Gomes (2004), Thompson (2008) e Weber (2004, 2009), além de apresentar algumas operacionalizações do conceito em estudos de políticos em geral e de Dilma em particular. Também deslindamos o conceito de representação, a partir de França (2004) e Hall (2012). A análise que empreendemos num corpus de 790 unidades, coletadas nas revistas Veja e Carta Capital, é feita em dois momentos: no primeiro, o conceito de enquadramento (MENDONÇA, SIMÕES, 2012; BATESON, 2002; GOFFMAN, 2012) é acionado para compreender como as revistas analisadas posicionam o impeachment.

O segundo momento de análise foca nas representações construídas pelos veículos para Rousseff e Temer, utilizando três eixos: 1) ações e discursos dos políticos em foco; 2) ações e discursos dos políticos por outros sujeitos; 3) valores e papeis sociais acionados para ambos a partir dos eixos anteriores. Através dessa dupla visada, tentamos compreender como as imagens de ambos foram construídas durante esse processo específico e o que essas representações podem nos dizer sobre o contexto social no qual vivemos. A análise revelou que as imagens públicas tratadas são relacionais, pois aparecem referenciadas entre si, além de mudarem com o contexto. Os valores do patriarcado e da economia se sobressaíram como fundantes da sociedade e influenciando a maneira como os sujeitos analisados são representados.

Palavras-chave: imagem pública; representação; impeachment; Dilma Rousseff; Michel Temer.

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ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the construction of the public images of Dilma Rousseff and Michel Temer during 2016’s impeachment. For this purpose, in the first chapter, theoretically covers four causal axes prior to the process: the economic crisis, the political crisis, the polarization that has intensified in the country and the thematization of corruption. Then, in the second chapter, we approach the concept of public image that is fundamental to us, based on the contributions of Gomes (2004), Thompson (2008) and Weber (2004, 2009), besides presenting some operationalization of the concept in studies of politicians in general and Dilma in particular. We also define the concept of representation from França (2004) and Hall (2012). The analysis that we carried out in a corpus of 790 units, collected in the magazines Veja and Carta Capital, is done in two moments: in the first one, the concept of framing (MENDONÇA, SIMÕES, 2012; BATESON, 2002; GOFFMAN, 2012) is mobilized to understand how the magazines have positioned the impeachment. The second moment of analysis focuses on the representations built by the vehicles for Rousseff and Temer, using three axes: 1) actions and speeches of politicians in focus; 2) actions and speeches of politicians by others; 3) values and social roles triggered for both from the previous axes.

Through this two bias, we try to understand how the images of both were constructed during this specific process and what these representations can tell us about the social context in which we live. The analysis revealed that the public images treated are relational, since they appear referenced among themselves, in addition to changing with the context. The values of patriarchy and economics stand out as founders of society and influence the way the analyzed subjects are represented.

Keywords: public image; representation; impeachment; Dilma Rousseff; Michel Temer.

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LISTA DE SIGLAS

APH – Assembleia Popular Horizontal

BNDES – Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social COPAC – Comitê dos Atingidos pela Copa

CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito

Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna FGTS – Fundo de Garantia pelo Tempo de Serviço

FIES – Fundo de Financiamento Estudantil PF – Polícia Federal

PIB – Produto Interno Bruto

Pronatec – Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego ProUni – Programa Universidade para todos

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores

Reuni – Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais

TCU – Tribunal de Contas da União

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

1. PRENÚNCIO: O CONTEXTO BRASILEIRO ... 14

1.1A CRISE ECONÔMICA ... 15

1.2APOLARIZAÇÃO POLÍTICA ... 18

1.3A TEMATIZAÇÃO DA CORRUPÇÃO E A CRISE REPRESENTATIVA ... 24

1.4OJOGO POLÍTICO ... 33

2. REPRESENTAÇÃO E IMAGEM PÚBLICA ... 42

2.1IMAGEM PÚBLICA ... 42

2.1.1 As imagens públicas de políticos ... 47

2.1.2 As imagens públicas de Dilma Rousseff ... 51

2.2REPRESENTAÇÃO ... 54

2.2.1 Representação política ... 55

2.2.2 Representação como performance ... 56

2.2.3 Representação como conjunto simbólico ... 58

3. DESENHO METODOLÓGICO ... 64

3.1RECORTE EMPÍRICO ... 64

3.2PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ... 65

3.2.1 Pesquisa bibliográfica ... 65

3.2.2 Pesquisa empírica ... 66

3.2.3 Análise de dados ... 67

4. ANÁLISE ... 72

4.1OS ENQUADRAMENTOS DO IMPEACHMENT ... 72

4.1.1 CartaCapital e o golpe em curso ... 73

4.1.2 Veja e a defesa da legalidade ... 77

4.2ANÁLISE DA IMAGEM PÚBLICA DE DILMA ROUSSEFF ... 81

4.2.1 Dilma Rousseff em foco: ações e discursos ... 81

4.2.2 Dilma Rousseff por outras pessoas ... 84

4.2.3 Valores e papeis sociais ... 91

4.3ANÁLISE DA IMAGEM PÚBLICA DE MICHEL TEMER ... 95

4.3.1 Michel Temer em foco: ações e discursos ... 95

4.3.2 Michel Temer por outras pessoas ... 96

4.3.3 Valores e papeis sociais ... 102

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 105 REFERÊNCIAS ... 110

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INTRODUÇÃO

Faz 28 anos que a Constituição brasileira foi promulgada num processo de democratização intenso, após período de ditadura militar que deixou várias marcas no imaginário popular, nas instituições e nas práticas sociais. Um dos testes a que nossa Constituição foi submetida ocorreu em 1992, com o impeachment de Fernando Collor, momento em que os procedimentos institucionais democráticos deveriam funcionar perfeitamente depois de anos sob o jugo dos militares.

O que a população talvez não esperasse é que, alguns anos depois, outro presidente, a primeira mulher a assumir o cargo, seria destituída pelo mesmo processo que teria afetado Fernando Collor caso ele não tivesse renunciado antes. Em agosto de 2016, a presidenta foi deposta do cargo mais alto do Executivo brasileiro por 61 votos a 20, em votação no Senado Federal.

A votação no Senado foi o último ato de um longo processo que começou em dezembro de 2015 oficialmente, mas encontra ecos muito antes, nas manifestações que movimentaram o país em 2013, na crise econômica se avolumando ao longo dos mandatos de Dilma, na falta de apoio do Congresso ao governo, numa população cada vez mais dividida após a reeleição de 2014. Em 2015 e 2016, a população foi às ruas apoiando e criticando a presidenta, suportando o impeachment ou dizendo que havia um golpe em curso, democraticamente exercendo seus direitos de manifestar. São muitos lados, versões, verdades e convicções em disputa. Este trabalho, entretanto, pretende se debruçar sobre outro aspecto do impeachment: a construção das imagens públicas de Dilma Rousseff e Michel Temer.

Durante o processo de impedimento, observamos tanto Dilma Rousseff quanto Michel Temer aparecer dezenas de vezes nos programas televisivos, nos jornais matinais, na internet, nas mensagens de WhatsApp, em pronunciamentos oficiais de governo, nas capas de revista, nas bancas de jornais. Num curto período, Rousseff foi deposta de seu cargo no Executivo e Temer passou de vice-presidente a presidente interino, chegando, por fim, a presidente empossado. Pelas posições de destaque que ocuparam ou ocupam, é normal que a atenção tanto dos meios de comunicação quanto das pessoas se volte para suas ações, afinal é da/o presidente/a de seu país que estamos falando. Mesmo antes do impeachment, a cobertura dos fatos políticos e sujeitos envolvidos neles é algo rotineiro, o acontecimento apenas aumentou o volume e a expectativa por informações e notícias sobre ambos. Pela condição de

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seu trabalho, pela função que exercem os caracterizamos como figuras públicas: figuras que devem sua notoriedade ao fato de trabalharem (ou deverem trabalhar) para o bem comum e prestar contas de seus atos rotineiramente (FRANÇA, 2014).

Mas pessoas públicas estão à nossa volta em vários campos: celebridades da televisão e da internet, atores, cantores, ex-BBBs, jogadores de futebol, atletas olímpicos.

Chris Rojek (2008), em seu trabalho sobre as celebridades, teoriza que há uma relação entre vida pública, interações sociais e a celebrificação das identidades no aumento da importância dos famosos em sociedades contemporâneas. Políticos, muitas vezes, fazem parte de uma categoria de reconhecidos devido ao cargo que ocupam, ao próprio carisma, às declarações que fazem. Associado à imagem de presidentes, por exemplo, estão alguns valores que dizem do governo, da República, de uma ideia de nação. Investigar comparativamente, portanto, a imagem pública de Dilma Rousseff e a de Michel Temer é um esforço de captar como esse movimento de constituição das figuras públicas acontece, saindo do campo da política e adentrando as relações sociais e a vida cotidiana.

Na investigação sobre esses dois sujeitos políticos, é preciso deixar claro que entendemos o processo de impeachment como um acontecimento (ARENDT, 2008; QUÉRÉ, 2005) que possui dimensão concreta. Esse momento de constituição de ambas as imagens é evento catalisador, desestabilizador da narrativa cotidiana que aciona um passado de explicações e abre um futuro de possibilidades, deslocando sentidos e expondo problemas latentes, como é próprio de acontecimentos. Só um evento de tal magnitude ressoa em aspectos tão díspares quanto economia, política, vida social, entretenimento e continua a nos instigar após ter seu desfecho declarado em agosto de 2016. Acontecimentos tão complexos como o que é tema deste trabalho podem cair numa redução quando esmiuçados. Quando nos lembramos da dimensão da experiência que dá sentido aos acontecimentos para cada pessoa, se torna delicado abordá-los em textos acadêmicos que se pretendem neutros, objetivos e imparciais.

Este trabalho parte da inquietação de ter vivido esses momentos presencialmente e assistir impotente aos desdobramentos que retiraram a presidenta do poder, num orquestramento sem igual de poderes executivo, legislativo e judiciário, além do apoio de grande parte da população. Alguns questionamentos que apareceram: É possível ter posicionamento político e falar academicamente de política? E como fica a neutralidade científica, a objetividade da pesquisa? Você vai dizer que foi golpe?

De alguma maneira, não falar sobre o impeachment em si, sobre os meandros do golpe ou de um impedimento legal, baseado em crime de responsabilidade, mas sobre a

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imagem pública de Dilma e de Michel talvez seja uma maneira de escapar do enfrentamento direto, ou de cair em certas dificuldades, por exemplo, a de não fazer a dissertação a que me propus e sim um manifesto em favor de determinada pessoa, partido ou postura ideológica.

Ainda assim, o contexto do impeachment precisa ser discutido e é isso que abordaremos no próximo capítulo. Estamos conscientes de que a objetividade necessária à pesquisa científica vem do esclarecimento das nossas posições político-ideológicas, das escolhas teórico-metodológicas e da atenção à crítica constante a que o trabalho é submetido em suas várias fases. É o tensionamento e a articulação de três elementos que constroem uma boa pesquisa científica, segundo José Luiz Braga (2002): a formulação do problema de pesquisa, o trabalho de fundamentação teórica e a observação sistemática da empiria.

Também defendemos que a imparcialidade e a neutralidade axiológica são ideais atrelados a uma concepção de ciência que pode ser superada, através da transformação do nossos olhares de pesquisadoras/es para o próprio fazer científico e a reflexão de como a ciência também é um campo político (STENGERS, 2002). Além disso, o fato de ser uma pesquisadora mulher, branca, de classe média entrelaça as experiências que vivi como mestranda e meu olhar sobre esse tema de pesquisa.

Sempre observando o aspecto comunicacional destas imbricações, esperamos responder ao questionamento: como são construídas as imagens públicas de Dilma Rousseff e Michel Temer no impeachment e o que isso revela do cenário brasileiro contemporâneo?

Para tanto, iniciamos a dissertação com um capítulo sobre o contexto brasileiro de crise em vários âmbitos e que possibilitou o processo, focando em quatro pontos: a crise econômica, a polarização das argumentações, a tematização da corrupção associada à uma crise de representação e a crise política. O segundo capítulo explora teoricamente o conceito de imagem pública e o de representação, incluindo operacionalizações de ambos na análise de outras figuras públicas e da própria Dilma. A terceira seção do trabalho compreende o percurso metodológico da pesquisa baseado em três conceitos:

1) acontecimento, que norteia nossa compreensão do impeachment;

2) enquadramento, através do qual observamos o acontecimento ser posicionado nas duas revistas;

3) imagem pública, que, em conjunto com representação, norteia os três eixos de análise baseados na proposta de Gomes (2004): discursos e ações de Dilma e Michel em foco; discursos e ações proferidos por outras pessoas; valores e papeis sociais.

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O quarto capítulo, o de análise, enfoca os dez meses do processo (dez/2015 – set/2016) através de 44 edições de Veja e 43 de Carta Capital, contabilizando um corpus de 790 unidades de texto, a fim de captar as representações de Dilma e Michel e apreender valores e papeis sociais e um pouco do contexto brasileiro que é revelado ao longo desse processo.

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1. PRENÚNCIO: O CONTEXTO BRASILEIRO

“Porque a política é um ritual dramático, é impossível separar o fio da realidade do fio da encenação.”

(Joshua Meyrowitz)

Em maio de 2018, completam-se dois anos de governo de Michel Temer. A abertura do processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff e posterior julgamento até a destituição oficial da política, levou à posse interina do vice-presidente em 12 de maio de 2016. Foram duas justificativas jurídicas para o pedido de impeachment: abertura de créditos orçamentários por meio de decreto e uma pedalada fiscal. A abertura de crédito orçamentário ocorreu sem a participação do poder Legislativo, por decreto de Dilma em julho e agosto de 2014, antes da mudança da meta fiscal ser aprovada. “Isto é, Dilma teria liberado dinheiro baseada no cenário em que o projeto seria aprovado pelo Legislativo e não orientada na meta fiscal em vigor no momento em que o dinheiro fora liberado” (VILLAVERDE, 2016, p.236).

Apesar de a nova meta ter sido aprovada, o TCU e o Congresso entendiam que o governo deveria se ater a meta vigente e como não o fez, incorreu em violação desta.

Pedalada fiscal foi um termo utilizado pela imprensa para caracterizar uma manobra em que o governo atrasa os repasses aos bancos públicos, por exemplo, no fim de um mês ou ano. Veio a público em julho de 2014, por matéria d’O Estado de São Paulo, mas já era usada por técnicos quando “queriam explicar que despesas de ministérios que deveriam ser pagas até o último dia do mês tinham o desembolso transferido de fato para o primeiro dia do mês seguinte” (VILLAVERDE, 2016, p.10), prática esta já utilizada muitas vezes, principalmente na virada de ano. É como se o governo tivesse uma dívida a ser paga em dezembro e só pagasse no dia 1 de janeiro. No papel, as contas de dezembro fecham, pois o dinheiro só sai dos cofres em janeiro, mas na realidade, o pagamento é realizado pelo banco e gera-se uma nova dívida.

Essa operação de crédito que atrasa os pagamentos da União (ou do estado/munícipio) aos bancos públicos (como BNDES, Caixa Econômica Federal ou Banco do Brasil) e ao FGTS, com o objetivo de não negativar as contas, foi entendida como um financiamento da União pelos bancos públicos, o que vai contra a Lei de Responsabilidade Fiscal: “pela legislação brasileira, um banco público não pode financiar o Tesouro”

(VILLAVERDE, 2016, p.10) e “O governo infringira a Lei de Responsabilidade Fiscal ao realizar uma operação de crédito por meio de um adiantamento de receitas feito por instituições financeiras controladas pelo próprio governo” (idem, p.179).

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As contas do governo Dilma referentes ao exercício de 2014 foram reprovadas pelo TCU em 2015, mas todas as pedaladas que ocorreram nesse primeiro mandato ficaram de fora do pedido de impeachment. A única pedalada a ser incluída dizia respeito à divida do Tesouro Nacional com o Banco do Brasil, relativa a empréstimos do Plano Safra e que ocorrera em 2015, durante o segundo mandato. “No fundo, as pedaladas e os decretos orçamentários terminaram sendo a base formal para que o afastamento de uma presidente altamente impopular fosse efetivado, tal como o Fiat Elba para Fernando Collor vinte e quatro anos antes” (VILLAVERDE, 2016, p. 15). Como o trabalho pretende analisar as imagens públicas de Dilma e Michel construídas durante o período do julgamento do impeachment, é preciso contextualizar melhor o que estava acontecendo antes da abertura do processo e como chegamos nesse lugar.

Identificar claramente os motivos do acontecimento é tarefa quase impossível, pois a percepção parte também do lugar de onde falamos e observamos o passado. O que pretendemos é “[...] fazer um elo do passado-presente-futuro com a possibilidade de esclarecimentos pretéritos para entendimentos presentes e projeções do porvir”1, ou, mais modestamente, procurar ecos no passado que ajudem a montar uma narrativa do acontecimento. Diante disso, optamos por falar de quatro eixos, os quais orientam o capítulo, que acreditamos ter contribuído para o impeachment de Dilma Rousseff e que compõem o contexto, o pano de fundo do evento. São eles: a crise econômica, a polarização dos posicionamentos, a tematização da corrupção e a crise política.

1.1 A CRISE ECONÔMICA

É importante um panorama econômico dos anos anteriores ao impedimento, pois essa questão permeia todo o processo político do impeachment que é objeto desta dissertação.

A economia é elemento estruturante das relações sociais e numa sociedade capitalista, acaba por influenciar em vários âmbitos: política, religião, vida doméstica, entretenimento. Em edição do dia 21 de novembro de 2017 do Bom dia Brasil2, a analista Mirian Leitão ressalta essa relação entre economia e política:

1 BRAGA, João. As cores na história. L’Officiel, nº56, Dez/Jan 2017/2018, p.176

2 Telejornal exibido pela Rede Globo de segunda a sexta, de 7h30 às 9h.

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A economia sempre ajudou a política, sempre ajudou os presidentes impopulares, quando eles estão lá embaixo, quando a economia começa a melhorar, quando a inflação cai e as pessoas sentem o conforto de uma redução da inflação e da pressão, eles têm aumento de popularidade. Eu posso contar vários, por exemplo, Itamar Franco, lá na virada do Real, tava com a popularidade baixa, veio o Real e subiu muito. O presidente Lula em 2005, com o mensalão tava com a popularidade baixa, mas 2006 com inflação baixinha, o país cresceu, aí recuperou a popularidade e ele acabou vencendo a eleição. Então, sempre teve uma conversa entre a política e a economia, né.3

O primeiro mandato de Dilma (iniciado em 2011) conseguiu se sustentar no princípio, e a aprovação da presidenta continuava a subir, mas a desaceleração da economia já dava sinais de que nem tudo ia bem: o Produto Interno Bruto (PIB) caiu em relação aos anos anteriores, os investimentos e o consumo também, a China desacelerou, os resquícios da crise econômica de 2008/2009 tiveram “novo repique na Europa em 2011, levando a zona do euro à recessão [...] e o fraco crescimento mundial não ajudou” (SAFATLE, BORGES, OLIVEIRA, 2016, p.99).

As decisões do governo em relação à economia, principalmente em 2012, foram um dos primeiros pontos de ruptura que geraram a avalanche de acontecimentos subsequentes. Em dezembro de 2012, é citado em documento do governo a expressão “nova matriz macroeconômica” (SAFATLE, BORGES, OLIVEIRA, 2016, p.93). A taxa referencial de juros brasileiros, a Selic, sofreu uma queda de 12,5% para 7,25% e alcançou “o menor nível no Brasil em todos os tempos” (AB’SÁBER, 2015, p.27). A posterior manutenção da taxa nesse patamar revelou que “o governo de Dilma Rousseff afirmava com muita força uma concepção de política econômica, e modo de funcionar, que o destacava da tradição de facilitação dos interesses bancários, muito própria de nossa democracia” (ibidem, p.27). A aprovação popular da presidenta, contrariando esses indicadores, atingiu o recorde em março de 20134, superando seus antecessores.

Além da manutenção da taxa de juros, a nova matriz macroeconômica previa incentivos de crédito, baixas taxas de câmbio, geração de empregos, alta de produção industrial e crescimento econômico generalizado. Por uma confluência de fatores, a previsão não se confirmou e mesmo com as mudanças implementadas em 2015, com uma política de corte expressiva, no momento do afastamento da presidenta, a economia não possuía bons

3 Transcrição de: 'Indicadores mostram a economia melhorando', avalia Miriam Leitão. Disponível em:

<https://globoplay.globo.com/v/6303015/programa/>; acesso em 04 de janeiro de 2018.

4 CAMPANERUT, C. Dilma é aprovada por 79% e supera Lula e FHC, diz CNI/Ibope. Disponível em:

<https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/03/19/dilma-cni-ibope.htm?cmpid=copiaecola>.

Acesso em 04 de janeiro de 2018.

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indicadores: recessão batendo recorde, dívida do setor público em 4,2 trilhões de reais, inflação e desemprego (SAFATLE, BORGES, OLIVEIRA, 2016, p.313). E a crise econômica continuou mesmo após a troca de Rousseff por Temer: “O número de desempregados aumentou e passa de 12 milhões. A inflação foi debelada abaixo de dois dígitos [...]. A proletarização das classes C e D retornou. O déficit público aponta riscos”5.

O que a política econômica dos governos Lula conseguiu, aumento exponencial do crescimento, consumo expressivo, investimento em programas sociais, expansão das universidades públicas, FIES, REUNI, Ciência sem Fronteiras, deixou um legado para o país, mas a um alto custo, segundo alguns economistas, que já era sentido no último ano do mandato (2010): “[...] a virada para a irresponsabilidade fiscal ocorreu no último ano do segundo mandato de Lula. ‘Em 2010, o governo pirou’, disse [Bernard Appy, ex-secretário de política econômica]” (SAFATLE, BORGES, OLIVEIRA, 2016, p.77).

A oscilação entre momentos de esperança e desesperança na economia foi um dos fatores que contribuiu para o sentimento de crise. Se, em 2009, no meio da crise internacional, o país estava bem, quatro anos depois, em 2013, a situação já não era a mesma,6 com um crescimento econômico em 2012 de 0,9%, bem abaixo dos anos anteriores. Além de uma economia suscetível a variações cambiais, alta carga tributária e problemas de infraestrutura considerados obstáculos a investimentos por parte do empresariado, a perda do poder de compra, a inflação crescente, aumento nas tarifas de transporte e a percepção da corrupção pelas/os cidadãs/os também foram fatores alardeados nas manifestações de 2013.

A dimensão econômica compreende o desempenho inferior nos mandados de Dilma se comparado à pujança da era Lula. A queda no crescimento astronômico do PIB, a alta da inflação, a influência da crise internacional, a elevação dos juros e a baixa arrecadação culminaram em desemprego, recessão, desindustrialização e baixo percentual de investimentos7. Do mesmo modo que Lula não é responsável pelas benesses sozinho, Dilma também herdou problemas das administrações anteriores que se aprofundaram durante seu governo.

Além disso, somente o aspecto financeiro não é relevante o suficiente para determinar a saída de um/a presidente/a. Se lembrarmos o segundo mandato de FHC, também observamos indicadores ruins:

5 KARNAL, L; Dores de um parto incerto; Le Monde Diplomatique, Abril/2017, p.7.

6 O BRASIL estragou tudo, questiona The Economist. Folha de São Paulo, Disponível em

<http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/09/1347724-brasil-estragou-tudo-questiona-revista- economist.shtml>. Acesso em 10 de maio de 2017.

7 Para um detalhamento da crise econômica cf. SAFATLE, BORGES e OLIVEIRA (2016).

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A reversão do bom momento vivido pela economia brasileira foi causada por uma combinação de choques adversos nos terrenos externo e doméstico: a crise de oferta de energia elétrica (“apagão”), a desaceleração da economia norte-americana, a crise da economia argentina, os atentados de 11 de setembro e os escândalos contábeis que afetaram empresas norte- americanas. Tal sucessão de eventos depreciou fortemente o câmbio e fez retrair os investimentos produtivos (OLIVEIRA, TUROLLA, 2003, p.209)

Além da economia, outros componentes da crise que culminou no impeachment são a tematização da corrupção, o acirramento dos debates e a intolerância que desaguaram na polarização das posições e opiniões políticas, além da dificuldade da petista em adentrar ao jogo político. Esses elementos de ordem mais subjetiva, segundo Napolitano (2016), contribuíram sobremaneira para o contexto do impedimento e serão discutidos a seguir.

1.2 A POLARIZAÇÃO POLÍTICA

Nos últimos anos, vimos algumas mudanças na maneira de as pessoas se relacionarem com a política, com os processos de tomada de decisão e com aqueles e aquelas que governam.

Na Copa das Confederações, em 2013, o cenário midiático passou a reportar mais de perto alguns problemas denunciados pela sociedade em relação aos megaeventos, com as manifestações de movimentos sociais, bem como a atuação do COPAC: as famílias obrigadas a serem remanejadas, as denúncias de superfaturamento nas obras, os prazos estourados se juntaram a outras demandas da população e constituíram momentos de tensão no ano de 2013.

É importante destacar que o fenômeno que ficou conhecido como as jornadas de junho não foi uniforme em todo o país e que seu início é bastante difuso8: “[...] foram uma multiplicidade ambivalente de protestos com um grande número de pessoas em mais de uma centena de municípios do país.” (MENDONÇA, 2017, p.141).

O protesto que envolveu violência policial e mobilizou bastante a população nacionalmente ocorreu em São Paulo no dia 17 de junho e teve como principal demanda abaixar as tarifas de transporte de ônibus. O que aconteceu depois (e antes) em São Paulo e outras cidades do país, como Rio de Janeiro, Natal, Goiânia e Belo Horizonte foi o

8 Os acontecimentos ficaram conhecidos como jornadas após a repercussão e adesão de um grande número de pessoas. Mas é possível rastrear protestos menores sobre a tarifa de transporte, uma das bandeiras iniciais, desde 2012 (RICCI; ARLEY, 2014, p.130).

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alargamento das pautas, das insatisfações e da mobilização política através de sindicatos, partidos e organizações como a APH. Mas, quando falamos em jornadas, estamos nos referindo a mais do que apenas uma manifestação ou uma pauta: “Quando pensamos nas manifestações que aconteceram em 2013, evocamos antes de tudo sua concretude – a maneira como “coisas” aconteceram e afetaram o ambiente à nossa volta.” (FRANÇA, BERNARDES, 2016, p.11). As jornadas são um marco temporal importante no contexto anterior ao impeachment e, de alguma forma, despertaram a atenção para processos sociais que já vinham acontecendo9.

A crise urbana (transporte, moradia, violência, cidadania) frente aos megaeventos, a crise econômica e a crise política e de representação parecem ser alguns dos elementos que contribuíram para o que se passou. Também se fortaleceu a rejeição de formas de organização políticas tradicionais, com vários cartazes enunciando o “Fora todos” ou “Fulano não me representa”, o fortalecimento da ação coletiva dos black blocs, de grupos anarquistas, de pessoas que não tinham nenhum envolvimento com instituições políticas e mesmo assim foram às ruas.

O sentimento de descrença também pode ser captado por discursos anti-políticos e anti-partidários, como se viu nas manifestações, pela tentativa de alguns movimentos sociais de se distanciarem de partidos tradicionais (o que ocorreu nas eleições municipais de 2016) e pela emergência de candidatos ditos “independentes”, como João Dória, em São Paulo, e Alexandre Kalil, em Belo Horizonte. Ambos foram eleitos prefeitos apoiados em campanhas que se aproveitavam do sentimento de ojeriza da população em relação à política tradicional e mobilizavam uma imagem ancorada em características da personalidade (eficiência em gestão e administração) a fim de conseguir votos.

O caminho que a opinião pública10 trilhou em todo esse contexto foi o da polarização política, do acirramento dos ânimos. A tematização da política ampliada pelas

9 Para aprofundamentos em relação à temática das jornadas de junho cf. NOGUEIRA, 2013; RICCI, ARLEY, 2014; RODRIGUES, 2015; FRANÇA, BERNARDES, 2016; MENDONÇA, 2017; SARMENTO, REIS, MENDONÇA, 2017.

10 A discussão teórica sobre o conceito de opinião pública é vasta e se desdobra em várias possibilidades a depender do campo. Na ciência política, por exemplo pode-se discutir o conceito relacionando-o às pesquisas de comportamento eleitoral. Os trabalhos de Habermas também versam sobre a opinião pública de outro lugar, exaltando os argumentos racionais e o debate público como essenciais para a formação do conceito. Nesta dissertação, utilizamos a formulação de Walter Lippman sobre “opinião pública”: “Aqueles aspectos do mundo exterior que têm a ver com o comportamento de outros seres humanos, na medida em que o comportamento cruza com o nosso, que é dependente do nosso, ou que nos é interessante, podemos chamar rudemente de opinião pública. As imagens na cabeça destes seres humanos, a imagem de si próprios, dos outros, de suas necessidades, propósitos e relacionamento, são suas opiniões públicas. Aquelas imagens que são feitas por grupos de pessoas, ou por indivíduos agindo em nome dos outros, é Opinião Pública com letras maiúsculas”

(LIPPMANN, 2008, p.40).

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redes sociais digitais trouxe um novo nível de midiatização, com atualizações constantes de operações contra corrupção, denúncias contra o governo, delações premiadas, vazamentos de áudios de figuras importantes da política e uma enxurrada de conteúdos que contribuíram para a exaltação das pessoas e para a formulação desses discursos em torno e sobre o governo.

As eleições de 2014, logo após a Copa, foram marcadas por essa superexposição dos/da candidatos/a e pelas tensões entre os vários lados (que, em determinados momentos, se resumiam a dois, direita e esquerda, e, em outros, se ampliavam para vários lados, reacionários, conservadores, progressistas, liberais, “coxinhas” e “petralhas”). Tais tensões persistiram até o impeachment em 2016 – e ainda hoje.

Jessé Souza (2016) apresenta a tese de que as reais motivações para o impeachment seriam os interesses da classe dominante, a elite do dinheiro, e que o argumento da corrupção serviria de fachada na construção de um “outro” que precisa ser combatido, o que geraria uma polarização. Para o sociólogo, o sistema capitalista é responsável por criar elites em vários sentidos, mas a única que realmente importa é a controladora dos recursos financeiros e é esta que articula as outras esferas de acordo com seus interesses.

Pode-se fazer uma crítica ao posicionamento do pesquisador em relação a sua visão dos meios de comunicação. Souza (2016) defende que a população seria manipulada pela mídia e que o argumento da corrupção teria sido incutido em “massas imbecilizadas”. O olhar uniforme sobre um fenômeno complexo como os meios de comunicação e sua relação com a sociedade acaba sendo redutor e extremamente simplificador da realidade. Atribuir a jornais, rádios, televisões, veículos na internet poderes sobrenaturais é desconsiderar a intrincada rede de relações e poderes na qual a mídia está inserida, bem como as relações de trabalho, certas restrições e constrangimentos que a perpassam (GOMES, 2004) . É desconsiderar que os meios de comunicação não existem fora da vida social, estão assentados em um mundo real, feitos por pessoas diferentes; é desconsiderar também a capacidade reflexiva dos receptores e receptoras que consomem as informações.

Apesar de construir uma perspectiva restrita e negativa dos meios de comunicação, da qual discordamos, o pesquisador tem contribuições a trazer sobre o contexto contemporâneo especialmente nas elaborações sobre a classe média11 e seu papel no processo de deposição de Dilma. Além disso, ele aponta questões pertinentes em relação ao avanço de

11 O conceito de “classe média” é polêmico, pois os critérios de classificação podem ser de ordens variadas e vir de diferentes lugares: institutos de pesquisa, mercado, sociologia, demografia. Neste trabalho, entendemos que

“Uma classe social não é um dado fixo, definindo apenas pelas determinações econômicas, mas um sujeito social, político, moral e cultural que age, se constitui, interpreta a si mesma e se transforma por meio da luta de classes. Ela é uma práxis, um fazer histórico” (CHAUI, 2016, p.19, grifos da autora).

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ideologias conservadoras, de uma direita organizada, que parecia inexistente e retorna fortalecida no cenário atual.

A classe média, segundo Souza (2016), foi um fator determinante no jogo político neste momento quando, de alguma forma, adotou o discurso da corrupção. A partir da ascensão de uma parcela antes excluída da população através de políticas públicas (de transferência de renda, cotas, etc.), o poder de compra dessas pessoas aumentou e houve o que se chamou de inserção pelo consumo, além de acesso a espaços físicos e simbólicos antes proibitivos. Souza argumenta que essa dinâmica gerou uma reação conservadora de setores médios da sociedade, que se alinham por identificação à parcela mais rica, e a tentativa de manter o status quo.

Racionalmente, essa reação não é exposta, mas Souza (2016, p. 82) identifica que Existia um desconforto difuso na classe média tradicional que não pode ser apenas compreendido com motivos racionais. Em grande medida, a maior proximidade, tanto física quanto de hábitos de consumo, [...] precipitou e explicitou publicamente um racismo de classe antes silencioso e exercido somente no mundo privado.

A ideia de Souza de racismo de classe é o preconceito existente das classes do privilégio (média e alta) para com as classes populares. E a manutenção desses privilégios acaba reverberando na realidade e construindo uma distância cada vez maior entre os grupos e refletindo em fatos: maior incidência de condenação pelos mesmos crimes nas classes populares, desprezo e ódio aos marginalizados, violência policial desproporcional. Por outro lado, podemos matizar essa homogeneização da classe média ao lembrar das manifestações durante o processo e alegar que, na verdade, o que se viu foram disputas de setores da classe média: o MPL (Movimento Passe Livre) que encabeçou as primeiras manifestações de junho/2013 é um movimento de classe média, assim como o MBL (Movimento Brasil Livre) e a grande maioria que saiu às ruas.

Marilena Chaui (2016) também elabora sobre a classe média e ajuda a compreender o pensamento de Souza (2016) quando desloca o conceito de uma posição política ou econômica, para um lugar diferente. A autora argumenta que os critérios que definem a classe média, advindos principalmente dos EUA, não abarcam a complexidade do fenômeno brasileiro. Em nosso país, a classe média estaria fora da classe detentora dos recursos produtivos e fora da classe trabalhadora, economicamente falando. Em termos políticos, não está no Estado e nem organizada em sindicatos, como a classe trabalhadora classicamente se agrupa. Dessa forma, “Isso a coloca numa posição que a define não somente

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por sua posição econômico-político, mas também e sobretudo por seu lugar ideológico – e este tende a ser contraditório” (CHAUI, 2016, p.19).

A construção de um sentimento de oposição exacerbado, desses polos distantes e incomunicáveis, também pode ser entendida, do ponto de vista psicanalítico, pela “lógica do condomínio” desenvolvida por Cristian Dunker (2015). É a lógica de uma divisão da sociedade em locais – alegoricamente representados por condomínios – que não têm contato, que não desejam ter contato. O pesquisador, na tentativa de fazer o que chama de diagnóstica, identifica que “seria de esperar um crescimento das formas específicas e comunitárias de sofrimento” (DUNKER, 2015, p.28), derivadas dos trânsitos culturais facilitados pela globalização, mas na prática, há uma diminuição dessas síndromes culturais. Especificamente em nosso país, Dunker elabora a tese de que haveria uma lógica impulsionada pela modernidade brasileira e por um “sonho mediano de consumo” (2015, p.47), a lógica do condomínio:

A lógica do condomínio tem por premissa justamente excluir o que está de fora de seus muros; portanto, no fundo, não há nada para pensar na tensão entre esse local murado e seu exterior. [...] os que vivem fora estão sem lugar, sem terra, sem teto, sem destino. E os que vivem dentro estão demasiadamente implantados em seu espaço, seu lugar e sua posição (DUNKER, 2015, p. 52-53).

Se Souza (2016, 2012) teoriza sobre a classe média do ponto de vista econômico, Dunker (2015) analisa a classe média sob a ótica da psicanálise e da sociologia, atribuindo a ela os fatores classe e raça como fundamentais para entender a vontade de segregação dessa parcela populacional. Tanto é assim, que os condomínios brasileiros são inspirados arquitetonicamente em fortes de ocupação, baseados em defender o território e existe “[...] um sutil código de circulação e de convivência apartada entre serviçais e moradores” (DUNKER, 2015, p.50).

Cada um está separado por construções físicas que geram sensação de segurança mas trazem uma impermeabilidade às questões do coletivo e do bem estar público. Essa perspectiva tem sua base num pensamento individualista, que observa a preocupação primária com seu próprio bem-estar e de seu círculo mais próximo de familiares e amigos. O narcisismo do sujeito, percebido em várias práticas, acaba por isolá-lo em grupos cada vez menores de afinidade. A lógica do condomínio se faz presente quando as conversas ficam impossibilitadas, as relações com pessoas diferentes se tornam esparsas, cada grupo só interage com quem pensa da mesma forma, e a polarização dá o tom das relações comunicativas. É a dificuldade de ouvir, debater e ceder no esforço de construir algo que não

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seja bom demais nem para um nem para o outro, mas que seja o melhor para nós dois, no espírito do que o pragmatista John Dewey acredita: a democracia como forma de vida.

Alicerçada na possibilidade de troca, nas garantias de falar e ouvir, na liberdade entre aqueles que compartilham a sociedade: “a tarefa da democracia será sempre criar uma experiência mais livre e mais humana na qual todos compartilham e para a qual todos contribuem.”

(DEWEY, 2008, p.142).

A intolerância que se viu tanto na disputa das eleições presidenciais de 2010 quanto nas manifestações subsequentes revela esse traço que volta a se destacar na sociedade brasileira (e em outros locais e contextos como a onda anti-imigração e xenofóbica de alguns países europeus, o Brexit, o fortalecimento de movimentos nos EUA como o alt-right e a passeata em Charlottesville)12. Na mesma linha de Dewey, o psicanalista Joel Birman diz: “A intolerância se funda então na impossibilidade de convívio do sujeito e do grupo social com a diferença do outro” (BIRMAN, 2005, p.300) e destaca que somente na criação de novas formas de vida que incluam as alteridades e possibilitem “reconhecer o outro em sua diferença” (ibidem, p.300), a violência predatória dessas configurações será barrada.

Especificamente no Brasil, Avritzer (2016) identifica a classe média como protagonista dos novos movimentos de participação e o elemento novo da intolerância:

Os novos grupos da classe média [...] parecem ser os mais importantes protagonistas desse novo movimento que traz uma característica adicional: a ocupação das ruas com amostras de intolerância política. Mais uma vez, não há qualquer problema para a democracia em existir movimentos mostrando sua capacidade de mobilização [...]. O que, sim, acende luzes amarelas é a intolerância política que se expressa nessa volta de movimentos conservadores às ruas. Assim como uma pauta antidemocrática com forte inserção no Congresso Nacional que procura romper com a separação entre religião e Estado e ameaça os direitos civis (AVRITZER, 2016, p.115).

A dimensão ideológica da crise compreende, segundo Napolitano (2016), as disputas entre projetos políticos historicamente opostos de esquerda e direita no país, o incômodo com os governos PT por parte da elite política, o envolvimento do partido nos esquemas de corrupção quando no poder e a ruptura com a base (movimentos sociais, quadros sindicais, juventude). O pesquisador, assim como Santos (2016) e Dunker (2015), aborda a perda de privilégios da classe média como fator de reação conservadora e ponto culminante nas Jornadas de Junho em 2013. A partir dali, as três dimensões de crise (econômica,

12 É importante ressaltar que a intolerância na política não é algo novo e não se resume aos movimentos de direita. Em diversos momentos históricos, as oposições de esquerda já foram consideradas intolerantes ou radicais.

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ideológica e política) “se entrecruzaram, formando o labirinto atual que nos parece levar ao abismo da intolerância política e da fratura social” (NAPOLITANO, 2016, p.63).

Esse eixo da crise que levou Dilma a perder seu cargo – a polarização política – pode ser compreendido através da intolerância crescente na sociedade de escutar e dialogar com parcelas que pensam diferente, seja em que espectro estiver. Essa dimensão que marcou a reeleição da presidenta em 2014 é um traço que permanece nas interações sociais e está ligado a outro eixo que discutiremos a seguir: a tematização da corrupção aliada a uma crise representativa.

1.3 A TEMATIZAÇÃO DA CORRUPÇÃO E A CRISE REPRESENTATIVA

As capas das revistas semanais Veja e IstoÉ, no período de 30 de abril de 2017 a sete de maio de 2017, estampam o julgamento que aconteceria na semana seguinte, em que o juiz Sérgio Moro ouviria o depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Veja apresenta a chamada “O primeiro encontro cara a cara, Moro x Lula” e IstoÉ “ Moro vs.

Lula/Ajuste de contas, 14 horas, fórum de Curitiba”, enquadrando13 o julgamento como uma luta entre dois lados. O juiz, com as cores amarelo e azul, aparece de máscara dos lutadores mexicanos na capa de Veja, enquanto Lula usa amarelo e vermelho. Na IstoÉ, essas mesmas cores estão em calções de boxe, e ambos são apresentados como lutadores em um ringue.

Essas capas refletem o sentimento que permeia a Operação Lava Jato, a maior operação contra a corrupção e a lavagem de dinheiro já instaurada pela Polícia Federal (PF).

Sérgio Moro, o juiz da 13ª vara de Curitiba, é o responsável pelos processos deflagrados nas várias fases da operação e que tentam descortinar a corrupção institucionalizada no país por meio da política e das empreiteiras. Em maio de 2017, a Lava Jato estava em sua quadragésima fase (Operação Asfixia) e já deu origem a várias investigações paralelas, numa cruzada pelo fim da corrupção no país. A Operação Lava Jato, que dizem ser inspirada na Operação Mãos Limpas,14 ocorrida na Itália, completou três anos de atividade em 17 de

13 O conceito de enquadramento será desenvolvido posteriormente na seção de metodologia. Por ora, é suficiente dizer que os enquadramentos, na perspectiva com a qual trabalhamos, são grandes estruturas de sentido compartilhadas e utilizados para identificar uma situação ao responder o questionamento “O que está acontecendo aqui?” (GOFFMAN, 1986).

14A operação Mani Pulite investigou uma rede de pagamento de propinas para garantir contratos entre empresas privadas e órgãos e empresas públicas, além do desvio de recursos para financiamento de campanhas políticas.

Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141115_maos_limpas_italia_ru>. Acesso em 10 mai. 2017.

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março de 2017 e mobilizou recursos humanos e financeiros vultosos. Estará marcada na história do Brasil como um esforço de investigação que articula as polícias federal e estaduais, Ministério Público, Judiciário, entre outras instâncias administrativas, na descoberta de uma rede de corrupção envolvendo empreiteiras, governantes e a Petrobras. A ação da Lava Jato já é internacional, contando com a cooperação de pelo menos 40 países, enquanto outros 14 países investigam operações ilegais da Odebrecht, uma das empreiteiras envolvidas no esquema15. Até janeiro de 2017, alguns números disponibilizados pela PF dão a dimensão dos processos: são dois bilhões e 400 milhões de reais em bens bloqueados ou apreendidos, 745 milhões e 100 mil reais repatriados, aproximadamente quatro mil policiais envolvidos(as), mais de 700 mandados de busca e apreensão cumpridos e 100 de prisão temporária16.

Ela é uma, ao lado de várias operações já descortinadas pela PF, que “podem ter caráter repressivo, mas, na maioria das vezes, constituem uma etapa do processo de investigação em que o levantamento de indícios já se mostrou suficiente para deslanchar prisões temporárias e apreensão de bens, recursos e documentos” (ARANTES, 2011, p.105).

Do ponto de vista da visibilidade, as operações da PF têm maior sucesso e são consideradas mais efetivas pela população, inclusive pela utilização de nomes-fantasia (alguns exemplos são Operação Carne Fraca, Operação Arca de Noé, Operação Ctrl + Alt + Del, Operação Pasárgada)17 com apelo midiático e que geram interesse dos públicos, se comparadas a outras ações de instituições no combate à corrupção (ARANTES, 2011, p.106).

É importante considerar o fortalecimento institucional desse órgão de polícia como um elemento do contexto do impeachment. Resumidamente, segundo Arantes (2011), atribui-se à renovação dos funcionários e aumento dos cargos, com aumento do quadro de integrantes tanto policiais e investigadores como do quadro administrativo, um dos fatores que propiciou a liderança da PF nesses casos investigativos. A transformação da PF em uma polícia civil com jurisdição em todo território nacional também é um fator, porque centraliza as operações no domínio federal e a torna capaz de intervenção nos estados da Federação. Ao

15 KOKAY, Érica. Entenda a Lava Jato. In: STRUCK, Jean-Philip. Odebrecht, da Prússia à Operação Lava Jato. Deutsche Welle, Bonn, 21 abr. 2017. Disponível em <http://p.dw.com/p/2bdp7>. Acesso em: 07 mai. 2017.

16Dados disponibilizados pela Polícia Federal em <http://www.pf.gov.br/imprensa/lava-jato/numeros-da- operacao-lava-jato>. Acesso em: 06 mai. 2017.

17As referências para os nomes das operações podem ser religiosas/bíblicas, históricas, políticas ou terem relação com algum fato investigado, como a própria Lava Jato, que recebeu essa denominação em referência a rede de postos de combustíveis utilizados para movimentação financeira ilícita. A lista dos nomes desde 2003 está

disponível em: <

https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_opera%C3%A7%C3%B5es_da_Pol%C3%ADcia_Federal_do_Brasil>.

Acesso em 09 jun. 2017.

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lado disso, o autor destaca uma mudança exógena propiciada no fim do governo FHC e, especialmente, durante o governo Lula, de autonomia da PF e de impulso do Executivo, através do Ministério da Justiça, que garantiram o protagonismo dessa polícia no combate ao crime organizado e à corrupção.

A operação Lava Jato continua a descortinar relações e negócios escusos, mesmo recebendo críticas18 pelos métodos que utiliza: por exemplo, o uso de prisões preventivas, conduções coercitivas, os acordos de delação premiada, os vazamentos considerados

“seletivos” de áudios importantes para o processo, como uma gravação entre o ex-presidente Lula e a então presidenta Dilma, são medidas que não eram utilizadas em larga escala como o são na Lava Jato. De qualquer maneira, a operação figura como um acontecimento político essencial na compreensão da história do país, ao lado do Mensalão, que

[...] entrou para a história e está na memória dos brasileiros como um dos acontecimentos políticos mais importantes das últimas décadas no país, seus efeitos e problemas revelados continuam a afetar ou a motivar o debate de atores e instituições, interpelados ainda a intervir, a interpretar e a dar respostas ao que aconteceu (SILVA, 2014, p. 73).

Apesar da credibilidade e do aumento expressivo nos números de operações, a integração entre sistema de justiça e segurança pública é complicada. O combate à corrupção, inclusive, inicialmente era feito pelo Ministério Público juntamente com partidos e movimentos da sociedade civil. O cientista político Rogério Arantes (2011) discute a decisão de passar esse tipo de investigação para esfera da PF como uma mudança no quadro institucional propiciado pela Constituição de 1988 com bons resultados pelo lado investigativo, mas baixa eficiência do sistema de justiça. Essa dinâmica gera “uma combinação de elevado número de inquéritos/processos judiciais com igual sensação de impunidade [...]” (ARANTES, 2011, p. 120). A impunidade foi outro argumento alardeado pela população na defesa do impedimento.

O contexto em que essas operações se inserem é o dos governos PT, iniciados com Lula em 2002, um segundo mandato em 2006, a primeira eleição de Dilma em 2010 e a reeleição em 2014. São os primeiros governos com um discurso alinhado a um posicionamento político que se localiza à esquerda no espectro político. Aos governos do PT, são creditadas várias mudanças sociais, a saída de uma parcela da população da linha da

18 Um manifesto de mais de 100 juristas contendo críticas à operação foi divulgado em janeiro de 2016. Na carta aberta “acusam a operação [...] de violar os direitos e garantias fundamentais dos suspeitos”. CALGARO, Fernanda. 15 jan. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/operacao-lava- jato/noticia/2016/01/advogados-publicam-manifesto-com-criticas-operacao-lava-jato.html.

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miséria com os programas de transferência de renda como o Bolsa Família, o aumento da classe média e do poder de consumo da mesma e uma fase de grande pujança econômica do país, reconhecida internacionalmente19. É importante lembrarmos, entretanto, que “[c]omo toda e qualquer instituição social e política, também o Estado possui uma forte dinâmica no sentido de conservar e perpetuar suas rotinas estavelmente no tempo e no espaço.” (MATOS;

PARADIS, 2014, p.70). Assim, mesmo com a mudança na realidade de milhares de pessoas no país, vários processos de manutenção de privilégios, de corrupção e tráficos de influência e interesses continuaram marcando a prática política enquanto as desigualdades sociais se mantinham.

A corrupção, entretanto, não começou recentemente – e nem terminará de forma tão rápida. Mesmo que o tratamento dado pela população em geral seja o de indignação e alvoroço, “O que se percebe é um moralismo exacerbado das elites políticas, econômicas e sociais a respeito da política e da vida institucional da democracia” (FILGUEIRAS, 2011, p.134). A história política do país está entremeada de casos semelhantes, que acabam colaborando para a cultura política desenvolvida aqui. Desde os tempos das navegações, temos relatos de práticas corruptas na chegada às terras que seriam o Brasil no futuro.

Na época da Primeira República, o clientelismo característico de regiões em situação de vulnerabilidade, necessitadas de infraestrutura, alimentação e condições mínimas de subsistência, manteve-se intenso: “continuava forte o complicado jogo das relações pessoais, contraprestações e deveres: chave do personalismo e do próprio clientelismo.”

(SCHWARCZ; STARLING, 2015, p.347). Essas relações de poder baseiam-se no chamado

“voto de cabresto” em troca de favores como peças de roupas, alimentos, garantia de água, proteção e são denunciadas como uma forma corrupta e antiética do fazer político.

O período em que Getúlio Vargas esteve no poder também foi marcado pela corrupção e pelo envolvimento de várias pessoas da administração pública e do próprio filho em trâmites ilegais (ibidem, p.409). Após o atentado contra Carlos Lacerda, ocorrido em cinco de agosto de 1954, a imprensa foi uma das forças que impulsionaram a queda do presidente: “Os meios de comunicação funcionavam como o principal alimentador de crises do governo de Vargas [...]” (ibidem, p.407) e o responsabilizaram diretamente pelo atentado contra o jornalista e pelos escândalos de corrupção. A opinião de uma parcela grande da população queria a renúncia de Getúlio, e seus últimos dias foram de intensa crise política, até seu suicídio em 24 de agosto de 1954. Mesmo que hoje Vargas seja lembrado como uma

19 Em 2009, a capa da revista The Economist estampava a seguinte frase: Brazil takes off, numa tradução livre: O Brasil decola. Disponível em: <http://www.economist.com/node/14845197>. Aceso em 10 de maio de 2017.

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pessoa honesta, é acusado de leniência com Gregório Fortunato, um dos conhecidos articuladores dos feitos ilegais durante o período (ibidem, p. 409-410).

A candidatura de Jânio Quadros à presidência também se aproveitou da pecha da corrupção como elemento do governo anterior de Juscelino para criar uma campanha bastante parecida a campanhas que vimos nas eleições municipais de 2016: discurso contra a corrupção, denúncia de ilegalidades, promessas de uma administração austera aliada a um posicionamento independente e anti-político, dissociado de partidos e descrente da maneira tradicional de governar. Apesar de muitos relatos informais omitirem, o período da ditadura20 também foi marcado por corrupção de policiais civis e órgãos ligados à tortura e aprisionamento de cidadãos/ãs (ibidem, p. 459).

Os exemplos citados acima deixam ver como persistem as práticas de corromper pessoas e instituições a fim de obter vantagens por meios ilegais ou ilícitos21. Em alguns momentos, porém, o discurso contra a corrupção parece ganhar mais força. É o caso do golpe de 1964 levado a cabo com a justificativa de se opor à onda “comunista” que podia tomar conta do Brasil, do processo de impeachment de Collor, do governo Lula com o Mensalão e, mais recentemente, das manifestações de 2013.

Há autores/as que situam o fenômeno da corrupção como sistêmico, como o historiador Leandro Karnal: “não existe governo corrupto numa nação ética; e não existe nação corrupta com governo transparente e democrático”22. É a responsabilização da sociedade pelo que lhe cabe enquanto parte do que é público e a necessidade de situar o governo como parte intrínseca da sociedade. A corrupção não estaria ligada a pessoas ou partidos, e nem deveria servir para demonizar grupos sociais.

Em desacordo com uma ideia de naturalidade do problema e de uma postura que o considera inevitável, Leonardo Avritzer e Fernando Filgueiras (2011) pensam que a corrupção está ancorada na esfera da cultura política e das instituições, que não depende apenas de mudanças institucionais ou administrativas para ser resolvida. Depende de outro olhar sobre a res-pública – a coisa pública –, que vai além da separação entre governantes, cidadãos e cidadãs, e que pense o que é público ancorado em valores morais ademais de políticos.

O fenômeno é complexo, possui múltiplas facetas e entendê-lo dessa maneira

20 FREIRE, Marcelo. Ditadura militar brasileira era "cenário ideal" para corrupção, diz historiador. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/04/01/ditadura-militar-brasileira-era-cenario- ideal-para-corrupcao-diz-historiador.htm> acesso em 14 de jan. de 18.

21 Para mais discussões acerca da temática da corrupção no país e internacionalmente cf. AVRITZER e FILGUEIRAS (2011); AVRITZER, BIGNOTTO, GUIMARÃES e STARLING (2008); FILGUEIRAS (2008).

22 LEANDRO Karnal faz a melhor síntese do ano sobre 'o que é a corrupção'. 21 de dez. de 2016, Pragmatismo político. Disponível em: < https://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/12/leandro-karnal-faz-a-melhor- sintese-sobre-o-que-e-a-corrupcao.html> , acesso em 14 de jan. de 18.

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