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“Porque a política é um ritual dramático, é impossível separar o fio da realidade do fio da encenação.” (Joshua Meyrowitz)

Em maio de 2018, completam-se dois anos de governo de Michel Temer. A abertura do processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff e posterior julgamento até a destituição oficial da política, levou à posse interina do vice-presidente em 12 de maio de 2016. Foram duas justificativas jurídicas para o pedido de impeachment: abertura de créditos orçamentários por meio de decreto e uma pedalada fiscal. A abertura de crédito orçamentário ocorreu sem a participação do poder Legislativo, por decreto de Dilma em julho e agosto de 2014, antes da mudança da meta fiscal ser aprovada. “Isto é, Dilma teria liberado dinheiro baseada no cenário em que o projeto seria aprovado pelo Legislativo e não orientada na meta fiscal em vigor no momento em que o dinheiro fora liberado” (VILLAVERDE, 2016, p.236). Apesar de a nova meta ter sido aprovada, o TCU e o Congresso entendiam que o governo deveria se ater a meta vigente e como não o fez, incorreu em violação desta.

Pedalada fiscal foi um termo utilizado pela imprensa para caracterizar uma manobra em que o governo atrasa os repasses aos bancos públicos, por exemplo, no fim de um mês ou ano. Veio a público em julho de 2014, por matéria d’O Estado de São Paulo, mas já era usada por técnicos quando “queriam explicar que despesas de ministérios que deveriam ser pagas até o último dia do mês tinham o desembolso transferido de fato para o primeiro dia do mês seguinte” (VILLAVERDE, 2016, p.10), prática esta já utilizada muitas vezes, principalmente na virada de ano. É como se o governo tivesse uma dívida a ser paga em dezembro e só pagasse no dia 1 de janeiro. No papel, as contas de dezembro fecham, pois o dinheiro só sai dos cofres em janeiro, mas na realidade, o pagamento é realizado pelo banco e gera-se uma nova dívida.

Essa operação de crédito que atrasa os pagamentos da União (ou do estado/munícipio) aos bancos públicos (como BNDES, Caixa Econômica Federal ou Banco do Brasil) e ao FGTS, com o objetivo de não negativar as contas, foi entendida como um financiamento da União pelos bancos públicos, o que vai contra a Lei de Responsabilidade Fiscal: “pela legislação brasileira, um banco público não pode financiar o Tesouro” (VILLAVERDE, 2016, p.10) e “O governo infringira a Lei de Responsabilidade Fiscal ao realizar uma operação de crédito por meio de um adiantamento de receitas feito por instituições financeiras controladas pelo próprio governo” (idem, p.179).

As contas do governo Dilma referentes ao exercício de 2014 foram reprovadas pelo TCU em 2015, mas todas as pedaladas que ocorreram nesse primeiro mandato ficaram de fora do pedido de impeachment. A única pedalada a ser incluída dizia respeito à divida do Tesouro Nacional com o Banco do Brasil, relativa a empréstimos do Plano Safra e que ocorrera em 2015, durante o segundo mandato. “No fundo, as pedaladas e os decretos orçamentários terminaram sendo a base formal para que o afastamento de uma presidente altamente impopular fosse efetivado, tal como o Fiat Elba para Fernando Collor vinte e quatro anos antes” (VILLAVERDE, 2016, p. 15). Como o trabalho pretende analisar as imagens públicas de Dilma e Michel construídas durante o período do julgamento do impeachment, é preciso contextualizar melhor o que estava acontecendo antes da abertura do processo e como chegamos nesse lugar.

Identificar claramente os motivos do acontecimento é tarefa quase impossível, pois a percepção parte também do lugar de onde falamos e observamos o passado. O que pretendemos é “[...] fazer um elo do passado-presente-futuro com a possibilidade de esclarecimentos pretéritos para entendimentos presentes e projeções do porvir”1, ou, mais modestamente, procurar ecos no passado que ajudem a montar uma narrativa do acontecimento. Diante disso, optamos por falar de quatro eixos, os quais orientam o capítulo, que acreditamos ter contribuído para o impeachment de Dilma Rousseff e que compõem o contexto, o pano de fundo do evento. São eles: a crise econômica, a polarização dos posicionamentos, a tematização da corrupção e a crise política.

1.1 A CRISE ECONÔMICA

É importante um panorama econômico dos anos anteriores ao impedimento, pois essa questão permeia todo o processo político do impeachment que é objeto desta dissertação. A economia é elemento estruturante das relações sociais e numa sociedade capitalista, acaba por influenciar em vários âmbitos: política, religião, vida doméstica, entretenimento. Em edição do dia 21 de novembro de 2017 do Bom dia Brasil2, a analista Mirian Leitão ressalta essa relação entre economia e política:

1 BRAGA, João. As cores na história. L’Officiel, nº56, Dez/Jan 2017/2018, p.176

A economia sempre ajudou a política, sempre ajudou os presidentes impopulares, quando eles estão lá embaixo, quando a economia começa a melhorar, quando a inflação cai e as pessoas sentem o conforto de uma redução da inflação e da pressão, eles têm aumento de popularidade. Eu posso contar vários, por exemplo, Itamar Franco, lá na virada do Real, tava com a popularidade baixa, veio o Real e subiu muito. O presidente Lula em 2005, com o mensalão tava com a popularidade baixa, mas 2006 com inflação baixinha, o país cresceu, aí recuperou a popularidade e ele acabou vencendo a eleição. Então, sempre teve uma conversa entre a política e a economia, né.3

O primeiro mandato de Dilma (iniciado em 2011) conseguiu se sustentar no princípio, e a aprovação da presidenta continuava a subir, mas a desaceleração da economia já dava sinais de que nem tudo ia bem: o Produto Interno Bruto (PIB) caiu em relação aos anos anteriores, os investimentos e o consumo também, a China desacelerou, os resquícios da crise econômica de 2008/2009 tiveram “novo repique na Europa em 2011, levando a zona do euro à recessão [...] e o fraco crescimento mundial não ajudou” (SAFATLE, BORGES, OLIVEIRA, 2016, p.99).

As decisões do governo em relação à economia, principalmente em 2012, foram um dos primeiros pontos de ruptura que geraram a avalanche de acontecimentos subsequentes. Em dezembro de 2012, é citado em documento do governo a expressão “nova matriz macroeconômica” (SAFATLE, BORGES, OLIVEIRA, 2016, p.93). A taxa referencial de juros brasileiros, a Selic, sofreu uma queda de 12,5% para 7,25% e alcançou “o menor nível no Brasil em todos os tempos” (AB’SÁBER, 2015, p.27). A posterior manutenção da taxa nesse patamar revelou que “o governo de Dilma Rousseff afirmava com muita força uma concepção de política econômica, e modo de funcionar, que o destacava da tradição de facilitação dos interesses bancários, muito própria de nossa democracia” (ibidem, p.27). A aprovação popular da presidenta, contrariando esses indicadores, atingiu o recorde em março de 20134, superando seus antecessores.

Além da manutenção da taxa de juros, a nova matriz macroeconômica previa incentivos de crédito, baixas taxas de câmbio, geração de empregos, alta de produção industrial e crescimento econômico generalizado. Por uma confluência de fatores, a previsão não se confirmou e mesmo com as mudanças implementadas em 2015, com uma política de corte expressiva, no momento do afastamento da presidenta, a economia não possuía bons

3 Transcrição de: 'Indicadores mostram a economia melhorando', avalia Miriam Leitão. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/6303015/programa/>; acesso em 04 de janeiro de 2018.

4 CAMPANERUT, C. Dilma é aprovada por 79% e supera Lula e FHC, diz CNI/Ibope. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/03/19/dilma-cni-ibope.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 04 de janeiro de 2018.

indicadores: recessão batendo recorde, dívida do setor público em 4,2 trilhões de reais, inflação e desemprego (SAFATLE, BORGES, OLIVEIRA, 2016, p.313). E a crise econômica continuou mesmo após a troca de Rousseff por Temer: “O número de desempregados aumentou e passa de 12 milhões. A inflação foi debelada abaixo de dois dígitos [...]. A proletarização das classes C e D retornou. O déficit público aponta riscos”5.

O que a política econômica dos governos Lula conseguiu, aumento exponencial do crescimento, consumo expressivo, investimento em programas sociais, expansão das universidades públicas, FIES, REUNI, Ciência sem Fronteiras, deixou um legado para o país, mas a um alto custo, segundo alguns economistas, que já era sentido no último ano do mandato (2010): “[...] a virada para a irresponsabilidade fiscal ocorreu no último ano do segundo mandato de Lula. ‘Em 2010, o governo pirou’, disse [Bernard Appy, ex-secretário de política econômica]” (SAFATLE, BORGES, OLIVEIRA, 2016, p.77).

A oscilação entre momentos de esperança e desesperança na economia foi um dos fatores que contribuiu para o sentimento de crise. Se, em 2009, no meio da crise internacional, o país estava bem, quatro anos depois, em 2013, a situação já não era a mesma,6 com um crescimento econômico em 2012 de 0,9%, bem abaixo dos anos anteriores. Além de uma economia suscetível a variações cambiais, alta carga tributária e problemas de infraestrutura considerados obstáculos a investimentos por parte do empresariado, a perda do poder de compra, a inflação crescente, aumento nas tarifas de transporte e a percepção da corrupção pelas/os cidadãs/os também foram fatores alardeados nas manifestações de 2013.

A dimensão econômica compreende o desempenho inferior nos mandados de Dilma se comparado à pujança da era Lula. A queda no crescimento astronômico do PIB, a alta da inflação, a influência da crise internacional, a elevação dos juros e a baixa arrecadação culminaram em desemprego, recessão, desindustrialização e baixo percentual de investimentos7. Do mesmo modo que Lula não é responsável pelas benesses sozinho, Dilma também herdou problemas das administrações anteriores que se aprofundaram durante seu governo.

Além disso, somente o aspecto financeiro não é relevante o suficiente para determinar a saída de um/a presidente/a. Se lembrarmos o segundo mandato de FHC, também observamos indicadores ruins:

5 KARNAL, L; Dores de um parto incerto; Le Monde Diplomatique, Abril/2017, p.7.

6 O BRASIL estragou tudo, questiona The Economist. Folha de São Paulo, Disponível em

<http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/09/1347724-brasil-estragou-tudo-questiona-revista-economist.shtml>. Acesso em 10 de maio de 2017.

A reversão do bom momento vivido pela economia brasileira foi causada por uma combinação de choques adversos nos terrenos externo e doméstico: a crise de oferta de energia elétrica (“apagão”), a desaceleração da economia norte-americana, a crise da economia argentina, os atentados de 11 de setembro e os escândalos contábeis que afetaram empresas norte-americanas. Tal sucessão de eventos depreciou fortemente o câmbio e fez retrair os investimentos produtivos (OLIVEIRA, TUROLLA, 2003, p.209)

Além da economia, outros componentes da crise que culminou no impeachment são a tematização da corrupção, o acirramento dos debates e a intolerância que desaguaram na polarização das posições e opiniões políticas, além da dificuldade da petista em adentrar ao jogo político. Esses elementos de ordem mais subjetiva, segundo Napolitano (2016), contribuíram sobremaneira para o contexto do impedimento e serão discutidos a seguir.

1.2 A POLARIZAÇÃO POLÍTICA

Nos últimos anos, vimos algumas mudanças na maneira de as pessoas se relacionarem com a política, com os processos de tomada de decisão e com aqueles e aquelas que governam.

Na Copa das Confederações, em 2013, o cenário midiático passou a reportar mais de perto alguns problemas denunciados pela sociedade em relação aos megaeventos, com as manifestações de movimentos sociais, bem como a atuação do COPAC: as famílias obrigadas a serem remanejadas, as denúncias de superfaturamento nas obras, os prazos estourados se juntaram a outras demandas da população e constituíram momentos de tensão no ano de 2013. É importante destacar que o fenômeno que ficou conhecido como as jornadas de junho não foi uniforme em todo o país e que seu início é bastante difuso8: “[...] foram uma multiplicidade ambivalente de protestos com um grande número de pessoas em mais de uma centena de municípios do país.” (MENDONÇA, 2017, p.141).

O protesto que envolveu violência policial e mobilizou bastante a população nacionalmente ocorreu em São Paulo no dia 17 de junho e teve como principal demanda abaixar as tarifas de transporte de ônibus. O que aconteceu depois (e antes) em São Paulo e outras cidades do país, como Rio de Janeiro, Natal, Goiânia e Belo Horizonte foi o

8 Os acontecimentos ficaram conhecidos como jornadas após a repercussão e adesão de um grande número de pessoas. Mas é possível rastrear protestos menores sobre a tarifa de transporte, uma das bandeiras iniciais, desde 2012 (RICCI; ARLEY, 2014, p.130).

alargamento das pautas, das insatisfações e da mobilização política através de sindicatos, partidos e organizações como a APH. Mas, quando falamos em jornadas, estamos nos referindo a mais do que apenas uma manifestação ou uma pauta: “Quando pensamos nas manifestações que aconteceram em 2013, evocamos antes de tudo sua concretude – a maneira como “coisas” aconteceram e afetaram o ambiente à nossa volta.” (FRANÇA, BERNARDES, 2016, p.11). As jornadas são um marco temporal importante no contexto anterior ao impeachment e, de alguma forma, despertaram a atenção para processos sociais que já vinham acontecendo9.

A crise urbana (transporte, moradia, violência, cidadania) frente aos megaeventos, a crise econômica e a crise política e de representação parecem ser alguns dos elementos que contribuíram para o que se passou. Também se fortaleceu a rejeição de formas de organização políticas tradicionais, com vários cartazes enunciando o “Fora todos” ou “Fulano não me representa”, o fortalecimento da ação coletiva dos black blocs, de grupos anarquistas, de pessoas que não tinham nenhum envolvimento com instituições políticas e mesmo assim foram às ruas.

O sentimento de descrença também pode ser captado por discursos anti-políticos e anti-partidários, como se viu nas manifestações, pela tentativa de alguns movimentos sociais de se distanciarem de partidos tradicionais (o que ocorreu nas eleições municipais de 2016) e pela emergência de candidatos ditos “independentes”, como João Dória, em São Paulo, e Alexandre Kalil, em Belo Horizonte. Ambos foram eleitos prefeitos apoiados em campanhas que se aproveitavam do sentimento de ojeriza da população em relação à política tradicional e mobilizavam uma imagem ancorada em características da personalidade (eficiência em gestão e administração) a fim de conseguir votos.

O caminho que a opinião pública10 trilhou em todo esse contexto foi o da polarização política, do acirramento dos ânimos. A tematização da política ampliada pelas

9 Para aprofundamentos em relação à temática das jornadas de junho cf. NOGUEIRA, 2013; RICCI, ARLEY, 2014; RODRIGUES, 2015; FRANÇA, BERNARDES, 2016; MENDONÇA, 2017; SARMENTO, REIS, MENDONÇA, 2017.

10 A discussão teórica sobre o conceito de opinião pública é vasta e se desdobra em várias possibilidades a depender do campo. Na ciência política, por exemplo pode-se discutir o conceito relacionando-o às pesquisas de comportamento eleitoral. Os trabalhos de Habermas também versam sobre a opinião pública de outro lugar, exaltando os argumentos racionais e o debate público como essenciais para a formação do conceito. Nesta dissertação, utilizamos a formulação de Walter Lippman sobre “opinião pública”: “Aqueles aspectos do mundo exterior que têm a ver com o comportamento de outros seres humanos, na medida em que o comportamento cruza com o nosso, que é dependente do nosso, ou que nos é interessante, podemos chamar rudemente de opinião pública. As imagens na cabeça destes seres humanos, a imagem de si próprios, dos outros, de suas necessidades, propósitos e relacionamento, são suas opiniões públicas. Aquelas imagens que são feitas por grupos de pessoas, ou por indivíduos agindo em nome dos outros, é Opinião Pública com letras maiúsculas” (LIPPMANN, 2008, p.40).

redes sociais digitais trouxe um novo nível de midiatização, com atualizações constantes de operações contra corrupção, denúncias contra o governo, delações premiadas, vazamentos de áudios de figuras importantes da política e uma enxurrada de conteúdos que contribuíram para a exaltação das pessoas e para a formulação desses discursos em torno e sobre o governo.

As eleições de 2014, logo após a Copa, foram marcadas por essa superexposição dos/da candidatos/a e pelas tensões entre os vários lados (que, em determinados momentos, se resumiam a dois, direita e esquerda, e, em outros, se ampliavam para vários lados, reacionários, conservadores, progressistas, liberais, “coxinhas” e “petralhas”). Tais tensões persistiram até o impeachment em 2016 – e ainda hoje.

Jessé Souza (2016) apresenta a tese de que as reais motivações para o impeachment seriam os interesses da classe dominante, a elite do dinheiro, e que o argumento da corrupção serviria de fachada na construção de um “outro” que precisa ser combatido, o que geraria uma polarização. Para o sociólogo, o sistema capitalista é responsável por criar elites em vários sentidos, mas a única que realmente importa é a controladora dos recursos financeiros e é esta que articula as outras esferas de acordo com seus interesses.

Pode-se fazer uma crítica ao posicionamento do pesquisador em relação a sua visão dos meios de comunicação. Souza (2016) defende que a população seria manipulada pela mídia e que o argumento da corrupção teria sido incutido em “massas imbecilizadas”. O olhar uniforme sobre um fenômeno complexo como os meios de comunicação e sua relação com a sociedade acaba sendo redutor e extremamente simplificador da realidade. Atribuir a jornais, rádios, televisões, veículos na internet poderes sobrenaturais é desconsiderar a intrincada rede de relações e poderes na qual a mídia está inserida, bem como as relações de trabalho, certas restrições e constrangimentos que a perpassam (GOMES, 2004) . É desconsiderar que os meios de comunicação não existem fora da vida social, estão assentados em um mundo real, feitos por pessoas diferentes; é desconsiderar também a capacidade reflexiva dos receptores e receptoras que consomem as informações.

Apesar de construir uma perspectiva restrita e negativa dos meios de comunicação, da qual discordamos, o pesquisador tem contribuições a trazer sobre o contexto contemporâneo especialmente nas elaborações sobre a classe média11 e seu papel no processo de deposição de Dilma. Além disso, ele aponta questões pertinentes em relação ao avanço de

11 O conceito de “classe média” é polêmico, pois os critérios de classificação podem ser de ordens variadas e vir de diferentes lugares: institutos de pesquisa, mercado, sociologia, demografia. Neste trabalho, entendemos que “Uma classe social não é um dado fixo, definindo apenas pelas determinações econômicas, mas um sujeito

social, político, moral e cultural que age, se constitui, interpreta a si mesma e se transforma por meio da luta de classes. Ela é uma práxis, um fazer histórico” (CHAUI, 2016, p.19, grifos da autora).

ideologias conservadoras, de uma direita organizada, que parecia inexistente e retorna fortalecida no cenário atual.

A classe média, segundo Souza (2016), foi um fator determinante no jogo político neste momento quando, de alguma forma, adotou o discurso da corrupção. A partir da ascensão de uma parcela antes excluída da população através de políticas públicas (de transferência de renda, cotas, etc.), o poder de compra dessas pessoas aumentou e houve o que se chamou de inserção pelo consumo, além de acesso a espaços físicos e simbólicos antes proibitivos. Souza argumenta que essa dinâmica gerou uma reação conservadora de setores médios da sociedade, que se alinham por identificação à parcela mais rica, e a tentativa de manter o status quo.

Racionalmente, essa reação não é exposta, mas Souza (2016, p. 82) identifica que

Existia um desconforto difuso na classe média tradicional que não pode ser apenas compreendido com motivos racionais. Em grande medida, a maior proximidade, tanto física quanto de hábitos de consumo, [...] precipitou e explicitou publicamente um racismo de classe antes silencioso e exercido somente no mundo privado.

A ideia de Souza de racismo de classe é o preconceito existente das classes do privilégio (média e alta) para com as classes populares. E a manutenção desses privilégios acaba reverberando na realidade e construindo uma distância cada vez maior entre os grupos e refletindo em fatos: maior incidência de condenação pelos mesmos crimes nas classes populares, desprezo e ódio aos marginalizados, violência policial desproporcional. Por outro lado, podemos matizar essa homogeneização da classe média ao lembrar das manifestações durante o processo e alegar que, na verdade, o que se viu foram disputas de setores da classe média: o MPL (Movimento Passe Livre) que encabeçou as primeiras manifestações de junho/2013 é um movimento de classe média, assim como o MBL (Movimento Brasil Livre) e a grande maioria que saiu às ruas.

Marilena Chaui (2016) também elabora sobre a classe média e ajuda a compreender o pensamento de Souza (2016) quando desloca o conceito de uma posição política ou econômica, para um lugar diferente. A autora argumenta que os critérios que definem a classe média, advindos principalmente dos EUA, não abarcam a complexidade do fenômeno brasileiro. Em nosso país, a classe média estaria fora da classe detentora dos recursos produtivos e fora da classe trabalhadora, economicamente falando. Em termos políticos, não está no Estado e nem organizada em sindicatos, como a classe trabalhadora classicamente se agrupa. Dessa forma, “Isso a coloca numa posição que a define não somente

por sua posição econômico-político, mas também e sobretudo por seu lugar ideológico – e este tende a ser contraditório” (CHAUI, 2016, p.19).