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2. REPRESENTAÇÃO E IMAGEM PÚBLICA

2.2 R EPRESENTAÇÃO

2.2.3 Representação como conjunto simbólico

Quando pensamos em representação como conjunto simbólico, estamos considerando a representação como algo que substitui alguma coisa, está no lugar de algo e por isso tem significado:

Se as tomamos, inicialmente, como redes de significados que permeiam um contexto, podemos pensar nas inúmeras representações que irrigam nossa vida prática: provenientes da família, do mundo do trabalho, dos valores sociais, das profissões, das cidades, da mídia. Essas redes simbólicas são construídas pelos indivíduos na configuração do mundo intersubjetivo (SIMÕES, 2010, p.1)

Neste agrupamento, o conceito se aproxima de signo, de imaginário, de linguagem, e vários autores trabalharam nessa chave de pensamento. Podemos considerar que o conceito de representação nesse sentido está relacionado ao conceito de experiência, como articula Simões (2010, p.5): “As representações podem ser entendidas como universos simbólicos que emergem a partir da experiência” dos sujeitos no mundo.

Alguns autores que utilizam a noção de experiência que trazem contribuições para refletir sobre sua relação com a linguagem são Peter Berger e Thomas Luckmann, na matriz da sociologia do conhecimento e da fenomenologia. Pensadores da linguagem assentada em um contexto social, eles configuram uma teoria sobre a interação e a convivência como responsáveis por criar a realidade. São as falas, escritas e discursos do/no mundo que fazem as coisas existirem e são transmitidas de geração em geração num processo de construção da realidade: “a linguagem é capaz de se tornar o repositório objetivo de vastas acumulações de significados e experiências [...].” (BERGER; LUCKMANN, 1985, p.57)

Berger e Luckmann, na obra A construção social da realidade, também abordam a questão das representações de duas maneiras: as tipificações e as representações como coletivas. Os tipos são como elementos componentes dos sentidos compartilhados utilizados quando estamos em contato com pessoas e coisas e as reduzimos a características mais evidentes: nacionalidade, aparência, gostos.

A realidade da vida cotidiana contém esquemas tipificadores em termos dos quais os outros são apreendidos, sendo estabelecidos os modos como "lidamos" com eles nos encontros face a face. Assim, apreendo o outro como "homem", "europeu", "comprador", "tipo jovial", etc. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p.49).

A segunda apreensão de representação para os autores advém da maneira como estabelecem sua teoria fenomenológica do conhecimento. Eles estão falando de representações sociais como o campo da psicologia social41 o apreende atualmente, ou seja, coletividades e sociedades sendo ativas no processo de construir conhecimento no senso comum e as afetações disso na realidade. É interessante notar que a característica forte do conceito aqui é ser compartilhado socialmente. Isso nos induz a outro eixo de pensamento que também leva em conta o compartilhamento, mas partindo de outros lugares

É Stuart Hall, que desenvolve sua teoria sobre as representações estabelecendo ligações entre esse conceito, a linguagem e a cultura, e sedimentando alguns dos pilares das análises culturalistas:

Mas o que a representação tem a ver com “cultura”? [...] cultura diz respeito a “significados compartilhados”. Ora, a linguagem nada mais é do que o meio privilegiado pelo qual “damos sentido” às coisas, onde o significado é produzido e intercambiado. Significados só podem ser compartilhados pelo acesso comum à linguagem. Assim, esta se torna fundamental para os sentidos e para a cultura e vem sendo invariavelmente considerada para o repositório-chave de valores e significados culturais (HALL, 2016, p.17).

É através dessa articulação, feita por Stuart Hall entre cultura, linguagem e representação que situamos o processo de construção das representações que conformam imagens públicas. Por isso, é importante desenvolvermos alguns pontos sobre o conceito tal como elaborado por Hall. Autor do texto Codificação/Decodificação, importante na construção de uma concepção de comunicação preocupada com o papel da recepção no processo e que critica o paradigma informacional,42 Stuart Hall é expoente dos Estudos Culturais, matriz de pensamento fundamental na consolidação de estudos sobre representações simbólicas culturais e produtos da cultura popular.

O conceito de cultura adotado nessa perspectiva, segundo França e Simões (2016, p.148), “diz respeito a toda produção de sentido que emerge das práticas vividas dos sujeitos. Ou seja, ela não engloba apenas textos e representações, mas toda a dimensão simbólica que constrói a experiência ordinária dos indivíduos”. O contexto social, as relações de poder e os constrangimentos estruturais também são levados em consideração nas análises devido às

41 Para esclarecimentos sobre a teoria das representações sociais e a aplicação no campo da psicologia cf. Souza Santos e Almeida (2005).

42 O paradigma informacional orienta algumas correntes teóricas na comunicação e pode ser resumido na dinâmica emissor-receptor, marcada pela unilateralidade, pela linearidade e pela visão transmissiva do processo. Essa visão de comunicação é encontrada nas análises da Mass Communication Research, por exemplo. Cf. França e Simões (2016), Rodrigues (2011).

bases marxistas e gramscianas utilizadas por essa matriz. Kellner (2001) apresenta o panorama da importância dessa mudança de paradigma ao olhar para a mídia e a cultura, considerando as rivalidades e as lutas travadas nas arenas comunicativas.

As situações locais, nacionais e globais dos nossos dias são articuladas entre si por meio dos textos da mídia; esta, em si mesma, é uma arena de lutas que os grupos sociais rivais tentam usar com o fim de promover seus próprios programas e ideologias, e ela mesma reproduz discursos políticos conflitantes [...]. As lutas concretas de cada sociedade são postas em cena nos textos da mídia [...]. A cultura nunca foi mais importante, e nunca antes tivemos tanta necessidade de um exame sério e minucioso da cultura contemporânea (KELLNER, 2001, p.32).

Sobre as representações, o autor e outros/as pesquisadores/as da matriz dos Estudos Culturais abordam a questão, associando-as às práticas culturais que estão imbricadas em seu processo de produção e recepção, para além de as perceberem como elementos construídos na linguagem: “Hall está entre aqueles que conceituam representação como uma construção social, ou seja, como sendo realizada através daquilo que ele chama de um mapa conceitual (1997)” (ROCHA, 2008, p.88). Por isso, é importante apresentarmos as três teorias que Hall destaca no estudo das representações: a reflexiva, a intencional e a construtivista.

A abordagem reflexiva é a que compreende a linguagem como mimese da realidade. Através da fala e da escrita, estaríamos refletindo o mundo real na íntegra. A crítica de Hall (2016, p.47) é à falta da ideia de signo na abordagem e à falta de explicação para nossa compreensão de coisas que não existem, mas sobre as quais podemos falar.

O segundo grupo, que aborda a representação como intencional, credita aos indivíduos a intenção ao pensar e falar o real, de modo que cada pessoa se expressaria de forma única. As críticas seguem no sentido de que deve haver no mínimo algum senso de compartilhamento na linguagem, ou se não, não nos faríamos entender nem entenderíamos outras pessoas. Para o autor, cultura pressupõe algum grau de sentidos que sejam coletivos.

A terceira linha, a construtivista, é a que o autor defende e a que considera tanto o mundo material como o mundo simbólico comunicado pelos indivíduos como partes do processo de construção de representações. Segundo o autor:

São os atores sociais que usam os sistemas conceituais, o linguístico e os outros sistemas representacionais de sua cultura para construir sentido, para fazer com que o mundo seja compreensível e para comunicar sobre esse mundo, inteligivelmente para outros (HALL, 2016, p.48).

Essa ideia de representação faz parte do circuito da cultura desenvolvido por Hall (2016). O circuito é a concepção da cultura como um processo integrado por vários componentes e que tomaria forma na sociedade. Ele foi ilustrado como um círculo composto por cinco elementos interligados e que se afetam mutuamente: produção, consumo, regulação, representação, identidade. Através desses entrecruzamentos e afetações, estaria constituído o processo pelo qual a cultura se materializa na vida cotidiana e na sociedade.

Assim como Hall coloca, as representações podem ser várias e multifacetadas e não conseguimos captar seu sentido de forma completa imediatamente:

quando falamos de representação, não falamos de algo claro, objetivo e identificável, mas, ao contrário, de um fenômeno que, na sua dupla natureza (instauração de sentidos, inscrição material), sofre permanentes alterações tanto na sua dimensão simbólica quanto nas suas formas concretas de manifestação (aparição sensível) (FRANÇA, 2004, p.18).

Como podemos observar, a incapturabilidade do fenômeno acaba sendo profícua para o desenvolvimento de várias frentes de compreensão das representações. Elas também podem ser compreendidas como quadros de sentido, espelhar vivências diferenciadas, imagens visuais materializadas nos discursos, estereótipos ou ficções, de acordo com França (2004, p.16-18). Esses outros significados demonstram como o conceito é plural e faz referência a diferentes campos do conhecimento. Iremos discorrer brevemente sobre os cinco eixos que as representações podem assumir na reflexão da pesquisadora.

O primeiro eixo destacado por França (2004, p.16), o do quadro de sentidos, caracteriza as representações como grandes enquadramentos sociais compartilhados. Se pensarmos que as ideias atreladas a determinadas representações sofrem mudanças com a atualização constante dos valores das sociedades, podemos dar o exemplo da representação da elegância. Durante as décadas de 1920 a 1940 existia uma glamourização do cigarro e do ato de fumar. A associação deste valor da época aos anúncios publicitários e à indústria cinematográfica criou certa representação de homens e mulheres que conectava a ideia de sofisticação ao tabagismo. Com a atualização dos valores compartilhados, fumar deixou de ser algo associado intimamente à elegância e foi substituído por valores ligados ao cuidado com o corpo (saúde, alimentação e atividade física) tão em voga num momento de selfies e exposição constante nas redes sociais. Esse processo atualiza as representações relacionadas à elegância e à beleza.

O segundo eixo seria o que diz das representações que “espelham vivências específicas dentro de determinadas sociedades” (FRANÇA, 2004, p.16). A pesquisadora dá o exemplo das diferentes maneiras como a violência é percebida, sentida e vivida no mesmo local. Outro exemplo de representações que ganham contornos específicos, a depender das experiências e vivências, é a representação policial. A vivência de cada sujeito, especialmente se marcada por recortes de classe e cor, afeta a relação com a polícia na sociedade brasileira, o que se reflete em representações da instituição muito diferenciadas seja em produtos midiáticos ou em conversações sobre o tema.

As representações como imagens visuais conformam a terceira abordagem explicitada por França (2004). Neste grupo, estão os ícones, celebridades emblemáticas de uma época ou estilo de vida, ou anônimos e anônimas que dão significado e sintetizam uma ideia que seja convocadora das pessoas, que dizem algo. A fotografia da criança síria que morreu afogada numa praia e rodou o mundo é um exemplo trágico de imagem visual que representa e traz à tona vários sentidos. Alguns sentidos evocados são: o grave problema humanitário dos refugiados da guerra da Síria, a luta pela sobrevivência, o desespero da família, os extremos a que são levadas pessoas em situação de risco que moram em zonas de conflito. Outras imagens visuais fortes e compartilhadas normalmente dizem respeito a desastres naturais como o tsunami no Oceano Índico e o furacão Katrina, que ocorreram há mais de dez anos, mas continuam povoando nosso repertório simbólico de representações.

Estereótipos também podem ser uma maneira diferente de representação quando resvalam para uma tipificação extremada. Segundo a pesquisadora, são as características que saltam aos olhos destacadas e definidoras de uma pessoa ou situação, e justamente por ignorar outras características, podem escorregar para o preconceito e a discriminação facilmente. Walter Lippmann, na obra Opinião pública, desenvolve uma seção sobre os estereótipos na qual explica sua utilização por três motivos: o estereótipo consistiria em uma economia de esforço e tempo; uma defesa da tradição/posição pessoal; e uma forma de preservar nosso olhar da completude do mundo, e aqui o mundo com toda sua complexidade acaba sendo uma distração (LIPPMANN, 2008). O autor também reconhece que eles estão carregados de sentimentos e não são neutros. Somos expostos regularmente a representações estereotipadas de gays e lésbicas em produtos televisivos, por exemplo, reduzindo essa parcela da população a algumas caricaturas.

Por fim, o último eixo abordado por França (2004) é o das ficções. As representações também são encontradas em novelas, livros, filmes, quadrinhos, ao darem forma a personagens que sintetizam algum papel social encontrado na realidade e que podem

trazer problemas públicos à tona, levantar o debate, se tornarem clichês e/ou representarem poucas pessoas.

O que França (2004) deixa claro é a falta de um conceito de representação fechado e claro, uma tradução exata, mas a existência de possibilidades ao concluir que "Representações, portanto, existem 'processadas' por filtros cognitivos dos indivíduos e no contexto de suas experiências e relações; elas existem dentro e enquanto práticas comunicativas” (FRANÇA, 2004, p.22). E reforça que esses sentidos de representação evocam um compartilhamento do que se entende por cada um deles com a comunidade, só entendemos cada uma destas definições pois partilhamos desses conjuntos simbólicos, da cultura e da linguagem.

Essa seção tenta deixar mais claras as possibilidades do conceito de representação. No primeiro eixo, a representação política traz o cargo da presidência e o processo de eleição como elementos que atribuem sentido às imagens de ambos políticos que serão aqui analisadas, além de suscitarem o problema da sub-representação feminina na política de forma mais ampla. O segundo eixo, ao observar a representação como performance, nos ajuda a situar elementos da ordem dos gestos, das emoções e figuração em papeis sociais como caracterizadores das representações e imagens de ambos. O último eixo traz a dimensão do simbolismo partilhado como essencial na formação de representações como as entendemos, não como individuais, encerradas nas mentes de cada sujeito, mas relacionais e imbricadas na cultura, reveladoras de valores e expressões sociais.

Entendemos, assim, que as revistas semanais constroem diferentes representações de Dilma Rousseff e Michel Temer, as quais participam da construção de suas imagens públicas. É, pois, na articulação entre esses dois conceitos – representação e imagem pública – que buscamos a formulação da grade analítica desta pesquisa no intuito de responder a nossa pergunta de pesquisa: como são construídas as imagens públicas de Dilma Rousseff e Michel Temer nas revistas Veja e Carta Capital durante o processo de impeachment e o que isso revela do cenário brasileiro contemporâneo?

O terceiro capítulo da dissertação explora o desenho metodológico que advêm dos dois capítulos teóricos: uma análise de enquadramento do impeachment e uma análise das representações de Dilma e Michel nas revistas.