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CAPÍTULO 4 Plano de coerência conceitual para pensar políticas públicas 128

4.1.4 Cartografia das convergências de narrativas

Nesse movimento de pesquisa foi realizada a convergência das narrativas dos mapas cartográficos com as práticas de saúde no território prisional. Para não

reduzir a pesquisa às perspectivas dos gestores, foi necessário incluir outras narrativas, só que agora na perspectiva do território. Como toda política pública se materializa num território, para o qual ela foi destinada, nada mais pertinente do que acompanhar como a política de saúde prisional se expressa no seu território.

Para produzir a convergência das narrativas com o território prisional foi necessário lançar mão de outra técnica de pesquisa que pudesse complementar a narrativa de pesquisa acadêmica. Para tanto,

apostamos numa importante inflexão metodológica. Achamos que para produzir uma amplificação das narrativas seria necessário trabalhar com uma metodologia que produzisse uma convergência de narrativas. A narrativa acadêmica e cientificista da pesquisa precisaria convergir e se integrar a outras narrativas, em especial à narrativa audiovisual. (BRASIL, 2016, p. 25).

Utilizando a linguagem audiovisual como dispositivo de pesquisa cartográfica fizemos convergir as narrativas sobre a saúde no sistema prisional com as práticas realizadas no território prisional. Junto com a equipe técnica da Coordenação Geral da Pessoa Privada de Liberdade no Sistema Penitenciário foi decidido que o território a ser cartografado seria no Rio Grande do Sul, já que nesse estado brasileiro as práticas de assistência à saúde para as pessoas privadas de liberdade melhor expressavam a política de saúde para o sistema prisional proposta pelo governo federal aos estados e municípios. O território escolhido envolveu o Presídio Central, Penitenciária Feminina Madre Pelletier, Unidade de Saúde Costa e Silva – Gerência de saúde Comunitária Grupo Hospitalar Conceição – GHC, Hospital Sanatório Partenon (HSP) e a ONG Igualdade-RS.

A partir de todo o acúmulo adquirido no processo cartográfico foi decidido que os temas de convergência a serem abordados seriam: 1 - do PNSSP à PNAISP 2- doenças infectocontagiosas (HIV-AIDS e tuberculose) 3- Relação entre saúde pública e segurança pública. 4 - Saúde da mulher transversal à saúde prisional 5 - Participação social (movimento LGBT e luta Antimanicomial). O pano de fundo para abordar esses temas foi a inclusão da população privada de liberdade no SUS.

Nessa etapa, a cartografia ganhou ares de curadoria a partir da roteirização do processo de documentação audiovisual. Assim, foram realizadas visitas na cidade de Porto Alegre-RS para cartografar os movimentos da rede de saúde, na qual estava inserida a população prisional. Isso gerou um pré-roteiro que norteou a equipe de filmagem no território prisional. Desta forma, nos dedicamos à produção audiovisual (hipervídeos) que possibilitou a transversalidade das narrativas do processo cartográfico. (O hipervídeo está disponível em

<http://www.redesestrategicassus.org/#/home> acessado em 07 out 2017).

Portanto, a combinação da genealogia com a cartografia permitiu delimitar o plano coletivo das forças e das formas; estabelecer as relações entre forças instituintes, forças reformadores e forças instituídas; vivenciar as intensidades do processo de individuação da política de saúde para o sistema prisional brasileiro. Em suma, circunscrever o coletivo transindividual da saúde para o sistema prisional.

4.2 Experiências metodológicas da cartografia da PNAISP

Na experiência cartográfica delimitamos o plano coletivo das forças utilizando o procedimento genealógico/cartográfico. Tomando a política de saúde para o sistema prisional como a superfície de pesquisa para pensar a construção de políticas públicas cabe, então, acessar/construir tal plano de forças que envolve essa superfície, por meio dos discursos encontrados nos documentos bibliográficos, entrevistas e falas relevantes de reuniões que nos serviram para construir mapas vivos dos processos cartográficos contendo a memória discursiva acerca da saúde no sistema prisional.

Como já vimos, a cartografia é realizada por meio de pistas para acompanhar processos. Assim sendo, utilizando os achados das entrevistas articulados com a pista dos considerados das legislações, principalmente aquelas relativas à saúde no sistema prisional, percebemos uma multiplicidade de forças que constituía o plano coletivo da saúde para o sistema prisional. Os ―considerados‖ das legislações são a parte textual que justifica as razões pelas quais a norma está sendo instituída. Eles

são elementos que remetem ao plano coletivo das forças. No caso da experiência cartográfica metodologicamente utilizamos os considerados como pistas a serem seguidas. Vejamos um exemplo desse procedimento.

A Portaria Interministerial nº 2.035, de 8 de novembro de 2001. (Ministérios de Saúde e da Justiça) considera que:

os Ministros de Estado Interinos da Saúde e da Justiça, no uso de suas atribuições, considerando as condições desfavoráveis de habitabilidade e salubridade da maioria das unidades prisionais do País, bem como as elevadas taxas de prevalência de infecção pelo HIV, AIDS, tuberculose, hepatites e outras doenças sexualmente transmissíveis e infectocontagiosas no âmbito do Sistema Penitenciário Nacional, resolvem:

Art. 1º Instituir Comissão Interministerial com a atribuição de definir estratégias e alternativas de promoção e assistência à saúde no âmbito do Sistema Penitenciário Nacional [...]. (BRASIL, 2001b, p. 32).

O considerando dessa portaria indica os agravos de saúde relativos às doenças sexualmente transmissíveis e infectocontagiosas nas unidades prisionais como um problema a ser combatido pelo governo. Essa indicação foi tomada como pista para a cartografia (pista doenças infectocontagiosas), pois sinaliza um ponto de tensionamento no plano coletivo das forças relativo ao tema geral da saúde no sistema prisional.

Apoiado no procedimento cartográfico seguimos a potência da pista doenças infectocontagiosas. Tal pista nos levou a outros setores e atores em busca dos tensionamentos que ela indicava. Por meio de entrevistas construímos um fragmento de memória de tal pista que entre outras coisas dizia:

naquela época, inclusive havia um [grupo de trabalho] GT (...), com a participação do Ministério da Justiça, que discutia tuberculose, HIV/AIDS, hanseníase. E esse era um GT que funcionava. Ele era informal e as pessoas se encontravam pra compartilhar experiências, conhecimentos e talvez encaminhar umas questões, algumas decisões. (...) tinha a participação do DEPEN48, a participação da área técnica aqui [ATSSP49], do

48Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Pertence ao Ministério da Justiça.

49Área Técnica da Saúde no Sistema Penitenciário (ATSSP)

CNPCP50, do pessoal da tuberculose, do pessoal da área de HIV/AIDS, do pessoal que trabalhava com hepatites virais e também com a Saúde Mental.

(INFORMAÇÃO VERBAL)51.

Esse fragmento de memória confirmava a preocupação específica com os agravos de saúde relativos às doenças infectocontagiosas nos presídios. Assim, a potência da pista foi afirmada. Isso não significa dizer que essa foi a única estratégia utilizada na experiência cartográfica da saúde para o sistema prisional, já que o inverso também acontecia. A partir dos discursos colhidos nas entrevistas se chegava às legislações importantes, como também a posicionamentos políticos defendidos pelos técnicos.

Por exemplo, no que diz respeito ao problema de DST/AIDS no país, a resposta nacional foi construída com a participação efetiva do movimento social aqui representado por organizações não governamentais ONGs, que junto com os poderes instituídos faziam chegar aos presídios as ações de saúde necessárias para combater o problema no sistema prisional. Como vimos no primeiro capítulo este foi o caso do projeto Arpão. O mesmo podemos afirmar da ONG Igualdade-RS que criou no presídio central de Porto Alegre a ala destinada à população LGBT.

Essas ações para serem efetivadas nos presídios dependiam da anuência dos poderes instituídos locais (estados e municípios), particularmente aqueles do âmbito da segurança pública, já que se trata de uma seara delicada, pois a segurança no sistema prisional é privilegiada em relação à saúde.

A pista (movimento social) indicou a necessidade de se prestar atenção na participação dos movimentos sociais na construção da PNAISP, já que emerge transversalmente ao antagonismo entre saúde e justiça. Essa conjuntura mostra que, as forças instituintes sempre presentes nas problematizações fazem emergir novos problemas, até então não existentes.

A tensão entre saúde e justiça foi outra pista na experiência cartográfica. Essa tensão antagônica constitui um platô, no qual foi instituída a Comissão

50Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)

51 Entrevista realizada com o coordenador adjunto da ATSSP em 2013.

Interministerial MS/MJ, que elaborou o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP) instituído em 2003, assim,

o Ministro de Estado da Saúde e o Ministro de Estado da Justiça, no uso de suas atribuições, considerando:

- A importância da definição e implementação de ações e serviços, consoantes com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde SUS –, que viabilizem uma atenção integral à saúde da população compreendida pelo Sistema Penitenciário Nacional, estimada em mais de 200 mil pessoas, distribuída em todas as unidades federadas;

- A estimativa de que, em decorrência de fatores de risco a que está exposta grande parte dessa população, ocorra um número significativo de casos de DST/AIDS, tuberculose, pneumonias, dermatoses, transtornos mentais, hepatites, traumas, diarréias infecciosas, além de outros problemas prevalentes na população adulta brasileira, tais como hipertensão arterial e diabetes mellitus;

- A necessidade de ações de promoção da saúde e de prevenção de doenças nos presídios;

- A importância da realização de estudos de abrangência nacional que revelem o perfil epidemiológico da população presidiária brasileira;

- A heterogeneidade, entre as unidades federadas, da assistência à saúde prestada às pessoas presas, e

- As recomendações da Comissão Interministerial, criada pela Portaria Interministerial MS/MJ nº 2035, de 8 de novembro de 2001, com a atribuição de formular propostas destinadas a viabilizar a atenção integral à saúde dessa população, RESOLVEM:

Art. 1º Aprovar o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, constante do ANEXO I desta Portaria, destinado a prover a atenção integral à saúde da população prisional confinada em unidades masculinas e femininas, bem como nas psiquiátricas. (BRASIL, 2003a p.1)

O Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP) se institui no governo federal com a intenção de construir a rede de produção de saúde no sistema penitenciário, conforme o SUS, uma vez que as ações de saúde para este território estavam sob a gestão das secretarias de justiça e não das secretarias de Saúde. Isso desestabilizou o jogo de forças antagônico entre saúde e justiça e o sistema penitenciário passou a ser visto como um território para promoção de saúde.

Por exemplo, no Rio Grande do Sul a assistência à saúde para o sistema prisional é conduzida pela secretaria de saúde do estado e não pela secretaria de justiça. Além

disso, esse estado iniciou o processo de municipalização e de co-financiamento de Equipes de Atenção Básica - prisional (EAB p), conforme previstos na PNAISP.

A institucionalização do PNSSP foi o primeiro passo para corrigir o descompasso entre a lógica da saúde prescrita na Lei de Execução Penal (LEP) e a lógica de saúde preconizada pelo Sistema único de Saúde (SUS). Tal passo foi fundamental para iniciar a inclusão das pessoas privadas de liberdade no SUS.

Como não se tratava mais somente dos agravos em saúde relativos às doenças infectocontagiosas, porém de um escopo bem mais amplo foi criada no Ministério da Saúde a Área Técnica da Saúde no Sistema Penitenciário (ATSSP) destinada a gerir o PNSSP e fomentar no país a criação do território prisional como um lugar de promoção de saúde que levasse em consideração a heterogeneidade da população privada de liberdade.

A criação do território de saúde prisional se esbarrou e se esbarra em limites que envolvem o antagonismo entre saúde e justiça que se materializam em problemas de ordem administrativa nas três esferas da federação (federal, estadual e municipal), mas não apenas nesse limite, uma vez que parte da opinião pública na sociedade brasileira tem muita dificuldade de reconhecer as pessoas encarceradas como sujeitos de direito, como ilustrado nas seguintes falas:

[...] como é que a gente observa no país que prospera que prosperou que se desenvolveu que vem crescendo que vem reduzindo misérias que vem reduzindo injustiça social, que no sistema prisional brasileiro esse movimento é muito mais letárgico? (INFORMAÇÃO VERBAL)52

[...] porque é muito difícil reconhecer as pessoas que estão cumprindo pena como sujeitos de diretos. Que o único direito que elas estão privadas e, a principal pena, é ser privada de liberdade. Os demais direitos eles devem estar garantidos. (INFORMAÇÃO VERBAL)53

[...] isso pressupõe o rompimento com algumas barreiras da moralidade da sociedade brasileira, que ainda justifica a presença de situações de violação de direitos humanos ou de negação de acesso à oportunidade de formação e renda, de acesso a processos educativos formativos, acesso à saúde como mais uma injustiça social ou como mais uma punição. Já que errou

52 Informação fornecida por Dário Frederico Pasche. Diretor do Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas - DAPES/SAS/MS. Fala extraída do Hipervídeo disponível em

<http://www.redesestrategicassus.org/#/home> Acessado em 10 out 2017).

53 Informação fornecida por Sandra Maria Sales Fagundes. Secretária Estadual de Saúde do Rio

Grande do Sul. Fala extraída do Hipervídeo disponível em

<http://www.redesestrategicassus.org/#/home> Acessado em out 2017).

ainda será tutelado pelo Estado e viverá um segundo inferno!

(INFORMAÇÃO VERBAL)54

Essa conjuntura que envolve o antagonismo entre saúde e justiça, bem como o antagonismo que expressa a opinião de parte da sociedade que reconhece o direito à assistência à saúde das pessoas privadas de liberdade e parte que não reconhece, coloca para os gestores o desafio de levar para o território prisional o SUS. Isso demonstra que uma política pública é construída a partir desses embates presentes na sociedade.

Portanto, particularmente, o fragmento de memória apresentado articula inicialmente um problema de saúde específico (doenças infectocontagiosas), que dispara ações de governância em torno da saúde geral no sistema prisional, cujo plano de força envolve o antagonismo entre saúde e justiça, por sua vez, transversalizado por movimentos sociais, inicialmente, o movimento LGBT e posteriormente, o movimento de Luta Antimanicomial. Além disso, toda problemática que envolve as mulheres no território prisional, que diz respeito à maternidade e o alto índice de encarceramento. Assim, a combinação entre entrevistas e os considerandos das legislações possibilitou construir pistas para experiência da cartografia da saúde para o sistema prisional.

54 Informação fornecida por Dário Frederico Pasche. Fala extraída do Hipervídeo disponível em

<http://www.redesestrategicassus.org/#/home> Acessado em 10 out 2017).