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CAPÍTULO 2 - Saúde no sistema prisional: cartografia de uma política pública

2.2 Cartografia de um descompasso

entre duas lógicas diversas, que localizamos um dos principais desafios que vêm sendo enfrentados, desde a construção do PNSSP até a PNAISP.

o Ministério da Saúde e o Ministério da Justiça não eram muito presentes;

não atuavam muito nos contextos, [...] não eram interlocutores permanentes. Então, não havia uma ação focada em necessidades locais;

eles não estavam focados em realidades loco-regionais. (INFORMAÇÃO VERBAL)18

Podemos dizer que o resultado desse estudo pôs em análise a relação entre a ATSSP/MS e o DEPEN/MJ que atuavam, cada um, com seu modo particular de gestão do PNSSP no território nacional. Tal análise ―provocou ações que revelavam certa movimentação do Ministério da Justiça em direção à proposta do Ministério da Saúde, para além da questão administrativa, para além daquilo que era controle‖

(INFORMAÇÃO VERBAL)19 para além do que o PNSSP determinava para cada setor. A título de exemplo,

naquela época, inclusive havia um [grupo de trabalho] GT [...], com a participação do Ministério da Justiça, que discutia tuberculose, HIV/AIDS, hanseníase. E esse era um GT que funcionava. Ele era informal, e as pessoas se encontravam pra compartilhar experiências, conhecimentos e talvez encaminhar umas questões, algumas decisões. [...] tinha a participação do DEPEN, a participação da área técnica aqui [ATSSP], do CNPCP, do pessoal da tuberculose, do pessoal da área de HIV/AIDS, do pessoal que trabalhava com hepatites virais e também com a Saúde Mental.

(INFORMAÇÃO VERBAL)20

O descompasso entre as áreas técnicas do MS e do MJ, longe de ser apenas uma questão técnico/administrativa, remetia a um problema ético, jurídico e político relacionado ao descompasso entre a lógica de saúde, proposta pelo SUS, e a lógica da segurança com seu imperativo da clausura, segundo a qual a população privada de liberdade vem sendo tratada no sistema prisional brasileiro em detrimento de ações indispensáveis à preservação dos seus direitos e, principalmente, à sua reabilitação.

18 Entrevista realizada com o coordenador adjunto da ATSSP em 2013.

19 Entrevista realizada com o coordenador adjunto da ATSSP em 2013.

20 Entrevista realizada com o coordenador adjunto da ATSSP em 2013.

A difícil relação entre saúde pública e segurança pública é um problema que já comparecia desde o período de formulação do PNSSP. Por exemplo, a estratégia de construir a Portaria Interministerial dos Ministérios de Estado da Saúde e da Justiça, nº 2.035 de 2001 surge, dentre outras motivações, pela dificuldade que o Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde encontrava para levar as ações de cuidados (distribuir preservativo, ofertar testagem) para o sistema penitenciário. Sobre a tensão existente entre as duas lógicas a assessora técnica do Depto. Vigilância, Prevenção e Controle das DST, AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde/MS relata o seguinte:

essa tensão entre saúde e segurança, ela transita nas várias áreas de atenção, nas várias formas de cuidado. É sempre assim. E a segurança vem sempre em primeiro lugar. Então eu acho que esse é um tensionamento que a gente vai ter sempre. A grande diferença é que, eu acho que de uma certa forma, a gente tem conseguido, ao longo do tempo, mostrar qual é o valor das ações de saúde [...]. Por quê? Como é que você consegue muitas vezes manter uma cela harmônica, digamos assim, dentro da sua necessidade, se tem alguém com dor de dente? (INFORMAÇÃO VERBAL)21

Diante disso, a necessidade de pautar o tema da saúde no MJ já estava sendo vislumbrada na gestação do PNSSP e ―o componente inovador desse Plano era essa articulação das ações com o Ministério da Justiça, notadamente com o DEPEN, para a incorporação do componente saúde, como uma pauta importante no âmbito do Sistema Penitenciário por parte da Justiça‖ (INFORMAÇÃO VERBAL)22

O financiamento do PNSSP é outro fator que denota a tensão entre a lógica da saúde pública e da segurança pública. Para financiar a saúde no sistema prisional, (BRASIL, 2003a) coube ao MS custear o correspondente a 70% do recurso para as ações de saúde e ao Ministério da Justiça o equivalente a 30% do recurso para fornecer a infraestrutura necessária à realização das ações de saúde. Em termos reais ficou estipulado o valor de R$ 20.004,00/ano por estabelecimento

21 Entrevista realizada com a assessora técnica do departamento de vigilância, prevenção e controle das DST/AIDS e hepatites virais/MS, 2013.

22 Entrevista realizada com a assessora técnica Depto. Vigilância, Prevenção e Controle das DST, AIDS e Hepatites Virais/MS em 2013.

prisional com até 100 pessoas presas e o valor de 40.008,00/ano para custear as unidades prisionais com 500 pessoas presos (as) ou mais.

O Diretor do DAPES, que assumiu a direção do departamento em 2011, diz a respeito do financiamento, que

havia uma espécie de negligência do Ministério da Saúde com essa área [ATSSP][...]. Fez um plano, pactuou, os estados aderiram, não aderiam. O financiamento que nós tínhamos era absolutamente ridículo, um orçamento de 11 milhões pra cuidar dos 400 mil presos da época. Faz um per capta daquilo, você vai ver que não dá para montar e para sustentar uma política.

(INFORMAÇÃO VERBAL)23

Nota-se que o valor de financiamento é anual, ou seja, muito aquém da real necessidade para efetivar a saúde no sistema prisional, que se encontra em situação calamitosa. Isso deixa transparecer que o Ministério da Saúde e o Ministério da Justiça não priorizavam investimentos para garantir à saúde às pessoas privadas de liberdade. Podemos dizer que essa desvalorização do PNSSP trazia dificuldades de atuação tanto para a própria ATSSP quanto para o DEPEN.

O manejo, pelo PNSSP, dos recursos humanos necessários para compor as equipes de saúde também expressa essa tensa relação entre saúde e segurança.

Podemos constatar que apesar de ser admitida a existência de equipes mistas, compostas por profissionais da saúde, lotados nas secretarias estaduais de justiça e por profissionais oriundos das secretarias de saúde estaduais e/ou municipais, tal articulação não acontecia. Segundo a coordenadora de assistência jurídica, social e saúde do DEPEN/MJ,

até hoje tem alguns estados em que a prestação de saúde é ofertada pela secretaria de justiça. Como o SUS não entrava [no sistema penitenciário]

[...] a secretaria de justiça assumia o preso, então ela mesma fazia o concurso só para servidores de saúde ligados à secretaria de justiça. Tem vários estados que são assim. (INFORMAÇÃO VERBAL)24

23 Entrevista realizada com o diretor DAPES-MS em 2013.

24 Entrevista realizada com a coordenadora de assistência jurídica, social e saúde do DEPEN/MJ em

2013.

A tensão entre saúde e justiça presente no governo federal também produzia efeitos nas esferas estaduais e municipais. Para o coordenador da ATSSP,

quem é responsável pela atenção básica nos territórios, são os municípios.

Então, [...] falando de atenção básica, a gente não tem como não envolver os municípios na discussão. E como o PNSSP fechava só com estados, pela lógica da justiça, a gente viu que os próprios estados estavam se mexendo e se articulando com os municípios para que eles assumissem a atenção básica e a saúde para a população privada de liberdade.

(INFORMAÇÃO VBERBAL)25

Essa tensão se intensifica ainda mais no momento de definir responsabilidades entre estados e municípios. Ora a saúde é fornecida pelas Secretarias Estaduais de Justiça, já que se entende, nesse raciocínio, que o presidiário (a) pertence à justiça, ora é oferecida pelas Secretarias Estaduais de Saúde, uma vez que o sistema prisional é de responsabilidade dos estados da federação (com exceção do sistema prisional federal), ou ainda é fornecida pelas secretarias municipais de saúde, visto essas serem responsáveis pela atenção primária de saúde, conforme prescrito no SUS. Nesse caso, o nó da questão está em saber de quem é a responsabilidade da oferta da saúde para as pessoas privadas de liberdade.

O problema da decisão sobre qual das esferas do Estado teria responsabilidade acerca da oferta de saúde para o sistema prisional traz consequências de ordem política para o país, conforme relatou o Diretor do DEPEN na reunião da Comissão Intergestores Tripartite – CIT de 28 de agosto de 2013:

quero dar um testemunho aqui. Estive em alguns cenários internacionais fazendo a defesa do país face às acusações. Estive em Genebra ano passado [2012], estive também ano passado em Washington, fazendo a defesa do país nessas cortes internacionais. E a questão da saúde é renovada. As recomendações vêm, as acusações vêm e o país senta lamentavelmente no banco dos réus. E aí, é o país, os municípios, os

25 Entrevista realizada com o coordenador geral da ATSSP em 2013.

estados, o governo federal, todos nós que somos lamentavelmente colocados nessa condição. (INFORMAÇÃO VERBAL)26

Ao articularmos os dois pontos analisados até agora, constatamos que, de modo geral, a tensão entre a lógica da saúde e a lógica da justiça, que comparece no governo federal, estadual e municipal, remete a um mesmo campo problemático, a saber: o da responsabilidade pela saúde das pessoas privadas de liberdade. O trato desse problema tem exposto a fragilidade do pacto federativo necessário para a efetivação do PNSSP no território nacional, na medida em que não há acordo sobre ser, a saúde dos internos, atribuição do Estado como um todo que exige a mesma implicação de cada um dos três entes da federação.

Sendo assim, a partir desse momento crítico do PNSSP, a ATSSP iniciou um processo de escuta, por meio de consulta pública e de oficinas regionais, com o objetivo de conhecer as realidades locais nas quais o PNSSP estava habilitado, de modo que se pudesse criar estratégias para estabelecer uma melhor sincronização entre o governo federal, estadual e municipal na execução do PNSSP.