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CAPÍTULO 2 - Saúde no sistema prisional: cartografia de uma política pública

2.1 Cartografia das tensões e tendências da gestão

Nas reuniões de equipe da ATSSP, as questões emergentes eram de ordem administrativa, financeira e política. Por exemplo, para levar integralmente a saúde para o sistema prisional o setor necessitava criar meios a fim de mapear, nos estados da federação que aderiram ao PNSSP, se este estava sendo executado, conforme prescrito na Portaria Interministerial MS/MJ nº 1777 de 2003. Essa tarefa esbarrava na dificuldade de obter dados sobre a saúde no sistema prisional por meio do sistema de informação disponível. Tal situação provocava tensão no setor, já que o controle dos repasses de recursos para os estados depende dessas informações.

As estratégias em pauta para contornar os problemas acima citados foram, por exemplo, propor a criação de ouvidoria do SUS, destinada ao sistema penitenciário, e a criação de um sistema de informação por meio do qual o SUS receberia notificação toda vez que uma pessoa ingressasse e saísse do sistema prisional. A ATSSP buscava criar soluções para contornar desafios estruturais do SUS, que se complexificam ainda mais nos cenários de privação de liberdade.

No que tange às questões políticas, foi debatido o estado atual dos temas transversais presentes nas prisões, como por exemplo, a situação dos negros, mulheres, população LGBT e portadores de transtornos mentais. O debate desses temas apontava para necessidade de transversalizar a saúde destinada às pessoas privadas de liberdade com outras áreas de governo que tratam, por exemplo, de temas como a política de saúde mental, passando pela proposta da redução de danos15.

Em relação ao tema da saúde mental, foi discutida a criação de uma portaria que possibilitasse o processo de desinstitucionalização – conforme a Lei n º 10.216

15 Sobre a noção de redução de danos cf: (TEDESCO e SOUZA, 2009).

de 16 de abril de 2001 da reforma psiquiátrica brasileira – das pessoas com transtorno mental em conflito com a lei em cumprimento de medida de segurança.

Na reunião, que ocorreu no Ministério da Justiça com atores do DEPEM e da ATSSP, foi possível perceber a complexidade da proposta de compor a proposição feita para a saúde, pelo MS, em face da lógica da segurança vigente no campo da justiça criminal. Por exemplo, nessa reunião a conversa girou em torno de itens de higiene destinados ao sistema prisional. Chamou atenção o debate sobre fio dental que, segundo a lógica da saúde é um item corriqueiro para à saúde bucal.

Entretanto, do ponto de vista da lógica da justiça criminal, a utilização do fio dental, no sistema prisional, foi colocada na perspectiva da segurança, isto é, como um perigo, uma vez que poderia ser utilizado pelos presos para se comunicarem.

A possibilidade de implantar nos presídios consultas de saúde televisionada, de modo que o presidiário não precise ser escoltado até uma unidade de saúde fora do sistema prisional, foi outro exemplo da dificuldade de relacionar saúde e segurança. Nesse embate de lógicas, percebe-se que a saúde, apesar de um direito, está subordinada à segurança, ou seja, se a ação de saúde representar um risco às ações de segurança já estabelecidas ela é prontamente questionada. Percebeu-se aí a grande diferença no modo de cada uma dessas instâncias governamentais olharem para as pessoas privadas de liberdade e que, consequentemente, reverbera na execução da política de saúde destinada a esses sujeitos.

O processo cartográfico tratou de explicitar essas duas principais lógicas, inerentes à proposta de saúde para o sistema prisional, que agem alimentando forças diversas e concorrentes no contexto. De um lado, a perspectiva da saúde que visa à inclusão da população privada de liberdade no SUS, uma vez que reconhece ter essa população direito à saúde, como qualquer outro segmento populacional brasileiro. Do outro lado, a justiça criminal que privilegia e aplica maciçamente a pena de aprisionamento, entendendo-a como um modo existente de garantir segurança pública no país. Esta perspectiva acaba por provocar a superlotação do sistema prisional, que, somada às precárias condições dos presídios e das ofertas de ações em saúde, transformam os estabelecimentos prisionais em locais destinados à produção e difusão de doenças e outros problemas.

Sublinhamos de que a divergência acima apontada não demarca, necessariamente, um antagonismo entre o campo da saúde e o campo da justiça criminal, mas configuram relações de poder que atravessam ambas as áreas e que segundo o pensador Michel Foucault,

são da ordem de um ‗agonismo‘. Ou seja, apesar de se tratar de um

―combate‖, isto não significa que se estabeleça, necessariamente, entre adversários em defesa de posição opostas, que se bloqueiam. Trata-se de uma luta, marcada por incitação recíproca, permanente, na qual a liberdade comparece como inerente. Fala-se aqui de agonismo de forças em substituição à lógica dialética, que pressupõe como resolução à unidade homogênea dos termos, que inicialmente se opõem. (RODRIGUES e TEDESCO, 2009, p. 88).

Sendo assim, essa tensão entre forças divergentes não deve ser percebida como obstáculo intransponível que apenas seria superado pela eliminação de uma das lógicas. O confronto de lógicas precisa ser considerado como analisador importante do campo das forças onde foi construído o PNSSP e posteriormente a PNAISP.

No processo cartográfico, a presença das duas principais lógicas, que agem alimentando forças diversas atuantes no contexto, é matéria de reflexão, de análise.

A direção principal é analisar esse encontro, procurar possibilidades de administrar o jogo estabelecido entre lógicas diferentes. Dessa análise, poderão surgir propostas para construção de condições facilitadoras, que promovam composições entre essas duas forças tendenciais aí presentes. A análise desses embates auxilia a busca de estratégias, ações, propostas, projetos, que possam fomentar alianças, para além das diferenças e em sintonia com a proposta de oferta de saúde ao sistema prisional.

Desta forma, entendemos que é principalmente na gestão desse encontro entre a lógica da saúde, conforme preconiza o SUS, e a lógica da justiça criminal, apoiada na segurança, que a memória cartográfica da construção da política pública de saúde para as pessoas privadas de liberdade se desenvolve. Complementamos ainda, é na administração dessa agonística, composta de encontros e desencontros

entre duas lógicas diversas, que localizamos um dos principais desafios que vêm sendo enfrentados, desde a construção do PNSSP até a PNAISP.