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CAPÍTULO 5 PNAISP: entre a saúde pública e a justiça criminal

5.2 O território prisional: realidade metaestável da PNAISP

Podemos afirmar que os dispositivos são meios a partir do quais se estruturam determinadas configurações de forças. No caso do biopoder os dispositivos visam a segurança da vida num sentido tanto do controle quanto do cuidado, já que diz respeito não somente aos dispositivos que se pode encontrar no âmbito da justiça (a prisão), como também aqueles dispositivos do âmbito da saúde, por exemplo, os manicômios e no âmbito da assistência social, como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Assim sendo, é nessa perspectiva que podermos circunscrever a prisão como dispositivo no território prisional da PNAISP.

Considerando o exposto vejamos como se caracteriza a prisão no Brasil.

O racismo de Estado é a chave de leitura para começarmos caracterizar o dispositivo-prisão. Vimos que o racismo é uma estratégia do biopoder de classificação da espécie humana, que a partir da teoria da evolução, se orienta para melhoria da espécie em termos de ―pureza‖ das raças ao mesmo tempo em que se apoia na teoria da degenerescência psíquica e moral, de modo a estabelecer uma hierarquização da população, conforme um gradiente de ―pureza‖ que haveria entre a raça inferior e superior. Assim, se qualifica e controla a população seja para fazer viver regenerando os anormais e ressocializando os criminosos seja para deixar morrer os socialmente ―incuráveis‖. Nesse contexto, localizamos a população privada de liberdade e o dispositivo-prisão.

Como vimos no primeiro capítulo, em termos numéricos, segundo os dados estatísticos apresentados em 2014 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil é a terceira maior população prisional do mundo, totalizando 711.463.

Segundo o levantamento nacional de informações penitenciárias Infopen58 (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014a) o perfil das pessoas presas é majoritariamente de jovens negros, de baixa escolaridade e de baixa renda. Comparando o perfil etário da população encarcerada com o perfil da população brasileira em geral, a maior parte da população brasileira privada de liberdade é composta por 56% de jovens ao passo que essa faixa etária da população brasileira é composta de apenas 21,5%. No que diz respeito à raça, cor, etnia a porcentagem de pessoas negras/pardas, no sistema prisional é de 67%, enquanto que na população brasileira

58As informações contidas nesse levantamento não incluem o estado de São Paulo, por não ter respondido ao levantamento. Essa informação é relevante porque São Paulo é o estado responsável pela custódia de mais de um terço da população prisional brasileira.

em geral, a proporção é significativamente menor (51%). Quanto à escolaridade oito em cada dez pessoas presas estudaram no máximo até o ensino fundamental.

Segundo o levantamento do Infopen (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014a) a primeira causa do aprisionamento da população carcerária é por tráfico de drogas, com 27%, seguido de roubo, com 21%, homicídio corresponde a 14% dos registros e o latrocínio (roubo a mão armada) apenas 3%. Um dado que chama atenção, diz respeito ao encarceramento feminino que, no período entre 2000 até 2014, aumentou 567,4%, saltando de 5.601 para 37.380 mulheres encarceradas, enquanto que a média de crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220,20%. A natureza desse encarceramento feminino em massa é o trafico de drogas:

em torno de 68% dessas mulheres possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas não relacionado às maiores redes de organizações criminosas. A maioria dessas mulheres ocupa uma posição coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de drogas e pequeno comércio; muitas são usuárias, sendo poucas as que exercem atividades de gerência do tráfico. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014b, p. 5).

Não é por acaso que o encarceramento em massa (masculino e feminino) tenha o tráfico de drogas como alavanca. A política de guerras às drogas vigente no país fez do tráfico de drogas uma das principais causas para o aumento da população carcerária. Tal política tem como alvo o pequeno traficante que são, na maioria das vezes jovens, negros e pobres correspondendo, exatamente, ao perfil da população privada de liberdade. Como vimos na cartografia (capítulo1), tal política se efetiva na indiscernibilidade entre o usuário e o traficante, já que os mais pobres são mais frequentemente julgados como traficantes, mesmo quando portando pequenas quantidades de drogas ilícitas. Essa política de guerras às drogas tem se mostrado como um importante dispositivo de exclusão dos mais pobres seja conduzindo-os à prisão e no limite eliminando-os nos confrontos com forças de Estado nas periferias brasileiras.

O debate sobre o tema das drogas no Brasil continua em aberto, já que, por um lado o tema é tratado como questão de justiça e por outro lado como questão de saúde. No âmbito da saúde o tema é visto como questão de saúde mental e tratado

em dispositivos como os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS Álcool e Drogas ou por políticas de redução de danos, que possuem uma perspectiva mais progressista do problema. Numa perspectiva mais conservadora encontramos as comunidades terapêuticas que, geralmente, oferecem tratamento moral (religioso, laborterapia) aos usuários de drogas.

Assim, tanto no âmbito da justiça quanto no âmbito da saúde o debate é travado por meios de posicionamentos mais conservadores ou mais progressistas.

Tal debate sobre as drogas gira em torno da vida que deve viver e da vida que deve morrer e a política de guerra às drogas ilustra o racismo de Estado, para o qual os drogados são os novos degenerados e que tem como alvo a população jovem negra e pobre do país.

Uma situação emblemática em que a lógica da saúde e a lógica da justiça convergem no exercício do biopoder, diz respeito às pessoas cumprindo medida de segurança em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs), ou seja, o

―louco infrator‖. ―No cumprimento das chamadas medidas de segurança, o sujeito considerado louco e autor de crime se encontram em uma só pessoa‖. (BRASIL, 2015, p. 7).

Os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs) ou manicômios judiciários, como também são chamados, resultam da combinação da execução penal do Estado com técnicas asilares psiquiátricas. (Brasil, 2015). Destinados aos autores de crimes considerados portadores de transtornos mentais os manicômios judiciários representam a radicalização dos dispositivos de segurança do biopoder, uma vez que faz convergir num mesmo estabelecimento o manicômio e a prisão.

Parafraseando Michel Foucault, em nome da defesa da sociedade

é sob o argumento do perigo – ou da periculosidade social, como dizem os operadores do Direito – que o Estado e nossa sociedade se permitem trancafiar, muitas vezes perpetuamente, o sujeito considerado louco que se depara com as instituições de controle penal, seja por meio das condutas de conflito mais graves, seja por meio das simples e mais banais contravenções à lei penal. Ele é sequestrado pelo Estado e pode nunca mais retornar à liberdade, para tentar um dia voltar perseguir os seus projetos de vida e felicidade em sociedade. (BRASIL, 2015, p. 7)

Os manicômios judiciários para os quais são destinados os ―loucos infratores‖, atualmente, segundo relatório do Conselho Federal de Psicologia (CFP),

têm recebido pacientes cuja internação cautelar foi determinada por ordem judicial; que apresentaram sintomas de transtorno mental durante a reclusão; que apresentaram história de dependência química e até que apresentaram ―problemas de comportamento‖ na unidade prisional [comum]

e foram transferidos para cumprir castigo ou ficar no isolamento. (BRASIL, 2015, p. 131)

Tal situação demonstra todo tipo de ilegalidade a que está submetido o sujeito dito ―louco infrator‖, já que nessa categoria cabe todo tipo de pessoas, em particular, aquelas que apresentam histórico de dependência química. Nesse sentido, o tema da droga se junta ao tema da loucura numa nova estratégia do biopoder. Segundo o levantamento do Infopen (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014a), 2.497 pessoas estavam cumprindo medida de segurança no Brasil até o ano de 2014.

No que diz respeito ao direito de assistência à saúde no sistema prisional, segundo o levantamento do Infopen (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014a), com a PNAISP, a população privada de liberdade foi inserida formalmente na cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS) com 37% dos estabelecimentos prisionais contendo unidades de saúde. Embora 63% das pessoas privadas de liberdades estejam concentradas nos 37% de unidades prisionais, não podemos dizer que essa cobertura se efetivou de fato nas prisões comprometendo o objetivo da PNAISP de incluir 100% da população privada de liberdade no Sistema Único de Saúde (SUS).

É importante ressaltar que a PNAISP é uma política que foi aprovada em janeiro de 2014, ou seja, mesmo ano do levantamento do Infopen não havendo, portanto, tempo suficiente para sua efetivação no sistema prisional. Entretanto, o PNSSP que antecedeu a PNAISP já existia desde 2003 e mesmo assim a cobertura ficou muito aquém do esperado. Como vimos na cartografia (capítulo1) o PNSSP alcançou cobertura em torno de 30% da população prisional.

Essa baixa cobertura reflete os dados do levantamento do Infopen, no que diz respeito às doenças e agravos de saúde, principalmente, aqueles relativos à tuberculose e DST/AIDS, no sistema prisional. Segundo o levantamento,

foram identificadas 2.864 pessoas portadoras do vírus HIV. Esse total representa 1,21% do total de presos nas unidades que informaram o dado, o que equivale a uma taxa de incidência de 1215,5 pessoas soropositivas para cada cem mil presos, proporção sessenta vezes maior que a taxa da população brasileira total, de 20,476. Por seu turno, a taxa de pessoas presas com tuberculose é de 940,9, ao passo que na população total é de 24,4, frequência 38 vezes menor. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014a, p.

114)

A baixa cobertura das políticas de saúde destinadas às pessoas privadas de liberdade é uma ilegalidade do ponto de vista constitucional, uma vez que a Constituição de 1988 reconhece a saúde como um direito fundamental de todos os brasileiros e dever do Estado (BRASIL, 1988). A violação do direito à saúde representa a violação do direito à vida das pessoas privadas de liberdade, já que este direito está garantido pela Constituição de 1988,

Ainda sobre a questão da ilegalidade no sistema prisional, no que diz respeito à assistência jurídica, segundo o levantamento do Infopen,

independentemente das eventuais deficiências na prestação de assistência jurídica nos estabelecimentos que registraram o referido serviço, pode-se concluir que 10% de toda a população prisional da amostra encontra-se em estabelecimentos sem nenhuma espécie de defesa técnica dentro das unidades. Essa lacuna adquire contornos extremos nos estados do Rio Grande do Norte (77%), Alagoas (38%) e Goiás (36%). (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014a, p. 103)

A falta de assistência jurídica para 10% da população encarcerada não é o único fator de ilegalidade, já que existe, aproximadamente, 41% de presos provisórios, ou seja, sem condenação. Por exemplo,

enquanto apenas 16% das pessoas privadas de liberdade em Roraima são presos provisórios, em Sergipe 7 em cada 10 presos encontram-se nessa situação. Além deste estado, outras sete Unidades da Federação têm uma quantidade maior de presos provisórios do que condenados: Maranhão, Bahia, Piauí, Pernambuco, Amazonas, Minas Gerais e Mato Grosso.

(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014a, p. 21)

Tanto a falta de assistência jurídica quanto a quantidade de presos provisórios, a ponto de chegar a ultrapassar o número de presos condenados em algumas unidades prisionais de alguns estados do país, demonstram a ilegalidade do funcionamento do sistema prisional. Assim, tanto do ponto de vista da justiça quanto do ponto de vista da saúde podemos dizer que o dispositivo-prisão, embora seja legal, pois está contemplado no ordenamento jurídico penal, possui um funcionamento ilegal, sob o qual vive a população privada de liberdade.

Ora, se a lei não é suficiente para assegurar os direitos, principalmente o direito à saúde das pessoas privadas de liberdade, então podemos concluir que as vidas nas prisões brasileiras estão sujeitadas à ordem do biopoder, que gira em torno da vida que deve viver e da vida que deve morrer. Esse contexto pode ser resumido pela palavra de ordem corrente na sociedade brasileira que afirma que

―bandido bom é bandido morto‖. Trata-se de uma expressão que remete à figura do Homo Sacer descrita por Giorgio Agamben no livro Homo Sacer- o poder soberano e a vida nua, cuja vida por estar fora do direito humano e do direito divino é matável (AGAMBEN, 2012).