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CAPÍTULO 1 - Sàngó oníbòn òrun (Xangô, dono dos trovões do céu)

1.3. A Casa da Força do Rei

Não chamar a atenção da polícia e estar perto da natureza pareciam ser a premissa básica para se levantar um terreiro de candomblé na cidade de São Paulo, nas décadas de 1960 e de 1970. Pelo menos foram esses os motivos de pai Caio para construir a Casa da Força do Rei às margens da rodovia Imigrantes, onde, segundo as memórias da negra Oxum e do branco Oxalá, era “tudo mato”.

Um olhar que procura sentido nos movimentos individuais para analisar as transformações sociais pode recorrer às questões dos lugares subalternos da época, à marginalização de algumas pessoas para garantir o espaço de outras. Candomblé era a religião que precisava de ser praticada longe, na periferia da sociedade, em um lugar afastado, para não incomodar não só a polícia, mas

36 Em algumas publicações sobre o Axé Ilê Obá, como a publicação de 1991 de Reginaldo Prandi, referência para esta pesquisa, e a dissertação de Renato Pereira Correa, depositada em 2014, sobre o terreiro, datam o ano de falecimento de pai Caio o de 1984. Por exemplo: Caio Aranha, famoso pai de santo da umbanda paulista, com terreiro primeiro no Brás e depois do Jabaquara, foi se passando para o candomblé e inaugurou, em 1974, na Vila Facchini, o mais imponente terreiro de candomblé do país. Caio atraiu para sua casa a gente mais importante dos candomblés do Rio e da Bahia. Em 1984, ao falecer, foi sucedido por sua sobrinha e filha de santo, Sylvia de Oxalá. (PRANDI, 1991, p. 101). Porém, segundo o atestado de óbito presente nas gavetas da sala de búzio de mãe Paula, Caio Aranha faleceu em 15/2/1985.

a vizinhança que não queria barulho de atabaque, farofa na calçada, essa “coisa de preto, de nordestino, do Outro”.

A sutileza das relações que são estabelecidas nas fronteiras, nos entre-lugares, alimentadas por uma razão negra, por lugares demarcados socialmente, podem ser observadas, também, por meio dos relatos de tio Silvino e de ebômi Jaci. Cada um representando um lado da branquitude: um em seu lugar confortável, a outra deslocada. Ambos ocupando o mesmo religioso e ocupando há tanto tempo. São o filho e a filha mais velhos do barracão e com contexto sociais distintos.

Ebômi Jaci troca as relações com o candomblé: sustenta o barracão e é sustentada por ele. É preparada para ser madrinha de oruncó de mãe Paula, enquanto é babá da menina. Uma relação que se estabelece financeira e religiosamente. Tio Silvino vai ao barracão de segunda, terça, quarta e sexta defumar, cuidar do quarto de Oxalá, livre-transitar no espaço porque assim o deseja. É aposentado. Ebômi Jaci ainda passa roupa para os antigos patrões lá da revisora Martinelli.

Ambos precisaram de ser salvos: uma da dor de cabeça e do risco da gravidez, outro da praga do locador. Ambos se desenvolveram espiritualmente, reconheceram-se socialmente, estabeleceram relações com a comunidade. E a história dos dois é atravessada pela do candomblé da metrópole, ao transpassar a fronteira, porque tanto ela quanto eles escolheram estar ali, construir aquele barracão. Era para ela ainda cantar na igreja do Ipiranga e para ele ainda resistir aos couros que tomava, se não fossem autônomos, indivíduos conscientes de suas decisões.

Essa autonomia e essa consciência são revistas quanto se pensa no embranquecimento do candomblé na metrópole. O que precisa transbordar e ser analisado é a branquitude nesse candomblé, os papéis sociais representados internamente, as oportunidades que a sociedade não oferece a determinados indivíduos e que são encontradas dentro da casa de axé: um sustento financeiro, um teto, um prato de comida ou até a identidade.

Por isso, mais se tem a ganhar, epistemologicamente falando, se abandonar os questionamentos que reforçam análises comparativas da religião. O candomblé praticado em um lugar, o candomblé praticado em outro lugar... a religião é praticada por pessoas com seus símbolos sociais. E são para elas que devemos olhar quando nos propomos revisitar as sistematizações hegemônicas.

Em 1985, Sylvia Egydio, uma mulher negra, sobrinha de Caio Egydio, foi indicada pelos búzios de mãe Menininha do Gantois para assumir o Axé Ilê Obá. A partir desse momento, a fronteira se rompeu ainda mais, alcançando um poder político. Os entre-lugares se expandiram e

foi permitido acessá-los por diferentes vias. Igual ao baobá, das duas raízes mais fortes, nasceram outras seis.

Neste primeiro capítulo, foi possível perceber a instauração de um candomblé paulistano, um movimento que, se apenas observado de modo comparativo, parece ser precário em relação aos ditos tradicionais, o que muito oferece de prejuízo para a compreensão sociopolítica da religião. Cada casa de santo é, por si só, um universo particular. A cada pessoa que chega e se inicia para um orixá, é uma tradição incorporada e reinventada dentro de uma casa. Por isso, logo ao avistar as primeiras raízes desse baobá, por meio das lembranças aqui escritas, é possível perceber a autonomia de uma religião que se consolida na metrópole e se envereda por caminhos não-hegemônicos, mas nem por isso menos relevantes.

No próximo capítulo, a São Paulo apresentada será outra: a da redemocratização. O Brasil sai de um período de ditadura militar para começar a vislumbrar novas perspectivas políticas que, também, influenciam o candomblé. Essa influência pode ser observada ao escutar as vozes das pessoas que fizeram parte da religião, pessoas que têm suas vidas atravessadas por influências que atravessam as paredes do barracão e carregam consigo para dentro da casa de santo o que observam e inferem nas ruas, no trabalho, no comércio, nas relações pessoais etc.

Os entre-lugares, os rizomas culturais e a razão negra ajudarão a analisar, também, a segunda geração do Axé Ilê Obá, a partir da perspectiva metodológica de legitimar as memórias como saberes sociais, como constructos epistemológicos e como dados tão relevantes para a compreensão histórica do que um documento escrito, por serem essas pessoas as protagonistas da história que mais relevância oferece para a compreensão do período aqui analisado: a vida delas mesmas.

CAPÍTULO 2 - Na Òrìsànlá atererekáiye (O Grande

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