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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO. Faculdade de Ciências Sociais Departamento de Ciência da Religião Programa de Ciência da Religião

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Academic year: 2021

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Faculdade de Ciências Sociais Departamento de Ciência da Religião

Programa de Ciência da Religião

Eduardo Bonine

Embranquecimento do candomblé?

Uma análise da linha sucessória do Axé Ilê Obá, terreiro de tradição Queto na região do Jabaquara, São Paulo

Mestrado em Ciência da Religião

São Paulo, 2020

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Eduardo Bonine

Embranquecimento do candomblé?

Uma análise da linha sucessória do Axé Ilê Obá, terreiro de tradição Queto na região do Jabaquara, São Paulo

Mestrado em Ciência da Religião

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciência da Religião sob a orientação do(a) Prof.(a), Dr.(a) Ênio José da Costa Brito

São Paulo, 2020

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Banca Examinadora

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Dedico esta dissertação a meus e a minhas ancestrais, aos homens e às mulheres que passaram pela minha vida e construíram de maneira sólida as raízes do meu baobá.

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 88887.352023/2019-00

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Agradecimentos

A meu pai e a minha mãe que teimam em acreditar em mim, apesar de mim.

A minha tia Cibele e ao meu tio Batista que vislumbram em mim alguém que mais do que poderia ter sido, é.

A meu orientador Ênio José da Costa Brito que me conduz por um caminho surpreendentemente gratificante, com muito realismo mágico; me ensina que é pelas veredas que percorremos o grande mistério.

A minha irmã Fernanda que me estimula rotineiramente a acreditar no melhor.

A minha irmã Amanda que me estimula a dividir sonhos, projetar ambições, desbravar caminhos inusitados, acreditar na gente.

A Suellen, pelas escutas e torcida, a Diogo pelas incontáveis trocas.

A Gabrielle Albiero pela precisa e delicada revisão.

A mãe Paula de Iansã que abriu a porta de seu barracão para o desenvolvimento desta pesquisa, com afeto e generosidade.

A Telma Witter que compartilhou o possível e o impossível comigo, para a boa condução deste trabalho.

A Jaci, Silvino, Wilma, Péricles e filhos e filhas do Axé Ilê Obá que compartilharam suas histórias.

A minha colega de turma e amiga, Patrícia Oliveira, que me deu as mãos nesse período acadêmico.

Aos professores e às professoras da Ciência da Religião da PUC de São Paulo, pelas trocas generosas, quando não em sala de aula, nos corredores da Universidade. E também a Andreia Bisuli de Souza por toda a paciência nas orientações burocráticas.

Aos meus colegas e as minhas colegas de turma pela constante aprendizagem.

A CAPES e FUNDASP, pelo financiamento dado a pesquisa e conclusão desta dissertação.

A minha casa, a minha ancestralidade, a quem me conduziu até aqui e a quem me conduzirá.

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Resumo: O principal intuito deste trabalho é o de analisar a linha sucessória do Axé Ilê Obá, terreiro de candomblé Queto (de nação Queto), na região do Jabaquara, zona sul da cidade de São Paulo, com foco na terceira e atual geração da casa, a fim de identificar um suposto processo de embranquecimento do candomblé. O desenvolvimento da pesquisa ocorre entre as paredes do barracão, com o intuito recolher as memórias abrigadas nas narrativas dos filhos e das filhas de santo. O trabalho propõe investigar, por meio de uma abordagem decolonial, os motivos sociais e culturais que possivelmente levaram uma religião que nasceu nas mãos da população negra a

“embranquecer”, no decorrer das últimas três décadas.

Abstract: The main purpose of this work is to analyze the succession line of Axé Ilê Obá, a Candomblé Queto terreiro (of Queto nation), in the Jabaquara region, south zone of the city of São Paulo, focusing on the third and current generation of home, in order to identify a supposed process of whitening candomblé. The development of the research takes place between the walls of the house, in order to collect the memories in the narratives of the sons and daughters of the saint. The work proposes to investigate, through a decolonial approach, the social and cultural reasons that possibly led a religion that was born in the hands of the black population to “whiten”, over the last three decades.

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Sumário

Sumário ... 7

Introdução... 8

A casa, o axé, o lar ... 36

CAPÍTULO 1 - Sàngó oníbòn òrun (Xangô, dono dos trovões do céu) ... 48

1.1. A Oxum que ajudou Xangô ... 53

1.2. Oxalufã que foi carregado por Xangô ... 61

1.3. A Casa da Força do Rei ... 68

CAPÍTULO 2 - Na Òrìsànlá atererekáiye (O Grande Orixá que reina sobre todas as coisas) ... 71

2.2. Obá encontra refúgio na casa de Xangô ... 82

2.3. Tudo o que é bom, você não esconde ... 87

CAPÍTULO 3 - Oya alágbára inú aféfé (Oyá é a poderosa que vive no vento) ... 95

3.1. A filha do vento chega à casa de Xangô ... 98

3.2. A dona do raio e do vento...100

3.3. As raízes do baobá ...103

Conclusão ... 107

Referências bibliográficas ... 113

Anexos... 116

Entrevista ebômi Jaci ...116

Entrevista tio Silvino ...126

Entrevista ebômi Wilma ...134

Entrevista Péricles de Oxaguiã ...142

Entrevista mãe Paula e Telma Witter ...151

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Introdução

[...] precisava te contar tudo que estou contando agora. Se vai chegar às suas mãos, também não sei, mas me lembro muito da história que foi vivida pelo pai de Kuanza, guardada pelo filho e escrita por mim, para depois sumir no meio da travessia desse mar. Se alguém vai contá-la a alguém qualquer dia desses eu não sei, mas fiz o que tinha que ser feito.

Ana Maria Gonçalves, Um Defeito de Cor.

O ponto de partida deste trabalho não é responder o que é o candomblé, mas quem pratica, quem de certa forma faz e quem opera a religião, por meio das linhas sucessórias do Axé Ilê Obá.

Por isso, o conceito religioso e – por que não? – mítico dos ritos candomblecistas não será abordado nestas linhas de modo a esclarecer as práticas ritualistas da fé; se ocorrer, é pelo o intuito de entender o contexto social em que estão inseridos seus adeptos.

Dessa forma, é importante, antes de se aventurar na leitura deste texto, perguntar-se: quem eu vejo quando penso em candomblé?

Qual é a figura de ser humano idealizado pelo senso comum quando se pensa na religião de matriz africana, organizada e estruturada nas senzalas dos engenhos baianos no século XIX1, pelas tribos escravizadas?

A mim foi dito em 2009, quando estava para conhecer o Ilesin Ogun Lakayie Osinmole, nome em iorubá, que significa Casa do Ogun Guerreiro (primeira casa de candomblé Queto da cidade de Campinas, interior de São Paulo), que a religião “é uma fé de tradição. Passa do mais

1 Candomblé é uma religião brasileira, articulada nas senzalas dos engenhos, conforme os escravizados eram retirados à força de sua terra natal e inseridos em um contexto de trabalho forçado e desumano no Brasil; o culto aos orixás estabelecido neste processo diaspórico de séculos resultou no candomblé, religião brasileira de matriz africana, com inúmeros ritos e práticas, a depender da dinâmica e do contexto em que se insere. Esta dissertação adota os dados defendidos pelo antropológo Vivaldo da Costa Lima sobre a formação religiosa: tomada no século XIX como “... um ideal de ortodoxia vinculado diretamente às origens africanas dos antigos candomblés” (LIMA, 2003, p. 19), tendo sua formação no Ilê Iya Nassô e Alaketo, originando os terreiros-matriz (liderados por mulheres): Opô Afonjá, Engenho Velho e Gantois. O Axé Ilê Obá considera-se de raiz Queto, influenciado por essa matriz e atravessado por influência umbandistas e de raiz Angola, a começar por sua fundação ser nas mãos de um homem. Inclusive, quanto a essa última questão, é preciso reforçar que outros terreiros de tradição iorubá foram fundados por homens em Salvador e no Rio de Janeiro, entre os anos de 1880 e 1900. Bamboxê Obitiko, um dos responsáveis pela estruturação da Casa Branca e iniciador de Mãe Aninha, além de realizar iniciações, tinha ao menos dois filhos de santo com casa aberta em Salvador, sendo um no Engenho Velho e outro em Matatu de Brotas. O Rio de Janeiro também contava com babalorixás renomados oriundos das casas matrizes, como Cipriano Abedé. Por isso, nesta dissertação, embora não se ignore o fato da existência desses pais de santo, será assumida a perspectiva de formação do candomblé em São Paulo, considerando o candomblé Angola, que, no trânsito dos sacerdotes de umbanda se tornarem pais de santo de candomblé, foi quem acolheu as lideranças masculinas.

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velho para o mais novo”. Quem disse isso foi o babalorixá (pai de santo) Toloji, também conhecido como o pai de santo Luís Antônio Castro de Jesus, que me recebeu nessa sua imponente casa de culto afro, em uma região de classe média baixa da cidade, de meio quarteirão, dividida entre dois barracões (um destinado ao culto de caboclos, outro ao culto de orixás), um museu de artigos africanos (quase onze mil peças importadas do continente Africano desde os anos de 1980) e um pedaço extenso de terreno com inúmeras árvores e plantas de origem africana, outras importadas da Bahia enfeitando e dando o significado de natureza às seis casas de aproximadamente dez metros quadrados que abrigam os assentamentos dos dezesseis orixás cultuados naquela casa de candomblé Queto.

Em resposta ao meu senso comum2 (por meio das inferências de leitura de mundo), a casa correspondia ao meu ideal do que seria candomblé, mas o babalorixá não, primeiro, por ser um pai de santo, por se tratar de um homem, e não de uma mulher, uma vez que a religião parte do pressuposto de ser matriarcal. Segundo, que ele é um homem branco, de olhos claros, aposentado de uma longa carreira como funcionário da Bosch, rodeado de filhos de santo, em sua grande maioria brancos, e eu estava na fila para ser o próximo. Mais um homem branco dentro do candomblé.

As aspas com os dizeres dele aparentemente sintetizam o que seria a religião, se não fosse por conceitos básicos que dão margem a muitas interpretações: (1) tradição, (2) mais velho e (3) mais novo.

Por isso, o convite para a leitura deste trabalho adverte que é preciso lançar mão de esclarecimentos básicos sobre esses conceitos. O que é tradição? Candomblé é uma religião de tradição ou de costumes? Quem seriam os mais velhos que guardam essa tradição? Quem seriam

2 Por que sair do senso comum? Traçando um diálogo com o professor e pesquisador da linguística, Luís Antônio Marcuschi, em sua obra “Da fala para a escrita”, para reforçar a reflexão acerca do comportamento do pesquisador que se propõe a oferecer um olhar que não perpetue apenas a perspectiva eurocêntrica, mas que apresente uma dúvida além da leitura-comum, que percorra outro caminho que não o da perspectiva evolutiva, do olhar unilateral; um olhar de inferência textual que parte da linha histórica cíclica, em que a sociedade tem vários pontos de partida, oferecendo perspectivas sociocognitivas, interacionais, para se construir uma epistemologia diversificada: “Entender um texto não equivale a entender palavras ou frases, entender frases e palavras é vê-las em contexto maior; entender é produzir, ver sentidos e não extrair conteúdos prontos. Os textos são em geral lidos com motivações muito diversas; diferentes indivíduos produzem sentidos diversos com mesmo texto. O texto não tem compreensão ideal, definitiva e única.

Mesmo que variadas as compreensões de um texto devem ser compatíveis, em condições socioculturais diversas, temos compreensões diversas do mesmo texto” (MARCUSCHI, 2008, p.72). Então, um passo além do senso comum epistemológico é o pesquisador entender a inferência como pressuposto-base para a compreensão de algo e a produção de uma análise a respeito: “A compreensão de texto não se dá como fruto da simples apreensão de significados literais das palavras”. Aqui, substituindo palavras por narrativas dos religiosos e texto como religião, pode-se dizer que as motivações e as inferências do pesquisador são as lentes determinantes para trilhar o caminho.

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os mais novos que apreendem essa tradição e dão continuidade à religião? E o que essas perguntas têm a ver com o possível embranquecimento do candomblé?

As palavras do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva elucidam melhor essa última questão:

Com a crescente divulgação dos valores e símbolos da cultura religiosa de origem africana, principalmente a partir dos anos 70, as religiões afro-brasileiras se tornaram menos estigmatizadas e suas relações com a sociedade adquiriram outros sentidos graças também ao seu crescimento nas grandes metrópoles que as popularizaram ainda mais entre as camadas médias e brancas da população. (SILVA, 2000, p. 78).

Ainda em diálogo direto com a pesquisa desenvolvida pelo antropólogo em sua tese de doutorado e publicada como uma diretriz metodológica para observar etnograficamente e estudar as religiões de matriz-africana, o caráter social de embranquecimento pode ultrapassar as paredes do terreiro e, aparentemente, tem-no feito desde 2000:

O interesse atual das lideranças políticas do movimento negro em transformar essas religiões em sinal de distinção e resistência étnica tem levado, entretanto, algumas comunidades religiosas, sensíveis a essa ideologia, a questionar a legitimidade da participação de brancos no culto ou no estudo das suas tradições. (SILVA, 2000. p. 78).

Cabe, então, atravessar as fronteiras disciplinares entre a Antropologia e a Ciência da Religião, assumir metodologicamente o arcabouço preparado pelo “antropólogo e sua magia” e não negligenciar essa retórica epistemológica de embranquecimento do candomblé:

Sem dúvida, esse questionamento é consequência do crescimento dos terreiros chefiados por brancos e das disputas existentes no campo religioso. De qualquer forma, em muitos terreiros a relação entre pesquisa e identidade étnica ou de classe tem se colocado como uma questão quase que inevitável na realização do trabalho de campo. (SILVA, 2000, p.

78-79).

Ainda assim, outro aspecto que não se pode ignorar para a leitura e a compreensão desta dissertação é a perspectiva de autoria desta pesquisa: um homem branco, iniciado e obrigacionado3 no candomblé e pesquisador da Ciência da Religião, cujaabordagem, aqui, é olhar para o fato religioso.

3 Ritos de participação enquanto religioso do terreiro: iniciação no santo e obrigações de santo. (LUZ, 2017).

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O método antropológico etnográfico circunscreve essa roda de axé, mas a cumeeira4, o centro, a força vital é a religião: observar esse embranquecer do candomblé.

Este trabalho analisa o Axé Ilê Obá, casa de candomblé Queto na região do Jabaquara, zona sul de São Paulo, por meio das três gerações que compõem o terreiro, para responder as perguntas levantadas anteriormente, que norteiam o percurso para se tentar observar um possível embranquecimento do candomblé em São Paulo, já anunciado por Reginaldo Prandi, em 1991, em seu levantamento sobre os terreiros paulistanos.

Tradição, aqui, poderia ser observada pela ótica da “tradição inventada” (HOBSBAWN;

RANGER, 2017), em que as práticas elaboram valores e normas comportamentais na sociedade, o que de certa forma liga o passado ao presente:

Entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de naturezas ritual ou simbólica, visam a inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. (HOBSBAWN; RANGER, 2017, p. 10).

Essa ideia de tradição pode até satisfazer as ambições de um pesquisador, em um primeiro momento, mas, tratando-se de um cenário brasileiro, de uma sociedade que se articula pelas beiradas e cresce ao contrário da normativa, igual a um baobá5, cujas raízes miram o céu, expondo, assim, a grandiosidade de referências e de articulações “tradicionais”, assumir a ideia de Hobsbawn não contempla o cenário aqui abordado.

Por isso, a leitura de tradição envereda por outras searas, é articulada em comum diálogo com o objeto de estudos: o candomblé. O olhar toma uma direção talvez contrária à comum: de dentro para fora, de mãos dadas com uma abordagem decolonial6, propondo uma inferência de

4 Elementos-símbolo religiosos: axé enquanto a roda de iniciados que se forma durante a cerimônia e cumeeira como oferenda para o orixá dono do chão do terreiro, o axé plantado no barracão. (LUZ, 2017).

5 Baobá, igual à Gameleira branca, está associado, em alguns candomblés de nação Queto, à ancestralidade, ao tempo, ao que atravessa as gerações e perdura enquanto conhecimento. Em iorubá, “ìgbá ì wà ñû” é o tempo quando a existência sobreveio, entendendo que a retórica do povo se estabelecia na oralidade e aos pés das árvores; ao redor do baobá, uma árvore africana de tronco avantajado, é estabelecida a dinâmica social dos povos iorubás, sua educação, suas ações sociais, seus tratos econômicos. Aos pés da árvore tudo se atravessa, cruza-se, formando uma encruzilhada cotidiana, por isso ilustrar a dissertação como um olhar direcionado ao baobá: é mais do que uma árvore, é a cartilha social que revela corpos, indivíduos e agentes universais.

6 A perspectiva decolonial de análise desta pesquisa reforça exatamente o movimento de observação de dentro para fora, em que os agentes sociais analisados são, também, os indivíduos que compreendem uma lógica própria e justificam a razão de ser e de existir social, política e religiosamente no contexto brasileiro; atravessada a essa ideia

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tradição construída, praticada e narrada dentro das paredes do Axé Ilê Obá, contemplando a memória das vozes ali inseridas. O olhar necessário para a compreensão desta pesquisa deve ser um olhar que aprendeu a contemplar as raízes do baobá.

Alinhado a essa perspectiva, por “mais velho” e por “mais novo”, este trabalho assume como premissa a terceira geração da Axé Ilê Obá, sob a tutela de Paula de Iansã. Para isso, são entendidos por “mais velhos” os adeptos das duas primeiras gerações do terreiro, e, por “mais novos”, os adeptos da terceira e atual geração, tendo em vista as idades de santo (tempo de iniciados na religião): essas são as memórias a narrar a tradição do terreiro e que constroem os pequenos troncos, confundidos com raízes, deste baobá a mirar o céu.

Para se entender por que o conceito de Hobsbawn, embora válido, precisa de ser reestruturado por meio de outras perspectivas para melhor nortear a leitura deste trabalho, vale diferenciar “tradição” de “costume”, uma vez que, enquanto a primeira procura se manter invariável, o segundo lança mão de sua função motora para não impedir as inovações e – por que não? –, com isso, sobreviver:

O “costume”, nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente. Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na história. (HOBSBAWN e RANGER, 2017, p. 11).

A construção de um terreiro de candomblé em São Paulo, na década de 1960, por si só já é uma inovação de algo anteriormente praticado e, por isso, uma sobrevivência. Tradição e costume são conceitos deste baobá, são os galhos-raízes que articulam essa sociedade candomblecista, neste cenário paulistano, no contexto da zona sul da cidade que se modificou durante as décadas em que a casa de santo permaneceu e permanece.

de decolonialidade, este trabalho se apoia nas ideias das epistemologias do Sul, em que o pesquisador não pretende encaixar as organizações sociais observadas nas gavetas pré-elaboradas pela epistemologia eurocêntrica, podendo, assim, resvalar em uma colonização acadêmica. O intuito é justamente o contrário: compreender a organização social e a lógica estabelecida por seus agentes como completa em si mesma, fruto de múltiplas transformações: “Sendo certo que as lutas mobilizam múltiplos tipos de conhecimento, a reinterpretação permanente do mundo não pode ser produzida por um tipo único de conhecimento” (SANTOS, B. 2019, p. 11), reforçando a premissa de que esse tipo único é o herdado das escolas europeias e que não se revela suficiente para observar a dinâmica do candomblé paulistano.

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Daí o motivo de se enxergar de dentro para fora: a casa é a grande personagem deste texto, a estrutura que abriga a religião, o grande objeto desta pesquisa. As vozes que trazem à tona as narrativas ali elaboradas e reelaboradas determinam o que é e o que deixa de ser tradição neste contexto, porque, embora os galhos do baobá que miram o céu chamem a atenção do turista distraído, eles escondem as raízes da árvore.

Por que o Axé Ilê Obá?

Esta escolha se dá, principalmente, devido à ausência de pesquisas desenvolvidas sob este viés na academia, principalmente com o foco no processo de preservação da tradição aplicada dentro desse terreiro especificamente. Embora seja uma casa de candomblé estudada por historiadores, antropólogos e cientistas sociais, o cenário ainda é pouco explorado na Ciência da Religião.

A Casa da Força do Rei7 é tida como um dos terreiros de candomblé mais tradicionais da cidade de São Paulo, o primeiro a ser tomado pelo Condephat, em sua segunda geração, sob o comando de Mãe Sylvia de Oxalá.

Esse tombamento deu ao terreiro uma projeção midiática que o levou para além da vitrine religiosa, alcançou o ambiente político, cultural e, também, acadêmico.

Com isso, a resposta à pergunta sobre um possível embranquecimento do candomblé pode ser obtida ao analisar o Axé Ilê Obá por ser um terreiro que acompanhou, por três gerações, a chegada e o desenvolvimento da religião na cidade de São Paulo em três diferentes contextos: na década de 1960, com o pai Caio, na década de 1990, com Sylvia, e a partir de 2015, com mãe Paula.

Esse percurso, aqui delimitado como três gerações, contempla esta pesquisa que propõe identificar o desenvolvimento da religião neste contexto específico: por quais adaptações a comunidade precisou passar, quais tradições e quais costumes foram mantidos e mantidos a partir de quem, de qual casa matriz? Perguntas que evidenciam a importância das memórias guardadas na casa, uma vez que as análises já construídas sobre o candomblé paulistano não partem de dentro

7 Axé Ilê Obá, em uma tradução formal do iorubá, seria A Força da Casa do Rei, e não o contrário. Porém, esta dissertação adotou a denominação dos filhos e das filhas de santo da casa, que a chamam de A Casa da Força do Rei.

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para fora, e sim do movimento contrário, inserindo as articulações religiosas e sociais do candomblé nos recortes epistemológicos europeus8.

Um movimento que pode ser superado, como revelou a antropóloga Juana Elbein dos Santos a Vagner Gonçalves da Silva, a depender da motivação do pesquisador:

Eu acho que a gente tem que quebrar com o narcisismo acadêmico que nós trazemos. A gente introjeta todos esses estudos de anos e anos, faz parte de uma sociedade hegemônica, de uma “diversidade hegemônica”, nossa diversidade que vai só até determinados grupos sociais; você introjeta todo um mundo que não tem a ver com o fatual, depois você vai ao campo e quer botar o fatual dentro daquele esquema teórico escolástico, acadêmico. (SILVA, 2000, p. 69).

Assim, é possível, por ora, retomar a pergunta que provoca esta pesquisa, se há um embranquecimento do candomblé em São Paulo, e reformular o ponto de partida desta interrogação: por que se acredita que há um embranquecimento do candomblé em São Paulo?

Essa alcunha epistemológica é herança desse olhar unilateral sobre a prática religiosa e as abordagens eurocêntricas de pesquisa: não se pode contemplar plenamente a beleza do baobá procurando nele os frutos de uma cerejeira.

Candomblé paulistano

8 Diálogo direto com três registros sobre o candomblé paulistano em contextos diferentes: o de Roger Bastide, o de Reginaldo Prandi e o de Carmen Opipari. As três abordagens constroem o que se pode considerar um triângulo interpretativo da religião em São Paulo, resvalando os três no aspecto “embranquecido” e “mercadológico” do candomblé. A perspectivas mercadológica não interessa a esta dissertação, justamente por transformar o grupo religioso em uma peça no tabuleiro capitalista e neoliberalista, negando a complexidade que há por trás dos aspectos de sobrevivência em uma sociedade economicamente desigual. Sendo, então, a perspectiva “embranquecida” a problemática desta pesquisa, uma vez que ela pode resumir, também, a complexidade por trás da dinâmica religiosa e sua organização, exemplificar o candomblé paulistano como “embranquecido” ou como “mercadológico” é se contentar com uma amálgama epistemológica eurocêntrica, unilateral. A proposta da dissertação é de olhar de dentro para fora, resgatar as trajetórias complexas e individuais dos agentes religiosos, dos filhos e das filhas de santo. Mais do que classificar, o objetivo é de ouvir, um resgate do exercício da oralidade praticamente abandonado pelo conhecimento do letramento. Uma amálgama entre a preservação da tradição e as adaptações sociais: “A oralidade transmite ao mesmo tempo o patrimônio cultural de uma geração para outra dentro de um determinado grupo e constitui novas formas de solidariedades, de saberes e de fazeres. Por ela, as práticas e normas são reproduzidas ao longo das gerações, e ao mesmo tempo os costumes lentamente diversificados” (BRITO apud PASSOS; USARSKI, 2013, p. 495). Diante disso, talvez não caiba mais classificar tamanha complexidade como “embranquecer” e

“mercadologizar”.

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Para se pensar nesse possível embranquecimento do candomblé em São Paulo e colocar mais uma interrogação nessa afirmação, é preciso pensar além do recorte do Axé Ilê Obá e entender um pouco as origens da religião no município.

Pouca certeza se tem de quem foi o primeiro pai de santo ou a primeira mãe de santo na cidade, quem levou o candomblé para o município. Mãe Manodê, do terreiro de Santa Bárbara, nação de Angola, é o nome que mais se encontra quando se investiga o pioneirismo da religião na cidade. Não se tem a certeza de que foi a primeira a plantar o axé (inaugurar um terreiro), mas foi quem primeiro registrou como casa de candomblé, em cartório, sua sede religiosa em 1965 (PRANDI, 1991, p. 93).

Julita Lima da Silva, a mãe Manodê, negra e baiana, construiu seu terreiro na região da Brasilândia, zona norte, e resistiu até seu falecimento, em 2005, às ameaças de desapropriação pelo governo estadual devido às obras do Rodoanel. Nasceu para o santo nas mãos de outra mulher negra, a mãe Nanã de Aracaju, em 1939, e deixou seu terreiro nas mãos de uma mulher branca, mãe Pulquéria, que comanda a casa de axé até hoje.

Esse movimento de frequência, iniciação, obrigação e herança do candomblé, pode-se dizer, passou por um embranquecimento não só no específico caso citado acima, mas em expressiva escala por seu processo de angariar adeptos no decorrer dos últimos cinquenta anos:

Segundo o Censo do IBGE de 2010, pretos e pardos constituem 54% dos evangélicos no país. De acordo com os mesmos dados, dos 167.363 praticantes declarados do candomblé, 30,2% são brancos, 29,1% são pretos e 39,3%, pardos. Na capital do estado de São Paulo, por exemplo, uma pesquisa da Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial apontou que 60,6% dos seguidores das religiões afro-ameríndias brasileiras são brancos, enquanto os pretos representam 13,1% e os pardos, 25,5%. (FRANÇA, 2018, p. 56).

O que seria, então, o embranquecimento do candomblé? E o processo de resistência do negro nos terreiros?

Seria correto inferir que esse processo tem início a partir do momento em que as grandes lideranças de terreiro precisaram de abrir as portas de suas casas de axé para a chegada dos brancos como contrapartida de uma proteção judicial e midiática contra os ataques de intolerância de uma elite preconceituosa?

O desenvolvimento das religiões afro-brasileiras foi marcado pela necessidade de criar estratégias de sobrevivência e diálogo frente às condições adversas. Foram perseguidas pela Igreja Católica ao longo de quatro séculos, pelo Estado republicano, sobretudo na

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metade do século XX, quando este se valeu de órgãos de repressão policial e de serviços de controle social e higiene mental, e, finalmente, pelas elites sociais num misto de desprezo e fascínio pelo exotismo que sempre esteve associado às manifestações culturais dos africanos e seus descendentes no Brasil. Entretanto, desde pelo menos a década de 1960, quando essas religiões conquistaram relativa legitimidade nos centros urbanos, resultado dos movimentos de renovação cultural e de conscientização política, a aliança com membros da classe média, acadêmicos e artistas, entre outros fatores, não se tinha notícia da formação de agentes antagônicos tão empenhados na tentativa de sua desqualificação. (SILVA, 2007, p. 23).

Por sua vez, talvez seja bastante precipitado conferir a essa pseudointenção de proteção por parte da resistência dos terreiros o embranquecimento de seus adeptos. O que se tem é um embranquecimento cultural como um todo, desde a colonização, que só se solidificou. Isso pode ser inferido ao se considerar o candomblé não apenas como manifestação religiosa, mas como cultura popular, uma vez que não se trata puramente de fé de matriz africana, já que, ao mesmo tempo em que aborda a religião dos negros, os orixás, também se defende os valores religiosos ocidentais sobre a religiosidade africana, demonstrando, em seu discurso, a superioridade da cultura europeia sobre a africana (RODRIGUES, 2010).

Essa disputa que vai além da territorial entre negros e brancos, que se estabelece, também, nos aspectos sociais e culturais, muito provavelmente pode ter favorecido o embranquecimento do candomblé, já que, por trás da estrutura do comportamento social, há uma relação dominadora e uma tentativa de prevalecimento colonizador.

Porém, o que se deve considerar, aqui, é que não se entende como embranquecimento a ideia de tornar branco, como uma substituição de cor. Articular o pensamento dessa forma evidencia o olhar epistemológico unilateral anteriormente apresentado. Aqui, cabe a análise por meio dos aspectos político-sociais que circunspectam esse fenômeno de embranquecer:

O embranquecimento dos cultos afro-ameríndios pode trazer opções estratégicas para a resistência destas comunidades e não oferecer risco à violação dos valores e saberes ancestrais, se acompanhado de esforços que combatam a perpetuação de dinâmicas racistas. A intromissão da branquitude nestes espaços, por outro lado, deve ser um fenômeno admitido como evitável e incoerente. (FRANÇA, 2018, p. 75).

Uma vez que:

O terreiro é o local onde os negros podem, sem embargos, colocar-se de maneira livre, construindo e reconstruindo laços afetivos, estabelecendo elos importantes com suas ancestralidades. E, portanto, mesmo que embranquecido, este espaço permanece tendo

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como função lapidar o enfrentamento às violências decorrentes do racismo em suas mais variadas manifestações. (FRANÇA, 2018, p. 74).

A proposta, mais uma vez, por meio do título desta pesquisa, é a de revisitar essas análises já construídas sobre a religião em São Paulo e, para além disso, propor outra perspectiva de análise:

a de dentro para fora.

É justo, então, evidenciar os esforços de abordagem decolonial para observar o candomblé na disciplina da Ciência da Religião, por vir à tona questões que evidenciam os caráteres social, político e histórico da religião.

Antes de estruturar melhor o que seria a abordagem “de dentro para fora”, é importante apresentar as ideias já defendidas sobre o candomblé paulistano e que impulsionam a retórica desta dissertação: perspectiva teórica da antropóloga Carmen Opipari, apresentada em 2009, como uma resposta ao mapeamento de Roger Bastide (em 1945) e de Reginaldo Prandi (em 1990) do candomblé na cidade de São Paulo.

Segundo a antropóloga, a religião deve ser observada como motor de fabricação social e simbólica das relações humanas, uma vez que o terreiro é reflexo das relações construídas socialmente, e não produtor dessas relações. Portanto, é composto por cidadãos que são agentes de suas próprias histórias e de seus atos sociais. Assim, o candomblé representaria uma potência criadora de aspectos materiais e sócio-históricos (OPIPARI, 2009, p.263).

Sob essa perspectiva, analisar a terceira geração do Axé Ilê Obá é retomar os conceitos de tradição e de costume apresentados por Hobsbawn: voltando ao ponto de partida de um olhar unilateral e correndo o risco de observar apenas o já observado.

Mesmo que a ideia seja a de entender se as três gerações da casa caminharam conforme a linha temporal apresentada por Opipari para descrever o candomblé paulistano, muito provavelmente se resvalaria no olhar unilateral. Para evidenciar essa ideia, é possível traçar, por ora, como a trajetória do Axé Ilê Obá pode ser vista por um olhar encantado pelos galhos do baobá, mas distraído às raízes que o sustentam:

A primeira geração, identificada por Roger Bastide, sintetiza a resistência da população negra em um território branco. Para ele, a “religião dos pretos” (BASTIDE, 1945, p. 28) era uma forma de se mobilizar entre os iguais, como uma articulação das práticas culturais e sociais, em São Paulo iniciou-se com a macumba (rodas de samba e eventuais possessões), tornou-se umbanda até ser considerada candomblé.

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Inserida neste contexto, está a primeira geração do Axé Ilê Obá, comandada por pai Caio.

A segunda, identificada por Reginaldo Prandi (também considerada posteriormente por Bastide), apresenta um candomblé embranquecido como mais uma opção à oferta do mercado religioso, concorrendo com o catolicismo, o kardecismo, o protestantismo etc.:

Competirá, portanto, no mercado religioso com outras religiões universais importantes em São Paulo, catolicismo, pentecostalismo, kardecismo e umbanda, além de seitas recentes de origem oriental e outras modalidades religiosas. (PRANDI, 1991, p. 20).

Essa perspectiva chamada de embranquecimento pode ser lida como “profissionalização do pai de santo”. É o momento em que surge um elemento-chave para se entender a configuração do candomblé dentro uma metrópole capitalista: o cliente.

A segunda geração do Axé Ilê Obá, comandada por mãe Sylvia, é contemporânea a essa análise de Prandi.

A terceira, elaborada por Opipari e revista neste trabalho, apresenta o candomblé possivelmente embranquecido, em um processo de reconhecimento de tradições, mas adaptado a novas perspectivas e a novos contextos. É a geração em que o cliente se torna, também, adepto, ativo, participante, filho de santo.

É importante identificar esse processo de troca entre o que pode se considerar antigo e novo no Axé Ilê Obá para saber qual a origem e se ela se faz necessária para o entendimento do contexto atual, uma vez que ela pode significar apenas uma dicotomia:

Essa ideia de origem pressupõe uma distinção entre, de um lado, a “coisa primeira” ou o modelo original e, de outro, sua representação e suas cópias. Ela igualmente estabelece uma distinção entre a verdadeira, a boa cópia desse modelo e a falsa, a pura e a impura, a autêntica e a corrompida etc. (OPIPARI, 2009, p. 261).

As adaptações religiosas de alguns costumes para manter uma possível tradição não é privilégio do candomblé paulistano (SOUZA, 2017), é um processo pelo qual toda a formação e consolidação da religião passou, desde a vinda dos africanos escravizados no século XVI até a formação dos primeiros terreiros de candomblé na Bahia, no século XIX:

É importante salientar que o processo de surgimento do candomblé foi marcado por uma gradual progressão do seu sistema religioso, indo dos batuques e calundus, passando pelas redes de irmandades religiosas, até as primeiras comunidades estruturadas como liturgias

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e teologias sistematizadas como uma complexa organização eclesial. (SOUZA, 2017, p.

33).

Daí entender essas adaptações, em seu processo histórico-social na cidade de São Paulo, como um possível embranquecimento da religião requer um prévio esclarecimento do que pode vir a ser entendido como embranquecimento: etnia, cultura ou sociedade.

Por etnia, entende-se a cor da pele e como os cidadãos adeptos da religião se identificam etnicamente. Por cultura, entendem-se os costumes cristãos que foram incorporados na religiosidade de matriz africana, uma vez esses costumes não estavam nas senzalas, mas nas casas de engenho e na ideia de catequização dos negros escravizados. Depois, esses costumes podem ser identificados no contexto religioso da segunda metade do século XX, na cidade de São Paulo, como uma cidade majoritariamente católica. E, por sociedade, entende-se a relação estabelecida entre a população negra e a população branca na modernidade paulistana – a qual lugar físico e político pertencia o negro e a qual lugar pertencia o branco (BASTIDE; FERNANDES, 2008).

A chegada do candomblé em São Paulo é periférica, não-assalariada e de tradição oral, para não dizer não-escolarizada, o que corresponde ao levantamento de Roger Bastide e de Florestan Fernandes, ao analisarem o contexto da população negra na década de 1940:

O que é significativo é a flagrante desigualdade que separa o negro do branco na cidade de São Paulo. Os negros não participam, em regra, nem das garantias proporcionadas pelos serviços bem remunerados ou de alguma representação social, nem dos benefícios colhidos pela livre iniciativa em uma economia urbana. Semelhante distribuição das ocupações traduz a persistência das barreiras econômicas, que sempre distinguiram socialmente os representantes das duas raças no Brasil, e de antigos critérios de seleção ocupacional associados à cor. (BASTIDE; FERNANDES, 2008, p. 76).

Como uma alusão ao processo de sobrevivência dos escravizados africanos no contexto do século XVI, em que precisaram se unir em um processo de resistência e manter a identidade cultural, os negros do século XX na cidade de São Paulo passaram pelo processo de marginalização econômica e social e tiveram consigo a manutenção de sua tradição da maneira que lhes era possível, com rodas de jongo, de capoeira, de samba de terreiro, com alguns espaços religiosos de umbanda, onde podiam, de modo mais precário, receber suas entidades sagradas, até a estruturação dos primeiros terreiros de candomblé, nas regiões periféricas. No caso deste estudo, o bairro do Jabaquara.

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Acontece que o Jabaquara se desenvolveu junto do terreiro. Ambos passaram por um processo que acompanhou a elitização do bairro na região sul de São Paulo, daí a pergunta do possível embranquecimento da religião: se ocorreu, foi sob qual perspectiva?

Pode-se, então, lançar mão dos elementos sociopolíticos e entender a resistência como principal raiz de sustento desse baobá:

É indiscutível a obstinação das casas de candomblé para resistir à opressão do sistema, que por muitos anos permaneceu subjugado aos resquícios da intolerância colonial e do racismo estrutural. Assim, os terreiros adquiriram uma postura estratégica para lutar contra a imposição da violência estatal e das dinâmicas segregacionistas da sociedade, tornando-se verdadeiros oásis de humanidade e cooperação em um deserto de discriminações. (FRANÇA, 2018, p. 63).

Pronto. Já se avistou o baobá: viu que seus galhos podem ser confundidos com raízes. Mas ainda existem raízes escondidas que sustentam a árvore.

Partindo dessa perspectiva, este trabalho não pretende analisar somente a resistência, a produção de novas tradições, a permanência dos costumes e o processo de remodelagem religiosa desenvolvido para a manutenção da primeira casa de candomblé do município de São Paulo tombada como patrimônio histórico. Nem mesmo se ater às ideias de etnia, de religião e de sociedade separadamente como se elas dessem conta, isoladamente, de evidenciar as direções e os encontros dos galhos dessa árvore. Esses são apenas os galhos aparentes e já vistos e analisados deste baobá: o que, então, está escondido?

Esta pesquisa pretende analisar o que está por debaixo dessa terra, o que sustenta a grandiosidade dessa árvore que parece alcançar o céu.

As ideias de uma epistemologia unilateral abandonadas nesta dissertação não correspondem a uma negação completa. Inclusive, representam o contrário. Reconhece-se a importância das análises já desenvolvidas sobre o tema, tanto que foram previamente lembradas neste texto, para apresentar o ponto de partida dessa provocação.

O que se deseja, a partir de agora, é ouvir o silêncio. Procurar as vozes dentro da casa.

Formação do candomblé

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Ainda em relação aos olhares já direcionados sobre candomblé e em relação às epistemologias já construídas, é importante resgatar, brevemente, os estudos acerca de sua constituição.

Quando se pretende analisar o desenvolvimento da religião em São Paulo pela mesma perspectiva do processo de desenvolvimento e de consolidação do candomblé em Salvador, é preciso resgatar elementos fundamentais que podem ser observados nesses dois momentos históricos, sendo eles: (1) conceito de nação e (2) conceito de resistência.

Candomblé é uma religião brasileira de matriz africana. Os elementos religiosos que compõem as rodas de santo, as divindades e – por que não dizer? – seu processo litúrgico são oriundos da Nigéria, da Guiné, de Angola, do Benin, do Daomé e de Moçambique.

Cidadãos africanos de diferentes tribos (bacongos, ambundos, benguelas, ovambos, tapaz, bornus, minás, hauçás, jejes e principalmente iorubás) foram obrigados a esquecer suas diferenças culturais, linguísticas, religiosas e sociais para sobreviverem a um processo escravagista oficial de quatro séculos: XVI até XIX (LIMA, 2003).

A união desses povos para resistirem à perda de identidade (com os processos de colonização e de que catequização) resultou, entre outras organizações sociais, culturais e políticas, no candomblé, a religião que reuniu os elementos de devoção e os ritos de adoração de diferentes nações para não serem esquecidos e não morrerem na travessia do oceano, em um navio negreiro.

Esse conceito de nação, quando se fala em candomblé, é importante ser resgatado porque não se trata de um olhar purista em relação aos povos, unicamente étnico (BASTIDE, 2001), mas de um olhar cultural, que possibilita um pluralismo de tradições, e que resulta em um elemento religioso brasileiro, daí a possibilidade de fazer um paralelo entre a formação da religião no século XIX, depois de um processo escravagista de quatro séculos, e a formação do candomblé paulistano, na segunda metade do século XX.

O conceito de resistência dialoga com o de nação9 por ser um processo político e social de comunicação entre os povos dessas diferentes nações. No processo de formação do candomblé, os

9 Importante evidenciar que o conceito de nação aos povos escravizados é dado pelo olhar colonizador; a nomenclatura parte de uma epistemologia eurocêntrica. Embora didática para a compreensão do texto desta dissertação, cabe a problematização desse termo. Classificar o “Outro” por meio de termos segregadores parte do olhar europeu de colonização para inserir em sua perspectiva de mundo que não corresponde a seu modelo, com os termos raça, razão e nação: “Confrontos cosmos/corpo/cultura, entre povos com profundas diferenças em seus modos de vida material, espiritual, mental foram representados em termos de raça, razão, nação por europeus que fizeram sua modernidade,

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negros ofereciam, de cada tribo/nação, um pouco de sua cultura particular para moldar um novo culto, com costumes de tradições distintas:

É possível distinguir essas ‘nações’ uma das outras pela maneira de tocar o tambor (seja com a mão, seja com varetas), pela música, pelo idioma dos cânticos, pelas vestes litúrgicas, algumas vezes pelo nome das divindades, e enfim por certos traços do ritual. (BASTIDE, 2001, p. 29).

Essa junção de diferentes costumes contribuiu para algo além de modalidades de ritos que configuram o candomblé, mas formaram uma identidade coletiva (PARÉS, 2007). Esse processo de aglutinação de diferentes elementos culturais e religiosos que ocorreu no século XIX, na formação dos primeiros terreiros de candomblé Queto na Bahia, pode, também, ter ocorrido no processo paulistano, mas com diálogo direto à religião cristã com a filiação da população branca da metrópole industrial.

Esse resgate é um pequeno alicerce da construção dessa casa que é o Axé Ilê Obá. Em uma metáfora, entendem-se essas ideias apresentadas como conceitos-base para o que se articula a partir de agora na pesquisa.

Ao pensar na imagem do baobá, pode-se dizer que a nação e a resistência são duas raízes, as mais grossas que saltam da terra; por isso, os olhos do turista primeiro as enxergam: mas elas são apenas duas raízes. E tornam-se insuficientes para enxergar a complexidade da formação do candomblé, por serem termos que favorecem o ordenamento político-epistemológico sob a ótica do colonizador.

Existem outras raízes que, para serem vistas, precisam ultrapassar o filtro da ótica civilizatória perpetuada pela epistemologia eurocêntrica. Ótica essa que subalternizou o “Outro”:

Ao largo de preceitos científicos de assepsia social e moral, escritores de procedências distintas e sob diferentes ângulos descreveram, desenharam hábitos e expressões de universos populares, relegando ao exótico, ao folclore, às margens da nação e de sua restrita cultura legitimada, marcas de tensões e lutas renegadas, a serem escavadas para sinalizar inúmeros e complexos caminhos do construir nossa pretensa coesão e cultura nacional. De patologias de africanos rebelados e criminalizados sob acusações de animismo fetichista passamos a discursos, editoriais da imprensa, pleiteando imigração, branqueamento, fim do analfabetismo e outras “doenças” crônicas, até intelectuais, políticos e literatos da conciliação. Nesse sentido, além de horrores da repudiada formação, advieram prazeres da mestiçagem luso-tropical, louvores ao “homem cordial”, usufruindo, animalizando seus Outros. Esse abismo moral, cosmológico, produziu reflexões em poucas palavras e forte impacto” (ANTONACCI, 2018, p. 7).

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aplainando arestas, alisando terrenos rumo ao racional e espúrio legado de apaziguamentos raciais e culturais. (ANTONACCI, 2018, p. 79).

A formação do candomblé foi registrada por meio desses aspectos que colocaram a religião no lugar do “Outro”, uma vez observada por meio da epistemologia hegemônica; por isso, embora termos como “nação” e “resistência” sejam tocados nesta dissertação, é preciso entender a que perspectivas ambos correspondem para que sejam superados no decorrer da pesquisa.

Assim, levando em consideração esses paralelos entre os conceitos de nação e de resistência na formação do candomblé brasileiro e do candomblé paulistano, é possível retomar a pergunta que motiva esta dissertação: pode-se entender que há um embranquecimento da religião, na tentativa de adaptar os costumes para manter uma tradição?

Seria essa pergunta a revelar as raízes que ajudam a sustentar o baobá?

Uma hipótese coerente a essa perspectiva é a de que, sim, o candomblé passa por esse fenômeno social, uma vez que a religião é atravessada por questões políticas, históricas, antropológicas, culturais etc. A religião, embora possa ser observada como um fator social isolado, é construída e reconstruída de maneira contextualizada, daí o intuito de não se ignorar o que está para além das narrativas hegemônicas acerca da religião.

Corroborando essa ideia, é possível inferir a perspectiva de análise das vozes silenciadas, deixando que o candomblé fale por si, revele-se, represente a si mesmo. Para além de um estudo sobre o candomblé, é um estudo com o candomblé.

Partindo da hipótese de que há um embranquecimento da religião, pode-se, nesta dissertação, assumir, pelas palavras de Homi Bhabha, a responsabilidade pelos passados não ditos e oferecer uma perspectiva da análise interna, em que as vozes silenciadas são representadas por si mesmas, suas narrativas são ouvidas e apreendidas a fim de construir uma epistemologia representativa e participativa (BHABHA, 1998, p. 34).

Ainda assumindo o embranquecimento como uma hipótese à indagação motivadora desta pesquisa, é possível analisar como os indivíduos brancos se comportam no espaço religioso, em vez de se resumir a tentar responder por que ocupam esse espaço religioso; essa perspectiva pode se revelar mais bem-sucedida ao tentar recuperar as representações que se perderam nos processos de produção histórica, seja social, seja acadêmica.

A hipótese positiva para o embranquecimento também oferece a oportunidade de analisar o que difere esse processo ao de branquitude:

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Atualmente os diversos movimentos negros brasileiros têm se agitado no sentido de questionar o embranquecimento destes espaços ancestrais e têm trabalhado como uma força motriz no semear de inquietações em torno deste fenômeno. É importante notar, em alguns destes discursos, uma naturalização da correspondência entre o ingresso de brancos no candomblé e a contaminação dos terreiros pelos vícios da branquitude – como se, via de regra, os indivíduos brancos iniciados no candomblé traduzissem obrigatória e inerentemente uma intromissão das práticas colonizadoras e racistas nas redomas religiosas afro-ameríndias. São casos típicos de confundir o fenômeno do embranquecimento com a operação da branquitude, conceitos que devem permanecer distintos – de certa forma relacionados, mas não interdependentes. (FRANÇA, 2018, p.

59).

Sendo que a branquitude representa os vícios de comportamento colonizador nos espaços sociais, como o mandonismo, o racismo, a violência de gênero e a desigualdade social (SCHWARCZ, 2019, p. 41); analisar, então, como os indivíduos brancos se organizam no candomblé pode ser mais relevador do que entender por que motivos se convertem à religião.

O objetivo deste trabalho não é o de provocar qualquer acusação em relação ao candomblé praticado na cidade de São Paulo, muito menos o de levantar qualquer possibilidade que invalide a prática religiosa do Axé Ilê Obá, pelo contrário.

Primeiro porque, aqui, não se pretende fazer um trabalho teológico sobre candomblé, fazendo qualquer tipo de acareação com os ritos da casa e julgando o que pode ou não ser tido como elemento tradicional.

Este trabalho se propõe a analisar um processo social em relação ao candomblé paulistano, com foco em um dos terreiros mais antigos da cidade, o primeiro a ser tombado como patrimônio histórico.

Entender se há um possível embranquecimento da religião é, também, um mergulho em uma análise antiga sobre o candomblé praticado em São Paulo, que ficou datado no começo dos anos 1990 (PRANDI, 1991) e que não foi revisto com tamanho fôlego: porém, não se resumir apenas a esse conceito do embranquecimento, ir além, propor o olhar de dentro para fora, outra perspectiva de análise que não a eurocêntrica, observar não apenas as paredes do Axé Ilê Obá, mas resgatar a memória das mãos que uniram tijolo por tijolo e levantaram esse barracão.

O processo inicial desta pesquisa parte de uma descrição prévia das três gerações do Axé Ilê Obá. Neste processo de descrição, não há preocupação em questionar os dados já coletados por outros pesquisadores acerca da formação do terreiro estudado.

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Neste primeiro momento, a principal preocupação é a de estabelecer três cenários na história do Axé Ilê Obá, sob três comandos distintos: o de pai Caio, o de mãe Sylvia e o de mãe Paula. Além disso, neste processo inicial de descrição, é preciso traçar um cenário de participação dos filhos e das filhas de santo nesses três momentos do terreiro do Jabaquara, bem como descrever quantitativa e qualitativamente o desenvolvimento do axé, com base em registros internos que o próprio terreiro mantém.

Daí a intenção, também, de desenvolver entrevistas com os fiéis da casa, o principal procedimento de pesquisa a ser desenvolvido neste trabalho: entrevistar os fiéis e conflitar os dados falados com os registrados historicamente em documentos e pesquisas anteriores.

Essa descrição ambicionada em um primeiro momento é revista no decorrer do processo de pesquisa, como apresentado principalmente no terceiro capítulo desta dissertação, por conta da pandemia de Covid-19 que suspendeu atividades acadêmicas (e também religiosas) no ano de 2020.

Movimentos como o de visita ao terreiro, de encontro e entrevista com os fiéis e da prática acadêmica presencial foram interrompidos, o que não se pode dizer que prejudicou a pesquisa empírica, mas reformulou: precisou de algumas adaptações que serão apresentadas conforme o desenvolvimento do texto.

Em um segundo momento, após traçar esse cenário inicial de contextualização, identifica- se por qual processo social o terreiro passou: como eles reconhecem o axé? Além: como eles se reconhecem no axé? Para isso, além da análise dos dados já colhidos, as entrevistas com os adeptos é o que potencializa a intenção de ouvir as vozes que levantaram os tijolos do terreiro e que mantêm as paredes em pé.

Importante ressaltar, aqui, as três ideias norteadoras da pesquisa, os galhos evidentes deste baobá, o que os olhos já avistaram: (1) houve um embranquecimento da religião, (2) como isso ocorreu, se faz sentido essa pré-explicação de relação mercadológica da religião e a passagem da figura do cliente para filho de santo e (3) por que isso ocorreu.

Porém a mesma importância que tem em apresentar esse ponto de partida das conversas também existe nos caminhos abertos que serão percorridos para além desse recorte, uma vez que as narrativas dessas memórias são as raízes do baobá que interessam a essa pesquisa.

A conclusão desta etapa tem a ambição de confrontar, também, o entorno do axé, a região do Jabaquara, que mantém culturalmente o intuito de preservar a cultura africana, com o sítio da

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Ressaca, com o Centro de Culturas Negras do Jabaquara ou até mesmo com o Axé Ilê Obá. Essa conclusão prevê a ideia de um desenvolvimento posterior de outras análises que vão além do ambiente religioso do candomblé, mas que buscará entender o que estaria presente em todo o entorno: uma evidência é o diálogo estreito entre o terreiro e o grupo de maracatu da região, mesclando as atividades culturais e religiosas em ambos os espaços, um diálogo entre a preservação cultural (costumes) e a articulação da atual formação do terreiro (tradição).

Assumir, metodologicamente, a necessidade de ouvir as vozes e de registrar as narrativas que ecoam em um terreiro de candomblé na cidade de São Paulo representa um encontro positivo à intenção de novas abordagens de análise acadêmica, inclusive Programa de Estudos de Pós- Graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.

Analisar empiricamente o terreiro, prestar atenção no que é dito dentro daquelas paredes, assumir epistemologicamente uma perspectiva decolonial, em que os protagonistas sociais são os próprios indivíduos em seus contextos, é procurar pelos mistérios das raízes do baobá, não se contentar apenas com a grandiosidade aparente da árvore, é procurar entender o que sustenta tronco tão corpulento.

A epistemologia decolonial, aqui, faz-se imprescindível para chegar às raízes desse baobá:

seja por se tratar, o candomblé, de uma religião quase subalterna na produção científica do estudo das religiões, seja por se assumir o olhar unilateral eurocêntrico, inserindo as manifestações religiosas em gavetas preestabelecidas, quase negando sua autonomia ou negligenciando sua relevância político-social em um contexto brasileiro, pouco se dedicando a estudá-la, na Ciência da Religião candomblé ainda é observado com a desatenção de quem se distrai diante do mistério do baobá.

Em um artigo publicado na revista REVER10, em 2019, sobre a produção de estudos de religiões de matriz africana, os autores levantaram 9 teses de doutorado e 38 dissertações de

10 BRITO, Ênio José da Costa; PIMENTEL, Cláudio Santana. Notas sobre os estudos das religiões afro-brasileiras nos Programas de Ciência(s) da Religião no Sudeste e Centro-Oeste do Brasil: origens e perspectivas. REVER:

Revista de Estudos da Religião, v. 19, n. 2, maio/ago. 2019. Disponível em:

http://revistas.pucsp.br/rever/article/view/45165; Sobre este artigo, é possível ter acesso a uma análise mais detalhada do candomblé como objeto de estudos na Ciência da Religião, sob dois aspectos de problematização: (1) os debates recorrentes (em 2019) sobre laicidade do Estado e o ensino religioso nas escolas públicas. Ao ler esses debates realizados academicamente por um recorte decolonial (em que a perspectiva não é europeia e os dois polos de força não são protestantismo e catolicismo) vem à tona um silêncio (para evitar dizer anulação) da perspectiva das religiões de matriz africana, uma vez que são as mais vitimizadas social, cultural e politicamente no bojo das aplicações dessas políticas. O racismo religioso (2), lido pela perspectiva de Achille Mbembe, não tem espaço no debate da laicidade

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mestrado produzidas no Programa, de 1987 a 2018. Concluíram com a necessidade de trazer à tona o desafio que pesquisadores e pesquisadoras encontram ao propor abordagens não-hegemônicas em suas disciplinas, que vão de encontro a pensamentos ocidentalizados ao apresentar “diferentes abordagens, de uma pesquisa sensível a tradições e sujeitos que, ao longo da constituição histórica do país, foram marginalizados e invisibilizados, na sociedade e nos estudos acadêmicos” (BRITO;

PIMENTEL, 2019, p. 186).

Ainda em diálogo com Brito e Pimentel, pode-se assumir esse movimento “negligente”

como fruto do processo de formação do curso de Ciência da Religião no Brasil, a partir de escolas teológicas, majoritariamente cristãs. Além disso, outro aspecto para o qual não se pode fechar os olhos é o método comparativo de pesquisa, em que, para se estudar uma manifestação religiosa A, é preciso (ou aconselhável) compará-la à B (recorrendo à ideia de inserir as religiões em gavetas preestabelecidas).

Essa técnica pode, de alguma maneira, reproduzir um pensamento colonial, em que se traçam aspectos de luz e sombra entre manifestações religiosas ou, quando pouco, entre uma manifestação considerada religiosa e outra popular:

Neste primeiro momento, predomina uma tendência que podemos denominar comparativista, aproximando a temática afro do universo cristão brasileiro, católico principalmente, favorecido pela ênfase, então, no estudo da religiosidade popular. É a partir da pesquisa sobre as 'religiões do povo' que os cientistas da religião brasileiros começam a se aproximar do universo afro-religioso. (BRITO; PIMENTEL, 2019, p. 180).

Ainda nas palavras dos autores, o interesse maior é com a cultura afro-brasileira em relação às religiões de matriz africana. O que revela, inclusive, uma necessidade de epistemologia própria para se pensar a produção acadêmica especificamente sobre candomblé dentro da Ciência da Religião, o que provocaria um início não apenas da construção decolonial das abordagens disciplinares, mas a retomada do conhecimento histórico da formação religiosa no país, o qual se realizou à margem da hegemonia cristã, confundiu-se com ela, elaborou outra estrutura religiosa e perpetua outras tantas.

nem mesmo no ensino religioso nas escolas, por conta do histórico social de ocupação escolar, em que negros e, por consequência, os aspectos culturais e religiosos que carregam, demoraram a entrar.

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Estudar uma religião da qual não se pode fazer exegese (por não haver um texto sagrado considerado seu cânone universal), na qual se precisa ouvir os subalternos, interessar-se por acolher as narrativas orais, a fim de entender um processo que se confundiu com o espaço e o tempo naturalizados no Ocidente requer, mesmo, uma epistemologia funcional, que não pode se contentar com os entre lugares disciplinares nem morrer à deriva na “maré mansa”.

Um pensamento de Reginaldo Prandi apresentado no artigo é o de que “as religiões afro- brasileiras sustentam e são caminho de construção de ‘identidades fundadas no sagrado’” (BRITO;

PIMENTEL, 2019, p. 186). Esse pode ser um horizonte de hipótese sobre a dificuldade encontrada ao fundamentar uma epistemologia dos estudos de religiões de matriz africana, por aproximar as identidades ao pensamento teológico e filosófico e distanciá-lo da ciência.

Antes de pensar sobre o interesse (ou a falta dele) na temática afro-brasileira na disciplina, o que pode resvalar em um dado subjetivo e particular, talvez sem contribuição para avançar esta pesquisa, é preciso entender a necessidade de uma epistemologia particular, de uma proposta de um pensamento de perspectiva decolonial e do afastamento das abordagens meramente culturais ou teológicas/filosóficas para se produzir pesquisas sobre religiões de matriz africana e inserir essas manifestações religiosas na produção acadêmica na Ciência da Religião: é um combate ao racismo epistemológico.

Uma vez que a reprodução racista vai além da cor da pele, evidencia um silenciamento acerca da produção cultural e da identidade religiosa de um grupo:

O racismo opera, entre muitas faces, de forma mais contundente de três maneiras: na impressão mais direta da cor da pele; na desqualificação dos bens simbólicos daqueles a quem o colonialismo tenta submeter e no trabalho cruel de liquidar a autoestima dos submetidos, fazendo com que esses introjetem a percepção da inferioridade de si e de sua cultura. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 110).

O aparente abandono epistemológico do que se considera cânone na Ciência da Religião não é, aqui, um desmerecimento ao que já foi produzido, pelo contrário, é assumir que eles são apenas os galhos aparentes do baobá: o que é possível ver, o que os olhos já estão acostumados a assimilar depois de enxergar.

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