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CAPÍTULO 3 - Oya alágbára inú aféfé (Oyá é a poderosa que vive no vento)

3.2. A dona do raio e do vento

Iansã, o orixá conhecido por controlar as tempestades, por ser a dona dos raios e do vento, em um de seus rituais, lava as quartinhas que guardam a casa. Essas quartinhas são cheias d’água, e despachar esse líquido, com Iansã na sala, é uma forma de afastar os eguns, os mortos.

Mãe Paula é a ialorixá que reverencia os seus mortos. Para ela, pai Caio e mãe Sylvia são dois pilares fundamentais para a constituição não só da casa, mas por ela ser quem ela é, enquanto mulher e mãe de santo.

A memória que tem de sua mãe é a de uma mulher “à frente de seu tempo” ou, também em outra construção elaborada por suas recordações, “uma recepcionista do axé”:

A minha mãe fugia muito. Então, o pai Caio falava para ela assim: “Sylvia, você precisa assumir, você precisa me ajudar...”. Ela amava ser como se diz... recepcionista dos famosos? RP. É, Relações Públicas, fazer isso aí. Mas quando a coisa ficava mais séria, ela pegava a trouxinha dela e deixava de vir, se afastava, e só voltava depois de um período, né? E a minha mãe veio mesmo por um problema de saúde. Que ela estava bem mal de saúde e o pai Caio falou pra ela que não tinha jeito, que ela tinha que fazer orixá mesmo. E aí ela fez. Então, quando ele morreu, ela estava com três anos de santo. Aí foi uma guerra. Guerra por questões de ego, por pessoas que tinham o interesse em tomar o lugar. Em assumir como sucessor de pai Caio. E ele já tinha dito... bom, a diferença foi essa, na dele, na morte dele, ele não deixou nada muito explícito, né? No meu caso não. A minha mãe, acho que por tudo o que ela sofreu com essa transição dela, dele, do meu tio-avô para ela, ela já deixou tudo organizado, registrado em livro, a sucessão, deixou tudo escrito, tudo organizado. E mesmo assim ela sofria muito, porque ela fala, não pra mim, né? Porque ela sabia que eu era doida, né? E se ela me falasse que estava próxima da morte, ia ficar maluca, mas uns meses antes da morte dela, uns seis meses mais ou menos, ela já tinha preparado tudo.

Essa lembrança de mãe Paula tem aspectos que ajudam a compreender a dinâmica própria do Axé Ilê Obá, principalmente o período de mãe Sylvia, o mais “atacado” por outras comunidades de terreiro a respeito dos fundamentos de tradição praticados no interior. Mesmo assim, o que se revela mais interessante é a atitude da ialorixá diante desses ataques, a sua postura assertiva diante de determinadas decisões que tomaria para que o seu projeto de candomblé não ruísse.

Preparar uma filha e evitar o constrangimento e todos os percalços por ela enfrentados revela uma imagem de mãe Sylvia que coincide com a memória de seus filhos e de suas filhas, “a mulher forte”. Aquelas pessoas parecem não se importar com os escritos acadêmicos elaborados durante a segunda geração do terreiro, nem mesmo com a opinião de frequentadores de outras casas de santo, a cosmopercepção interna basta.

A afirmação de Outro perante o Eu-hegemônico, a construção de uma realidade própria, que inicia e termina todos os dias naquele barracão. Os rizomas que demonstram a fragilidade de

um olhar metodológico eurocêntrico para se analisar um ambiente tão particular, tão distante e tão próprio.

Essas particularidades, distância e propriedade também podem ser observadas por meio da memória de mãe Paula, ao reconstruir, ainda, a imagem de mãe Sylvia:

Minha mãe fez faculdade de administração, fez faculdade de enfermagem, de comércio exterior. Tanto que no hospital que ela ajudou a criar a pediatria, que foi no Cândido Fontoura, eu também fiz estágio como fisioterapeuta. Como enfermeira, ela trabalhou no plano do governo de vacinação no litoral...

A relação política da mãe Sylvia é anterior à dela como mãe de santo...

Sim. Ela era uma profissional ativa com relações muito grandes. Inclusive a tese dela no Comércio Exterior, ela me contou que roubaram a tese dela, e a tese dela foi “O mercado árabe e o povo negro”, alguma coisa assim. Mas ela falou que roubaram, e isso chateava ela, eles com cinco advogados e ela conseguiu vencer isso, porque ela quem tinha estudado.

Torna-se importante relembrar uma mulher além da figura de ialorixá. Essas características, de alguma forma, conferem a ela um álibi para se defender das críticas enfrentadas durante a sua geração e que, porventura, mãe Paula também possa vir a enfrentar agora. Principalmente a ideia do clientelismo, de que os pais e as mães de santo do candomblé de São Paulo sobrevivem de sua vida religiosa, com os jogos de búzios e os serviços de ebós. Interessante observar que ser uma ialorixá graduada e (no caso da fala analisada) pós-graduada é muito importante. Talvez mais importante do que se defender de quem questiona a tradição da casa. A defesa vem de outro lugar, das personas que se cruzam: profissional, mãe de santo, cidadã, mulher etc.

Mãe Paula tomou a mãe como exemplo para as suas vidas profissional e religiosa, embora talvez inaugure, com ela, com a sua juventude, um novo momento no Axé Ilê Obá. Na geração de mãe Sylvia, as ialorixás eram conhecidas pela vida celibatária e dedicada exclusivamente ao sacerdócio. Agora, além de mãe Paula manter a sua empresa independente da casa, sua vida profissional além da de mãe de santo, tem outra postura em relação ao casamento:

Quando o pai Caio morreu, ela assumiu a casa e se entregou à parte religiosa, inclusive ao celibato, porque ela não queria ter... porque todo mundo falava que não podia ter. Aliás, eu fazia essa pergunta pra ela: “mãe, pra assumir isso daí, você não pode casar, não pode ter filho? Eu quero ter!”. E ela falou: “não, minha filha, essa coisa do celibato e de querer se entregar totalmente pro orixá foi opção minha. Imagina, eu pra Argentina e os negões estendiam um tapete vermelho e falavam ‘dança, la chica mulata!’, eu aproveitei muito minha vida, agora eu entrego pra orixalidade, mas você não”.

Sou. Tenho um namorido. Bom, ainda casada não, mas eu casei, né? Mas no papel não. No papel sou solteira. Mas tenho o meu companheiro, o João, a gente está junto há nove anos, e provavelmente vai ser mais um macumbeiro. É mais macumbeiro do que eu. Estou esperando o momento certo, não quero que ele... ele tem uma importância e um fundamento, como minha mãe já havia dito, aqui com o axé, mas como ele é meu marido, eu estou esperando o momento certo, porque eu não vou poder fazer as coisas dele, quem vai fazer é meu irmão, que é babá ebé da casa. Então é um pouco confuso, mas eu prefiro que seja assim pra não sair da nossa herança ancestral, e tem gente que vai... bom, é óbvio que tem gente que fala que é errado isso, mas eu sigo o que a ancestralidade, a orixalidade me dão de intuição.

Intuição. O que mãe Paula chama de intuição religiosa, pode ser lido sob um prisma epistemológico de sensibilidade social. Uma análise ainda dos cruzamentos rizomáticos (a relação que construiu com a sua mãe e a sua, agora, como exemplo para os seus filhos de santo jovens e ansiosos para uma vida além da religiosa) e do lugar do Outro em relação ao Eu oferece essa sensibilidade social como premissa-chave na condução da terceira geração do Axé Ilê Obá.

Evidencia-se o respeito pela autonomia das pessoas que são mais do que figurações nas rodas de festa, são os agentes formadores e reformadores dessa cosmopercepção.

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