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CAPÍTULO 1 - Sàngó oníbòn òrun (Xangô, dono dos trovões do céu)

1.1. A Oxum que ajudou Xangô

historicamente. As práticas religiosas que se articularam em uma São Paulo pós-década de 1960 respondem demandas próprias dos indivíduos à época, cidadãos e cidadãs influenciados cultural, política, econômica e socialmente por diversos fatores. Porém, além de influenciados, influenciam cultural, política, econômica e socialmente diversos fatores. Não são passivos à história. Constroem e reconstroem, perguntam e respondem, são articuladores e são articulados do vai e vem temporal. Optar por fazer com que o terreiro de umbanda se incorporasse às práticas candomblecistas e, com isso, se transformasse no Axé Ilê Obá pode ser uma resposta às muitas demandas econômicas da época, em que a oferta religiosa precisava de saltar aos olhos da clientela e não caberia ser mais uma na competição com kardecistas, pentecostais, católicos ligados à teologia da libertação etc. (PRANDI, 1991, p. 54).

26 Intenção que já difere a prática candomblecista em São Paulo da praticada no Nordeste, nas consideradas casas iniciais, em que a transmissão de conhecimento é por meio da oralidade e depende das relações intrínsecas às posições hierárquicas dos iniciados no culto e de seus mais velhos: Pai Caio de Xangô e a comunidade do Terreiro buscavam, com a inauguração da nova sede, a formação de um espaço onde fosse possível formar um Seminário Religioso do Candomblé, fato esse que consta na placa de fundação do terreiro, haja vista a necessidade de legitimação do terreiro, e formar como uma confraria negra que pudesse organizar os conhecimento litúrgicos, valorizando-se a transmissão sistemática dos conhecimentos com o propósito de garantir a continuidade das atividades do terreiro pela geração seguinte. Tal pretensão, por fim, não se concretizou, visto que, em 15 de fevereiro de 1984, repentinamente, Pai Caio de Xangô veio a falecer aos 59 anos, sem deixar filhos consanguíneos (CORREA, 2014, p. 13)

27 Cargo no Axé Ilê Obá cuja responsabilidade é a de preparar os ebós e os encantamentos da casa, tanto para os filhos e para as filhas de santo, quanto para a clientela. Segundo a mãe de santo Paula, é um cargo para “a dona dos feitiços”.

Oxum, Jorge Amado escreveu, é “a deusa do dengue, da elegância, do fausto, da riqueza, da formosura, do charme. Charmosa como ela só. Deusa do rio Oxum, foi a segunda mulher de Xangô. Faceira, vaidosa, sabida” (AMADO, 2012, p. 168). Jaci Mendes da Silva assim o é. Aparece no barracão, em uma tarde de preparativos da festa dedicada ao orixá Oxóssi e em meio a uma obrigação de barco, com filhos e filha de santo recolhidos, pela porta de acesso à cozinha. Roupa branca, suja de temperos espirrados das várias panelas que vigiava.

Em suas palavras “...fui preparada para a limpeza do povo, eu também faço e cuido da comida”. Senta-se em uma cadeira encostada na parede, olha para o chão, para o teto, para sua saia de ração, a roupa branca do dia a dia de candomblé, olha para suas mãos e, para mim, só olha quando pergunto seu nome: Jaci Mendes da Silva.

Responde e volta a olhar para qualquer outro lugar. É o dengue de Oxum? Ou tanta sabedoria que é melhor desconfiar de um rapaz com gravador na mão?

É a ebômi mais velha da casa. “Agora em dezembro, eu faço 45 anos de santo”. Com os olhos marejados, não sei se de emoção ou se por conta da avançada idade, revela seu tempo de santo, sua conquista hierárquica dentro do candomblé: o tempo. 45 anos de santo no Axé Ilê Obá faz com que Jaci seja mais velha do que mãe Sylvia em tempo de iniciada e, consequentemente, do que mãe Paula. “Depois de mim, o mais velho é tio Silvino”.

Tempo precioso para o fausto, para a riqueza, para a formosura e para o charme de Oxum. Como o fluxo das águas de seu rio, acompanhou e acompanha o correr das três gerações do terreiro:

Eu já vi muitas alegrias, muitas tristezas, muito êxito, muita luta. Eu... tem dia que meu coração dói de ver a minha menina (refere-se à mãe Paula, de quem é madrinha de santo). Ela entra aí (no quarto onde joga os búzios) às 8 horas e ela vai almoçar às 5 horas da tarde. Sai daí de dentro (do quarto), às 2 ou às 3 horas da manhã, atendendo o povo. E a gente, como é filho, bom, eu digo que é filho... a gente fica com o coração tão doído. Porque ela trabalha muito. E às vezes ela sai daqui e vai ajudar a gente lá em cima.

A relação da ebômi mais velha e da mãe de santo é atravessada por uma hierarquia que o tempo revela funcional apenas para as duas. Uma é mais velha de idade, mais velha de santo, a outra é mais velha pelo cargo que tem, por ser a ialorixá do terreiro.

Jaci é a Oxum que ajudou Xangô na construção do terreiro, é quem esteve a seu lado, frequentando o terreiro, desde a casa na Mucuri, embora suas lembranças confundem as relações com as casas:

Mas eu me iniciei antes, eu estava grávida dele (do filho carnal). Não é aqui. Foi na Mucuri que eu me iniciei. É, não foi aqui. Aqui ainda estava fazendo.

Ah, então aqui a senhora recebeu o seu título só?

Não. Aqui eu... aqui quando inaugurou aqui, eu fiz o santo. No segundo barco da casa. Era (para ser) o primeiro, mas como o bebê era ainda muito novinho, o Alessandro, aí, esperou mais um pouco para eu fazer. Aí eu fiz o segundo barco. Dois meses depois do primeiro.

E como que era aqui?

Era muito gostoso. Era muito bom. É, muito gostoso. E tinha muita gente?

Tinha. Não tinha tanto como tem agora, né.

Embora as incertezas da memória, a emoção é certa: “era muito gostoso. Era muito bom. É, muito gostoso”. Evoluir a descrição do sentimento saudoso corrobora para evidenciar o dengue da Oxum.

Jaci, antes de ter sua participação na religião de maneira pragmática, com cargo de santo e de ter seu orí, sua cabeça, consagrada ao orixá Oxum Opará28, ajudou a carregar os tijolos que construíram os muros do barracão:

Porque a senhora ajudou a construir isso daqui...

É. Com o barrigão, eu não conseguia mais pegar tijolo, então, eu pegava um daqui outro dali e...

Construiu isso daqui grávida?

É. Do Alessandro. Do Marcos, dos gêmeos, eu não vinha muito porque a barriga era muito grande, mas eu me iniciei grávida dos gêmeos na Mucuri.

O orgulho se evidencia na voz de uma mulher que ainda acumula lágrimas, mesmo depois de 45 anos de feitura, nos olhos ao reparar nas paredes do terreiro, que considera a sua casa, enquanto resgata na memória o que a conduziu até o pai de santo pela primeira vez e os “milagres” que viu acontecer:

Eu engravidei e tinha uma dor de cabeça muito grande. Dos gêmeos, né? Mas uma dor de cabeça que o meu olho ficava vermelho. E tinha um filho de santo (aqui na casa), ele não veio pra cá, depois ele foi pra sei lá... pra cá, ele não veio. E eu trabalhava de diarista e ele me falou “vamos no meu pai se santo?”. Porque eu era crente da igreja do Ipiranga29. Aquela grande. Eu cantava no coral daquela igreja. E eu falava: “meu deus do céu, eu vou deixar a igreja pra entrar...?” E eu tenho a história dos meus pais, né?

Todos eram da igreja?

Não. Todos de candomblé na Bahia.

28 Cabeça consagrada aos orixás Oxum, Iansã e Ogum. Uma qualidade considerada de Oxum guerreira. Forte relação com o orixá Iansã, Oyá.

E quando vieram a São Paulo...

Ficaram crentes. Aí tomaram na cara. Tomaram feio. E eles eram iniciados lá? Ou só...

Desde pequenos. (Meu pai) era ogã e minha mãe era feita (iaô, para rodar santo). Mas aí, eu era pequena, né? Diziam eles que a primeira vez que cantou pra Iansã eu virei. Tinha 4 anos de idade. E meus olhos vermelhos e aquela dor de cabeça... aí o pai (Caio) quando fez aqui, antes de inaugurar, me deu um borí30 pra melhorar esse vermelhão. Lá (na casa do Mucuri), ele fez muitos banhos, muitas coisas... os bebês nasceram, aí eu dei um borí. Eu tinha briga de três santos na cabeça. Iansã, Oxum e Ogum. Aí foi muito maravilhoso. Depois disso (feitura) pra cá, nunca mais tive dor de cabeça.

E nunca mais cantou no coral da igreja...

Não... (gargalhada). Ah não. Aqui estava mais gostoso. Aqui eu tive saúde, né? Eu tive meus filhos.

Foram criados aqui dentro?

Ah sim. Depois eu tive um (outro filho depois do nascimento dos gêmeos) e ele nasceu com três sopros no coração. A cabeça dele parecia uma abóbora, o coração dele era maior do que o nosso lá nas Clínicas31. Pai (Caio) deitou ele e deu um borí calçado32. Ele foi diminuindo a cabeça, diminuindo a cabeça até... e nas Clínicas tiveram um susto. Ele (o menino) fez vários exames e eles (os médicos) não entenderam por que sumiram os três sopros. E o coração diminuiu e ficou do tamanho do de uma criança de dois anos. Ele com dois anos o coração dele era maior do que o nosso! E daí eu tive muitas e muitas curas, muitas graças. E é minha vida isso aqui.

Sua memória traz à toda as lembranças de um passado que pode ter se confundido entre as lembranças, mas que carrega consigo a certeza de um lugar que ajudou a construir e que também é seu. Por meio do olhar cheio de lágrimas e de uma voz de cadência mansa, admira as paredes do barracão como se fitasse com orgulho a própria casa, como se em cada reboco estivesse um pouco de si mesma.

Essa relação para com o terreiro, para com o sentimento de pertença desenvolvido entre a cidadã e a instituição religiosa, a filha de santo e o terreiro de candomblé, a ebômi mais velha e os irmãos e irmãs de santo, é revelada como as raízes mais profundas do baobá do Axé Ilê Obá, justamente por representar metodologicamente nessa pesquisa uma memória que se divide em três, ao acompanhar e registrar consigo mesma as transformações pelas quais o axé passou para se adaptar à cidade de São Paulo, às demandas da metrópole, mas revelando o caráter ativo do candomblé, também modificador social, não apenas passivo ao que a metrópole ansiava.

30 Borí: ritual para alimentar a cabeça do filho ou da filha de santo ou de um cliente. Junção das palavras ebó e orí, dar de comer à cabeça.

31 Referência ao Hospital de Clínicas da USP, onde o menino estava internado.

32 Borí calçado é o mesmo ritual descrito anteriormente, mas o termo “calçado” indica os sacrifícios pormenores exigidos no ritual, a “paga” do chão.

Sobre a construção da atual sede, em um momento histórico-social (SILVA, 1993) de adaptação à urbanização, em que o candomblé precisava de ser reestruturado para caber no território urbano, sua memória revela:

Quando inaugurou aqui (o barracão atual), nós íamos pegar folha pra inauguração daqui e eles (o serviço público) estavam cavando a Imigrantes ainda.

E foi estratégico aqui... vocês tinham tudo perto...

Era. Era praticamente uma floresta. Tinha muito mato aqui. Vocês chegaram a trazer o mato pra dentro?

Sim. O que o pai Caio não trazia da Bahia, a gente ia buscar na mata.

As viagens ao Estado da Bahia ofereciam muito mais do que plantas sagradas para a prática religiosa. As demandas do candomblé são diferentes das da umbanda, as folhas são sagradas e imprescindíveis para os rituais desenvolvidos dentro dos barracões, mas “trazer da Bahia” ou “buscar na mata” do entorno representa, na prática, o trânsito de troca religiosa que se estabeleceu na época para a legitimação do candomblé da metrópole.

Em uma análise cuidadosa, é possível perceber que a religião que se instaura na cidade de São Paulo não é a religião praticada no Nordeste e tida pelos adeptos mais conservadores como tradicional e pela epistemologia acadêmica como referência. Partir unicamente dessas comparações, assumindo a dicotomia entre “certo” e “errado”, “legítimo” ou “ilegítimo”, é cegar-se analiticamente para perspectivas mais complexas em relação ao objeto.

As relações desenvolvidas ocorrem nos entre-lugares, nas escolhas que não são adaptações, são autônomas a partir do momento que sanam as necessidades políticas, sociais e religiosas da comunidade.

Se a macumba do Sudeste, em São Paulo principalmente, foi elaborada ao redor do papel do benzedor, da benzedeira, do pai e da mãe de santo de maneira desagregada (BASTIDE, 1973), ao concentrar o poder nas mãos de um indivíduo com inferências de saberes religiosos anteriores, trazidos das migrações interestaduais, o “buscar folhas da Bahia” para a prática candomblecista (que distribui o conhecimento litúrgico e as responsabilidades religiosas) se revela maior do que uma simples adaptação às necessidades de um cliente (PRANDI 1991, p. 62), é a consciência da necessária construção de uma comunidade para existir e resistir enquanto instituição religiosa. Distribuir o conhecimento para fortalecer o grupo.

Se os espaços fazem os sujeitos, os sujeitos também fazem o espaço, por isso abre-se uma fresta na janela do Axé Ilê Obá para poder enxergar a história por meio de outra perspectiva, sem

resvalar na razão negra estabelecida pela epistemologia hegemônica e de prontidão à escuta dos rizomas culturais: embranquecimento do candomblé é uma análise comparativa. O candomblé de São Paulo, o do Axé Ilê Obá, é exclusivo, foi erguido pelas mãos de cidadãos e de cidadãs negros e brancos, pobres e de classe média, em meio a preconceitos sociais e respaldos políticos.

O racismo enfrentado pelos adeptos negros e o racismo religioso foram sofridos, na construção do terreiro, de diferentes maneiras, percebidos de diferentes formas. A mulher negra filha de Oxum é categórica:

No trabalho? Não. Com o pessoal da Martinelli, a revisora Martinelli? Eu ainda trabalho com eles. 56 anos já. Ainda passo roupa pra eles ainda. Eu tenho a chave do apartamento deles e vou uma vez por semana. Trabalhei com doutor Orlando, dona Odete já está velhinha... aqui, ali, todos me conhecem. E trabalhei pra todos. E eu era daqui de dentro já. E todos me ajudavam, me apoiavam. Não tive preconceito com patroa não. É o contrário.

E hoje? A senhora observa que as pessoas estão escondendo que são de candomblé? Escondem, filho. Muitos ainda escondem. É que eu não posso citar os nomes das altezas que são do candomblé e a gente... vinha a (Luiza) Erundina (prefeita de São Paulo na época). Vinha de noite. (Paulo) Maluf vinha de noite. Roberto era do pai Caio. A esposa dele, a Nice. A mãe Fauda. Todos eles eram daqui do pai Caio. Essa turma aí era da época do pai Caio. Erundina já era da mãe Sylvia, a Marta, o Suplicy. Vários deles são gente tudo daqui de dentro. Que tinham a mãe Sylvia como conselheira deles. Não faziam nada sem falar com ela, sem o aval dela.

Com mais de 75 anos de idade, a lembrança revela nunca ter sofrido preconceito por ser uma mulher, moradora da região do Campo Limpo, negra e filha de terreiro, mas não evidencia a relação estabelecida com o patrão e a patroa que perdura até hoje. Uma relação de mandonismo (SCHWACZ, 2019, p. 41) que atravessa como uma flecha as lembranças de Jaci, tão acostumadas a ser grata pelo que lhe é, aparentemente, proporcionado pelo Outro que “não tem preconceito por ela ser do candomblé”.

Inclusive, os que escondem ser da religião, nas lembranças da filha de Oxum, são os brancos, os ricos, os que detêm algum poder ou status social, um cargo público. O branco esconde sua participação no candomblé embranquecido da metrópole.

Suas funções dentro do terreiro, também, são atravessadas pelos símbolos sociais que podem vir à tona quando analisados pelos critérios de relação do lugar do negro na sociedade. Antes de estar na cozinha do barracão, esteve como babá do filho e da filha de mãe Sylvia:

É... o Péricles e a Paula são meus bebês. Eu amo eles (sic) como eu amo meus dois filhos. Pra mim eu não tenho diferença do amor deles com meus filhos que eu pari. Eu falo que

é meus filhinhos. E eu tenho um ciúme doentio com eles... eu sou dengosa. Ah, na minha velhice... porque eu passei uma coisa muito feia na infância, né, então, eu tive muito apoio da mãe Sylvia. Eu fui babá desses nenês desde que vieram da maternidade. Sou madrinha dos dois. Sou mãe criadeira dos dois. É minha vida eles.

A senhora acompanhou tudo...

Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... aqui eu achei carinho. Achei paz. Achei tranquilidade. Eu não consigo ficar longe daqui. A não ser o dia que deus me chamar.

E a senhora é madrinha de oruncó de mãe Paula.

Ah lá (aponta pra foto na parede, um registro da mulher, em sua Oxum, carregando a mãe Paula em sua Iansã, com chupeta na boca), a Oxum ali sou eu. Eu fui babá dela e fui preparada pra isso.

Pra ser a madrinha? É.

Essa narrativa de memória que evidencia o lugar que Jaci ocupa como um merecimento, como uma gratidão a tudo que lhe foi oferecido, não só pelo candomblé enquanto uma instituição religiosa, mas pelas figuras de liderança da casa. Sylvia, uma mulher também negra, consciente da leitura social de sua cor e do lugar que ocupava na perspectiva racista hegemônica da sociedade paulista, acolheu como lhe cabia à época a ebômi Jaci, oferecendo a ela uma autonomia social, empregando-a como podia, no caso, sendo a babá de Péricles e de Paula.

Tanto que as relações entre ela e a atual mãe de santo são atravessadas pela subjetividade de um carinho conquistado na raiz mais profunda do baobá, um contato estabelecido anterior às hierarquias, uma análise que não pode ser inferida pela continuidade temporal, é um vai e vem, não há sobreposição:

E como que é pra senhora, hoje, ver a pessoa que a senhora cuidou, acompanhou, herdar a maior casa de candomblé de São Paulo?

O maior orgulho da minha vida. Pra mim é o maior orgulho, não tem dinheiro que pague essa felicidade. Ver eles dois aqui tocando essa mansão. Não tem felicidade. Não tem felicidade maior.

Ser a responsável pelas panelas e pelas roupas dos filhos e das filhas de santo, estar na cozinha e na lavanderia, não é tão pragmático assim na percepção de Jaci. Para ela, há algo que está por trás dessas funções que, nesse contexto, faz sentido e a legitima enquanto uma mulher, candomblecista, iniciada para Oxum: cuidar.

A responsabilidade do cuidado, o carinho, parece se sobressair a qualquer consciência social dos papéis estabelecidos quando analisados pela perspectiva acadêmica. A própria ebômi, quando relata suas funções na casa, adianta as iniciativas de mãe Paula de contratar uma passadeira

para cobrir as tarefas da madrinha. “Ela contratou uma passadeira, ela passa... mas eu quem lavo. Ah, eu lavo”.

Os cuidados se confundem. Está nessa confusão, nesse encontro de raízes, nesse código estabelecido entre afilhada e madrinha, entre ebômi mais velha e mãe de santo, entre uma idosa negra de 75 anos e uma mulher branca de 35 anos os entre-lugares do candomblé. É uma troca de querer cuidar e de se permitir ser cuidado:

Lá em cima é a cozinha?

É. A cozinha, ela (mãe Paula) vai ajudar, ajuda em tudo.

E a senhora não fica brava com ela por mexer nas suas panelas?

É a única que pode mexer. (Gargalha). É meu bebê, não adianta. Eu não sinto ela mãe de santo, eu ainda sinto ela como aquela que eu queria estar correndo atrás protegendo. Igual àquela foto? De Oxum com Oyá?

Ela e meu filho falam que “ah, nós somos adultos. Agora a senhora tem que aquietar pra gente ajudar”. Ainda ontem mesmo eu queria fazer (uma tarefa ritualística que exigia esforço físico)... e ela “calma, deixa pros jovens, eu quero você muito tempo ainda”. Ah, eu quero cuidar dela, mas ela quem cuida de mim agora.

O que cabe a quem? Qual a função social esperada pelo olhar hegemônico em relação ao Outro? Esses questionamentos são os embasados pela premissa do embranquecimento do candomblé, uma religião observada de maneira comparativa, tomando como base um modelo de comparação, um candomblé que existe, é legítimo, mas não é o que se encontra em São Paulo.

As particularidades de formação histórica e social de cada indivíduo são fundamentais para a intenção dessa pesquisa em compreender o que está por trás, nas entrelinhas, e que observa as relações estabelecidas não apenas de forma passiva, mas ativa, legítima.

Ebômi Jaci não responde passivamente às demandas da sociedade. Não ocupa o lugar concedido e permitido por mãe Paula. Ela é autônoma em suas decisões, sem desconsiderar, evidentemente, as oportunidades e os limites que proporcionaram determinados alcances e tolheram outros.

Faz-se necessário enxergar que Oxum escolheu ser do candomblé. Escolheu ser filha de pai Caio. Aceitou ser filha de mãe Sylvia. Aceitou ser preparada para ser madrinha de mãe Paula

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