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CAPÍTULO 2 - Na Òrìsànlá atererekáiye (O Grande Orixá que reina sobre todas as

2.2. Obá encontra refúgio na casa de Xangô

“Em São Paulo, os adeptos do candomblé movem-se com muita frequência de uma linhagem religiosa para outra, ao se mudarem de terreiro e mudando de nação” (PRANDI, 1991, p. 106). Esse movimento corresponde à trajetória de santo de ebômi Wilma, que “nasceu na Angola” e se reconheceu no Queto. Dizer que uma pessoa “nasceu” em determinada linhagem religiosa é valer-se da ideia de que ela se iniciou para o orixá em determinado terreiro, seguindo os princípios tradicionais ali experimentados. Por motivos particulares, ebômi Wilma seguiu o fluxo majoritário na metrópole: saiu de uma comunidade angoleira para começar a frequentar o Axé Ilê Obá.

Deixar de ser “de Angola” para dar obrigações no Queto foi uma decisão particular dessa filha do orixá Obá, que encontrou refúgio na casa de Xangô, nos braços de mãe Sylvia, mas não se pode esquecer que ebômi Jaci e tio Silvino não escolheram mudar de nação, simplesmente foram mudados, a partir da decisão de pai Caio, quando transformou um espaço de umbanda em candomblé e, depois, um espaço de Angola em um terreiro de Queto. Sobre isso, Prandi desenvolveu uma interessante análise, a partir da perspectiva mercadológica:

Competir num mercado de trabalho como o de agora importa deter certa competência, real ou atribuída pela agência formadora. Nesta sociedade, no mercado religioso e mágico, axé pode ter o sentido do currículo, isto é, o da boa escola. Esse processo de refiliação a terreiros e famílias-de-santo de maior reconhecimento pela sociedade exterior à religião conta com fontes de ganho de prestígio que são definidas e oferecidas, muitas vezes, aos terreiros e aos adeptos, exatamente pela sociedade laica. (...) E se este destaque, esta visibilidade, de um lado é o do feiticeiro para uma clientela ad hoc interessada apenas na solução de seus problemas pessoais, do outro é a do sacerdote para uma população de fiéis. (PRANDI, 1991, p. 107).

Essa leitura mercadológica dos movimentos entre as nações de candomblé oferece apenas uma perspectiva sobre esse enraizamento religioso. Retomando a cosmopercepção praticada em um terreiro e tendo como exemplo a decisão de ebômi Wilma, é possível observar por outra ótica, a do pertencimento, do se reconhecer em um espaço que pode garantir ao indivíduo uma relevância social que vai além dos interesses econômicos de pais e de mães de santo: o reconhecimento de um espaço autônomo que dê conta, na medida do possível, da existência. Wilma Freire Costa, “com W”, como ela mesma quis reforçar, chegou no Axé Ilê Obá em 1989, depois de não encontrar um espaço que desse conta de suas particularidades, como ela mesma explica, “eu fui feita na

Angola, só que na Angola, eles não cultuam Obá. Aí eu vim pra cá por causa disso, porque o Queto cultua Obá, a Angola não. Então eu vim pra cá, por causa disso, porque aqui eles aceitavam”.

Na trajetória do povo de santo em São Paulo, “aceitar” parece ser uma palavra de peso social. Aceitar a chegada, depois aceitar os trânsitos internos e, também, aceitar as mudanças e a relevância. Pela perspectiva mbembiana, é o lugar do Outro na questão da razão negra, com necessidade de ser legitimado pela ótica hegemônica, tendo que transitar apenas nos espaços demarcados anteriormente pelo imaginário do poder.

Um exemplo particular desse reconhecimento é o de Wilma, que transitou por não se reconhecer, por estar inserida em um não-lugar, em uma fronteira territorial que permitia com que ela fosse até determinado espaço. Dali por diante, precisava de tomar uma decisão: ou aceitava o espaço concedido a ela ou buscava outro.

Foi o que ela fez, contribuiu pessoalmente para a perspectiva de compreensão de que o candomblé é um espaço de idas e vindas, de entrecruzamentos, de costuras das memórias, de narrativas que vêm e que vão. O fluxo migratório é a luz que precisa de ser direcionada a esse fenômeno. Se o candomblé da metrópole de 1990 (majoritariamente nação Queto) já está distante do praticado na metrópole em 1980 (majoritariamente nação Angola), está distante do praticado anteriormente no Rio de Janeiro, do praticado na Bahia e, principalmente, dos cultos aos orixás praticados na África.

Portanto, analisar a religião, neste contexto, requer, também, o reconhecimento desse fluxo migratório não como consequência, mas como agente legítimo da História. Por meio dessa perspectiva, não cabe analisar apenas o mercado religioso e os conflitos políticos entre as direções-matriz de Salvador e de São Paulo: é preciso ouvir quem migrou, quem só se percebeu socialmente analisado pela perspectiva do Outro, em um lugar pré-moldado epistemologicamente.

Ebômi Wilma foi agente de sua transição de casa de santo, de sua migração de nação, contribuiu e contribui para estabelecer narrativas únicas no Axé Ilê Obá, que pode ter, academicamente falando, sua origem questionada, religiosamente falando, sua tradição questionada, mas legitimadas por sua convivência nesse espaço sociorreligioso. Por meio de um olhar interno, são suas lembranças e o seu cotidiano que quebram a perspectiva de análise do Outro e a atravessa, construindo uma narrativa própria que fica mais evidente se observada por meio dos rizomas culturais, das relações fronteiriças, da cosmopercepção de terreiro.

Por meio dessa cosmopercepção do terreiro, observa-se o movimento dessa filha de Obá que encontrou um lar na casa de Xangô. Há um itan iorubá que revela ser Obá a primeira esposa de Xangô, a mais devota a ele, a que esteve a seu lado guerreando e construindo o reino de Oyó. Foi essa mesma esposa devotada que, por ciúmes de seu marido, foi enganada pelos falsos feitiços de Oxum e teve a orelha cortada na intenção de encantar Xangô para reconquistá-lo. Irônico, uma iniciada para esse orixá se reconhecer justamente em uma casa dedicada ao orixá que, mitologicamente, traiu-a com Oxum.

Pelas próprias palavras de Wilma, a Casa da Força do Rei a acolheu de maneira “maravilhosa, maravilhosa!”. E a colocou em um lugar em que pode se legitimar, não só religiosamente, mas socialmente falando:

Porque eu vim já com uma ideia de que eu era filha de um santo renegado. Foi me passada a ideia de que era um santo vingativo, ciumento, santo traidor, que não sei o quê, que foi muito traída. Então eu já vim, assim, com uma certa não aceitação desse orixá. Eu vim com a expectativa de que aqui ela fosse mudar. Só que ela me mostrou outro lado, né? Eu tive um acolhimento tão grande, que ela me mostrou outro lado. Aí me explicou o seguinte: as pessoas se utilizam de seus próprios defeitos e jogam a culpa no orixá. E na realidade, o orixá tem tanta coisa boa pra nos dar, que a gente deveria pegar o outro lado. Aí ela falou assim: Obá é a deusa do amor, é a feminista da época, é uma lutadora, é uma guerreira que acredita que do lado do homem você tem que estar ao lado, nem a frente, nem atrás e, sim, caminhar junto. E foi assim que eu fui me apaixonando pelo meu orixá e aceitando o meu orixá, com essa acolhida da mãe Sylvia, que me deu um monte de explicação.

Esse relato revela que os movimentos de migração religiosa não partem apenas do interesse em pertencer a um terreiro de maior prestígio, ou que tenha maior relevância política, ou até mesmo que esteja na boca do povo, como o Gantois composto por Dorival Caymmi, cantado por Gal Costa e Maria Bethânia; revela que a necessidade de pertencimento é legítima nos indivíduos de candomblé, também em busca de uma identidade própria na metrópole. Se São Paulo oferecia um cenário propício para avanços econômicos, sociais e políticos, pertencer a um lugar que legitime sua existência foi o caminho de sobrevivência encontrado por Wilma.

Essa migração de Angola para Queto não foi o único movimento religioso da ebômi:

Era católica. Já fui até evangélica. É, eu já fui até lá pros evangélicos. Quando eu era pequena eu já fui muito, como se diz, uma criança meio indominável, meio terrível, meio aquela coisa... então, levava-se pra médico, não tinha isso, não tinha aquilo. Então, fui pra igreja católica, fui pra evangélica. Aí, quando eu fui visitar... olha só, eu fui visitar, eu estava terminando o ensino médio, prestando vestibular para comunicação social, e fiz a faculdade. E fui visitar esse terreiro, veja, na minha ideia, eu tinha desmaiado. Eu cheguei

na porta e tinha desmaiado. Quando eu voltei a mim, eu já estava dentro do roncó, estava tudo preparado, aí, é uma longa história que na época não entendia, na realidade, eu nem acreditava na época, né? Ao longo do tempo é que eu fui aprendendo as coisas, fui entendendo e me entendendo, né? Dentro do candomblé. Então, foi a religião que mais, assim, mais tampa aquele vácuo. Porque a gente sente a necessidade de alguma coisa extra, né? E o candomblé me tampa isso, me traz essa segurança. Quando eu estou insegura, qualquer coisa, eu venho, eu vou lá no meu ibá, eu rezo, eu converso, é... e eu tenho uma conversa, assim, natural, como se eu estivesse conversando com minha própria mãe, eu participo dos rituais, fico na obrigação, e saio daqui leve, você sai daqui, assim, pronto pra vida. Estou pronta pra enfrentar a situação. Então, aqui, ele me completou, entendeu? Ele (candomblé) faz com que você conheça a si mesmo. Porque ninguém vai resolver os seus problemas. Falar “ah, vai fazer assim, vai fazer isso...”. Não vai fazer! Você escolhe o seu caminho, são as suas opções e você que tenha cabeça pra resolvê-las. E o candomblé te dá isso. Eu acho que a religião mais pura que tem. Uma religião que te cultua você com a natureza. Tipo assim, se você não estiver em harmonia com a natureza, você não vai conseguir sobreviver, precisa dela e ela precisa de você. Então, tem que ter um respeito mútuo entre as pessoas (das pessoas) com a natureza, com tudo o que rodeia nós. Então, eu acho que isso me completa, isso faz com que eu me sinta melhor.

A trajetória evidencia o quanto o candomblé paulistano é carregado de memórias e de narrativas que costuram tradições cotidianamente no terreiro. Referências católicas, espíritas, umbandistas e evangélicas são atravessadas por referências de classes sociais distintas, de perspectivas de vida de pessoas com educação formal básica, sem educação formal básica, graduadas, pós-graduadas ou com formação acadêmica nenhuma, referências que não podem ser negligenciadas ao observar o cenário religioso nem invalidadas quando inseridas em um contexto mercadológico ou em uma análise comparativa entre os terreiros de São Paulo e os terreiros de outro qualquer lugar.

As lógicas também se estabelecem internamente. E isso ocorre justamente quando narrativas como a de Wilma são ouvidas cotidianamente e assimiladas por outros filhos e outras filhas de santo e passadas adiante. Assim como se desenvolvem as raízes do baobá debaixo da terra, são traçadas essas narrativas-raízes internamente no terreiro. Para entender o que sustenta a grandiosidade da árvore, é preciso olhar para debaixo da terra. Para entender o que sustenta uma casa de santo, é preciso ouvir o que se narra internamente.

Se a cosmopercepção estabelecida (e praticada) em um terreiro de candomblé é o tronco do baobá, as memórias, portanto, são algumas de suas raízes. E, para que essas raízes se cruzem, são necessárias as narrativas. As gerações de um terreiro são justamente esses cruzamentos, esses encontros dinâmicos. Se mãe Sylvia fez questão, enquanto ialorixá, de transformar a casa em um ambiente sólido, garantir a legitimidade de sua prática religiosa por algum viés, no caso, o

encontrado foi o sociopolítico, mãe Paula abre um diálogo direto com seus filhos e suas filhas. Ebômi Wilma é categórica quando evidencia a relação das duas mães com iaôs:

Aí é que eu acho... a Paula tem a idade da juventude. O entendimento dela com eles é outro patamar. É outro linguajar, ela conversa com eles pela internet, ela faz grupo de whatsapp, ela é uma coisa. Já pros mais velhos, o negócio é outro. Então tem isso, mas a passagem que ela faz dos mais novos pros mais velhos que somos nós é incrível. É um respeito à ligação que a gente tem. Às vezes eu fico lá (no barracão à espera dos rituais internos) e o menino filho da Regina, de 12 anos, e ele me ensina a passar no joguinho. Essa troca é maravilhosa.

Interessante observar, pelo relato da filha de Obá, que, apesar de a tecnologia poder ser encarada de alguma forma como um atalho para os caminhos dentro de um terreiro de candomblé, “a passagem” é “um respeito à ligação que a gente tem”. De alguma forma, a proteção de Sylvia, ao erguer os muros e garantir a legitimação das dinâmicas ali estabelecidas, pode ser observada, ainda, sob a tutela de Paula, pelos cruzamentos de mais velhos com mais novos, do apreço pela memória, do interesse pelas narrativas ali contadas e pela interdependência geracional que um aprende com o outro, mesmo que seja a passar de fase em um joguinho de celular.

As relações estabelecidas dentro no Axé Ilê Obá ultrapassam os interesses religiosos, se ebômi Wilma ensina o filho da Regina de 12 anos a diferença que existe em preparar uma oferenda com dendê ou com cachaça a determinado orixá, ela aprende a mexer em algum aplicativo de celular com o menino.

Esse diálogo frutífero estabelecido internamente no barracão é encontrado fora, quando os filhos e as filhas atravessam o portão, quando a conversa é estabelecida com os “de fora”. Wilma credita a relevância social que a casa tem justamente ao saber conversar que mãe Sylvia tanto ensinou internamente:

Sim. Eu acho que o fato dela não se preocupar só com o axé e sim com toda a redondeza, com o entorno, com o que vinha de fora, com a cultura, com isso, com aquilo, ela tramitou por todos os caminhos. Ela podia ir com político, poderia ir na igreja evangélica, a gente teve várias reuniões que ela mesma proporcionava que, por exemplo, a gente teve uma missa que a gente fez lá na igreja da mãe preta que ela proporcionou que fosse representantes de todas as religiões pra fazer uma união. Ela acreditava nisso, não adianta... a fé é de cada um, você acredita no que você quiser, você tem que ter fé em alguma coisa, mas você ficar, porque a minha é melhor, a minha é isso, a minha é aquilo, não leva a nada. Você tem que ter fé em uma união pras coisas se tornarem melhor. Então, ela tinha muito disso, de fazer reuniões com várias (lideranças religiosas) e discutir como está a situação, como a gente vai resolver, como é que você fez isso, como faz aquilo. Isso é indiferente. Vinha gente evangélica aqui, vinha padre, ela tinha essa ligação que eu

achava excelente. Por isso eu falo, é uma religião (o candomblé) que abrange. Ela acolhe, não separa. Isso que é o importante dessa religião.

Retomando a ideia de cosmopercepção, entender o candomblé como uma religião que “acolhe, não separa” talvez seja um dos principais elementos encontrados no cruzamento das raízes deste baobá.

Os rizomas culturais estabelecidos o são quando acolhidas as narrativas dos filhos e das filhas de santo. Quando, sob a lógica interna, há a cultura do “bem-vindo”. Pensar, de alguma forma, que, se socialmente já está estabelecido um lugar não-hegemônico, um território do Outro para os candomblecistas, então, para fortalecer a dinâmica interna, é preciso não excluir, tornar as narrativas (e seus agentes) bem-vindos.

Importante pensar, então, que, partindo desse pressuposto, a cosmopercepção do Axé Ilê Obá aproxima-se mais do saber ouvir do que do saber falar. Entendendo, para isso, que ouvir, em uma análise rizomática e do Outro, é falar em silêncio.

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