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CAPÍTULO 1 - Sàngó oníbòn òrun (Xangô, dono dos trovões do céu)

1.2. Oxalufã que foi carregado por Xangô

Há, entre tantos itans33 relacionados a Oxalufã, o Oxalá mais velho, o do dia em que foi carregado por Xangô. Em uma viagem para o reino Oyó, a fim de visitar o rei Xangô, Oxalá foi enganado por Exú três vezes e chegou todo roto à cidade. Não reconhecendo o orixá, os guardas do reino prenderam o até então forasteiro. Recai, portanto, sobre Oyó uma maldição: sete anos de profunda seca das terras e dos ventres. Xangô, desesperado, consulta o oráculo que revela que a vida está aprisionada em seus calabouços. O rei, então, corre para a prisão e encontra Oxalufã. Desesperado, solta o “dono do branco” e pede a todos os outros orixás que tragam quartinhas com água. O rei carrega Oxalufã nas costas enquanto o resto do panteão limpa-o da sujeira que o assolou.

33 Itans são as parábolas que contam as histórias dos orixás. Auxiliam na formação das comunidades de terreiro como um recurso pedagógico aos recém-iniciados. São também recursos de ilustração para as quedas dos búzios e para exemplificar os arquétipos de alguns orixás, as demandas de alguns odus (destinos) etc. Em outras palavras: são as histórias dos orixás.

Esse itan ilustra, também, a relação de tio Silvino e pai Caio, um homem feito para Oxalufã, tão silencioso quanto o orixá, que chegou às portas do terreiro também aprisionado em si mesmo, perplexo por um trauma, em busca de uma libertação:

Vixi, meu deus do céu, isso é uma situação... eu não posso nem contar, porque foi uma situação difícil. Porque eu não acreditava, eu não gostava, eu brigava com qualquer um quando me falassem essas coisas. Então, já que eu falei isso pra você, né? Quem me trouxe... quem fez eu chegar até aqui: uma maldade.

A maldade é revelada aos gargalos pela memória de tio Silvino. Na hierarquia do candomblé, o segundo mais velho da casa, um homem branco, que pouco fala, esguio, de aparência lânguida, mas com um olhar baixo, um caminhar tranquilo, lento, à espera do que se pode esperar: uma semelhança à imagem de seu orixá.

A desconfiança, as poucas palavras, o olhar baixo foram o que primeiro apareceu em nosso encontro “oi”. “Oi”. “Eduardo”. “Silvino”. “Eu queria...”. “Eu não sei de nada”.

No candomblé, já disseram que você deve recorrer a Oxalá apenas em último caso. Primeiro, você tenta todos os outros santos, só para depois chegar ao mais velho deles. Porque se ele disser não... parecia que ali eu teria um não.

Até que, igual a seu orixá, Silvino foi se revelando alguém que precisa de ser lido nas entrelinhas, alguém que requer um ajuste a seu tempo, a sua respiração. Alguém por quem não se pode ter pressa. Alguém generoso, que primeiro prepara o terreno para depois despachar o ebó:

A minha esposa, mais ou menos, oito dias de dieta da minha filha mais velha, ela tava... chegou... (silêncio. Engole as palavras). Deu banho na criança, amamentou, e... (outro silêncio). A criança dormiu, a irmã dela pegou e falou: “Anita, o seu almoço tá na mesa, venha almoçar”. Quando ela veio, sentou na mesa pra almoçar... (bate com as costas de uma mão na outra). Cadê mulher? Cabou a fala, cabou tudo, só de olho aberto e não falava nada. Vixe meu deus, foi um desespero. E aí, naquele tempo... ih, naquele tempo era SAMDU34, né? Bom, funcionava naquele tempo. Foi rápido, eu chamei e eles vieram com o médico, fizeram isso, fizeram aquilo e na mesma coisa veio um senhor, pedi para um senhor que era farmacêutico e eu confiava muito nele. Ele falou “não sei o que é que é”. Eu peguei (silêncio. Respira profundamente) essa situação, e falei: “Deus pai todo poderoso, me mostre o caminho pra eu tirar essa pessoa dessa situação”. Eu nem cheguei... ah, eu fui sentando na cadeira e eu nem cheguei a sentar na cadeira, dei um pulo e gritei pela minha cunhada: “Corre ali, numa casa assim, assim, assim... e fala pra dona Joaninha vir aqui agora”. Porque nós sabíamos que ela frequentava isso. Ela foi e a mulher veio correndo. Ela olhou e falou: “Meu filho, o que é que está acontecendo?”. Eu falei: “Não sei, chamei a senhora pra ver”. Aí ela olhou, fez..., falou com a minha cunhada e falou: “Corre lá que tem uma (sic) negrona lá e fala pra ela vir aqui correndo, traz isso, 34 SAMDU: Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência. Serviço anterior ao SAMU, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.

isso e isso”. E ela foi rápido, atendeu lá e a mulher começou a fazer uma defumação rezando tal, tal, tal. Quando ela reestabeleceu e deu aquele pulo na cama e passou... a (sic) negrona recebeu o que estava nela. Que quase cai em cima do berço da menina. E pra tirar aquele bicho de dentro de casa? Foi um sacrifício. Foi um sacrifício. Os donos da casa, porque o terreno era grande e eles moravam na casa da frente, e tinha um terrenão e eu morava lá nos fundos daquele terreno, e eles (os donos do terreno) que perceberam a situação correram, saíram da casa. Ficaram mais ou menos uma hora fora. Quando eles chegaram, eles tinham (no terreno) uma porção de franguinhas, mais sei lá o quê. Só tava vivo... Só ficou vivo um gato e um papagaio. Os frangos que tinham tavam tudo morto no quintal dele. Aí aquela senhora pegou e falou pra mim: “Meu filho, o que eu posso fazer por você é isso, mas você procura um outro lugar para limpar tudo. Se você quiser ir aonde eu frequento, vamos lá. Agora, se não quiser ir, que você procure...”. Já que ela me socorreu, fui com ela, né. Era a mãe pequena desse lugar. Aí, combinamos e eu vim. Quando chegamos, o velho (pai Caio) pegou e falou pra mim: “Meu filho, isso não era pra ela. Era pra você”. Porque se eles (donos do terreno) conseguissem me derrubar, eles conseguiam tudo o que eles queriam. O que eles queriam é o seguinte, eu estava arrumando casa pra sair dali, e ele queria porque passou um mês do contrato de dois anos, eu pagava dois mil e quinhentos cruzeiros, ele queria cinco mil cruzeiros por esse mês que passou. Aí eu falei: “Não. Não pago”. Aí foi, foi, e foi a briga. E pronto. E por aí acabou. Foi onde me trouxe aqui no axé. Na marra, mas vim. Na (casa da rua) Mucuri. É, na Macuri. Eu brigava tanto, não queria, não queria. E eu entrei aqui. Depois de tudo, eu ainda desaparecia, e quando o negócio voltava, eu tomava um passe, tomava um couro, eu ia embora, e voltava de novo. O último couro que eu tomei. (Silêncio...) Foi aqui, ó (aponta para o centro do barracão), bem em frente a seu Rompe-Mata (entidade caboclo de pai Caio). Aquele, vixe nossa senhora, aquele foi violento. Quiseram me socorrer e ele (o caboclo): “Sumam daqui, senão sobra pra vocês também”. Que era a Iá Quequerê e a Caoísa. E ele trabalhando, a fila dele tava enorme com ele atendendo o povo. Me jogou no chão, pisou em cima. Atendeu até o último. Quando atendeu o último, chamou e falou: “Levanta esse moleque aqui”. Quando levantaram, pá, pá, pá, pá (imitando com os braços os gestos praticados por um benzedor ao redor do corpo). Ele: “Vai, vai cuidar da sua vida, mas não esqueça que seu lugar é aqui”. Entrei então na marra, eu não queria mesmo. (Com ênfase) Eu entrei na marra! Mas entrei. Entrei pela dor, que eu não gostava. Entrei pela dor, mas entrei. Fui obrigado. Que eu já te falei tudo, então... não estou arrependido.35

A memória de tio Silvino revela três marcações orais bastante significativas para entender sua relação com o candomblé: o uso do pronome demonstrativo “isso”, ao se referir à religião em um primeiro momento. Sua resistência em conhecer a religião passou por um preconceito próprio, que colocava o candomblé no lugar do Outro sustentado no imaginário social hegemônico da sociedade de uma metrópole em efervescência, que precisava delimitar os espaços ocupados simbolicamente por seus cidadãos. Tio Silvino não era um cidadão que atravessaria a fronteira “disso”. Desse lugar que, até então, não era seu, não era “dos seus”.

35 Embora essa fala de tio Silvino, textualmente apresentada como uma citação, seja extensa, é necessária a transcrição direta, sem interrupção dissertativa, para que o leitor tenha a experiência de uma leitura aproximada da intenção narrativa da entrevista. Na apresentação de seu longo discurso, seu vai-e-volta discursivo, existe a partilha das entrelinhas tão importantes para a compreensão dos “encontros fronteiriços”. A transcrição da entrevista está anexa a esta dissertação.

A troca temporal dos verbos “ir” e “vir”: em um primeiro momento o uso do “fui” (pretérito perfeito). Em um segundo momento, o uso do “vim” (pretérito perfeito). Ambas as conjugações do indicativo indicam, na narrativa de tio Silvino, o momento em que, por meio da sua memória, ele passou a ocupar o lugar do Outro e a se relacionar com o esse Outro: quando atravessou a fronteira e estabeleceu as suas relações de pertencimento com o grupo.

O filho de santo de Oxalufã representa, analiticamente, a ordem social da dinâmica religiosa da São Paulo dos anos 1970:

Demandas por religiões e crenças dependem sim do movimento de constituição de etapas dessa ordem social estruturada em classes e grupos sociais, mas que podem ser demandas de grupos que buscam na religião uma forma de expressar-se na sociedade, demandas que procuram a definição do indivíduo para si mesmo, antes de mais nada, independente da sua cor, profissão, classe social etc. Abrir essas possibilidades é uma das condições para uma religião tornar-se universal. E nesse quadro religioso, as religiões não se encontram lá uma ao lado da outra; elas estão num jogo de competição, do qual de umas podem mesmo nascer outras. (PRANDI, 1991, p. 62).

Ao bater na porta do candomblé, ela se abriu para ele. Por desespero, em meio às resistências, mas ela se abriu, apresentou-se como possibilidade de expressar-se socialmente, construir a imagem de um indivíduo autônomo, que atravessa uma fronteira social, porque a identidade que faz sentido a ele é a que está inserida ali, naquele contexto do Outro.

A fala de tio Silvino é um soluço de recordações saudosistas. É igual à cadência das ondas, um fluxo que, para ser contínuo, depende das influências da lua. Aparentemente, depois de quebrada a primeira resistência, o movimento das ondas parece ser contínuo, a ponto de contar anedotas:

E eu te falei do cara que veio agora aqui? Estranho viu... eu tava sentado lá e perguntei: “O senhor quer alguma coisa?”. E ele: “não, eu vou falar com a mãe de santo”. E eu digo: “Bom, se o senhor veio falar com a mãe de santo, o senhor aguarda lá no barracão, porque aí fica mais próximo...”. “Não... eu sou filho da casa, eu sou o primeiro Oxóssi raspado na casa”. E eu digo: “O primeiro Oxóssi raspado na casa?”. “É, sou”. “Bom, então o senhor vai lá, senta lá, e fica lá pra ela atender o senhor”. Aí depois eu pensei e voltei... “Ei, então, quer dizer que o senhor foi raspado aqui? O senhor é o primeiro Oxóssi? Aonde foi que o senhor foi raspado?”. Ele: “Aqui”. E eu: “Então, amigo, o senhor não é o primeiro Oxóssi da casa. Que o primeiro foi dona fulana, dona fulana e... mas o senhor não.”. Aí ele se murchou e já foi embora.

É em meio a suas anedotas que “aquela” casa, “aquele axé” passam a ser “esta” casa, “este axé”. E sua memória revela a construção do barracão, que acompanhou ao lado de pai Caio:

Aqui era um terreno baldio. Desse lado aí tinha umas casas velhas, e ele comprou essa parte. Depois de construído isso aqui, foi que ele comprou aquela outra parte. Olha, daqui pra lá não tinha nada. Nada era mata, mata, mata mesmo. A (rodovia) Imigrantes aí era mata do governo, e essa outra parte aí que hoje é casa também. Olha, era mata, mata mesmo.

E o senhor sabe por que ele saiu da Mucuri pra vir pra cá?

Da Mucuri? Porque lá era uma casinha alugada. E ele queria... portanto, deixa eu te falar, não sei se você pode gravar isso aqui, se não puder, por mim tudo bem, mas ele, quando construiu, inaugurou a casa, ele falou: “Agora, eu posso morrer sossegado. O que eu prometi a Xangô está aí, entregue”. A casa de Xangô. Porque Xangô é o patrono dessa casa.

E o senhor notou que logo que ele veio pra casa, as pessoas acompanharam ele mesmo? Ah, os filhos que frequentavam a Mucuri vieram tudo pra cá.

A confissão de pai Caio a tio Silvino sela a relação dos dois, o pacto efetuado debaixo do adê de Xangô, de sua coroa. O alívio que pai Caio sentiu diante de promessa cumprida ao orixá, da construção do Axé Ilê Obá, a Casa da Força do Rei.

A casa que deixou de ter um terreiro de umbanda para se tornar um terreiro de candomblé; movimento que acompanhou, também, uma demanda pessoal de pai Caio para construir uma casa própria, um lugar que não seja de aluguel. Ou seja, “a religião, ao se transformar, ao se enfrentar com outras concorrentes, nos permite ver um pouco das próprias mudanças da sociedade” (PRANDI, 1991, p. 62), mas, enquanto um indivíduo autônomo em suas decisões e cidadão ativo social, pai Caio é agente dessas mudanças sociais.

As relações estabelecidas entre o pai de santo e as autoridades, em um período de ditadura militar, revelam, apesar da dor dos percalços enfrentados, a identidade social ativa desenvolvida pelo líder religioso perante a perseguição religiosa sofrida pelos terreiros:

O senhor estava presente quando o pai Caio foi preso?

(Silêncio...) Não vamos entrar nesse detalhe não. (Outro silêncio). Porque eu ouvi, eu percebi alguma coisa, mas deu tudo certo. Ele tinha conhecimento muito grande, ele tinha um conhecimento muito grande com generais. Com gente aí das altas pessoas da polícia. Nunca chegaram a maltratar ele. Ele foi, ele foi lá e tal, mas... ah... (silêncio).

Depois disso, no período da mãe Sylvia, não teve denúncia? As pessoas não eram arredias com vocês aqui do candomblé?

Do meu conhecimento não. Porque quando ele foi (morreu em 1984), o negócio (perseguição política) já estava bem melhor, aí já não deu mais problema nenhum. Porque... como se diz, foi no governo de Jânio Quadros que ele legalizou (o candomblé). E, portanto, tá lá a placa, o tombamento também do governador (Orestes) Quércia... em 1990.

A memória saudosa de tio Silvino recorda duas forças de pai Caio: com o sistema político e as autoridades e com a comunidade. Uma força bruta e uma força carinhosa:

Cara, eu conheci gente aqui que tinha vontade de vir na casa e não entrava porque aqui era casa de gente fina, gente rica, de alta sociedade e não vinha. Coisa que não é isso. Um dia, ele (pai Caio) tava aí, nessa área, e um senhor em pé do outro lado da rua. Aí ele pegou e mandou chamar aquele senhor. Aí aquele senhor veio e ele começou, falou, falou, falou. Conversou com aquele senhor. E esse senhor chegou a morar em frente à minha casa, tinha uma filha deficiente, meu deus do céu... o velho (pai Caio)... ih, o que ele fez por esse homem foi uma coisa. O homem melhorou tanto as coisas, tava numa situação difícil, difícil, mas... portanto, quando o velho (pai Caio) faleceu, ele e a esposa, meu deus do céu, não paravam. Cada hora que a gente encontrava com eles, eles choravam. Porque o velho fez, levantou a situação deles, cuidou da menina. Vixe, foi uma beleza. Bom, em todo lugar tem gente ingrata, né? Que não reconhece, mas tem muita gente que reconhece as coisas. Eu sou suspeito de falar.

Para o “tio”, o “pai” era o “velho”. Para o “pai”, o “tio” era o “comprido de Oxalá”. Assim se construiu um exemplo de relação das novas demandas religiosas da metrópole, do cliente que se torna adepto (PRANDI, 1991, p. 73), das entradas pela porta da frente dos terreiros, a conversão voluntária à religião, em outra instância, é a busca por uma identidade que demarque socialmente o indivíduo em uma cidade tão plural.

Tio Silvino, o homem branco que se converteu ao candomblé, que entrou pela porta da frente do barracão, classifica como “gratidão” o sentimento que atravessa a sua relação com o pai de santo, um homem negro que pode ter permitido o embranquecimento de seu candomblé, mas não a prática sutil da branquitude dentro de seu barracão. Permitindo o acesso de todas as pessoas que desejaram ser filhas de santo, mas evidenciando a sua autoridade, a autoridade do homem negro, seja dentro do terreiro, seja fora dele.

Tamanha autoridade é revelada também nas trocas narrativas da memória de tio Silvino ao optar, em um momento de recordação final, anteceder à lembrança do pai de santo o pronome possessivo de autoridade e o configurar enquanto uma “pessoa”:

Agradeço muito, muito, muito aquela pessoa, o seu Caio. Eu nunca cheguei para ele e falei assim: “Pai, tá me acontecendo isso, assim, assim...”. Era ele que quando eu chegava aqui: “Comprido de Oxalá, nós precisamos fazer isso, isso, e isso assim”. E assim eu fiz. Um dia eu saí do serviço e passei aqui. Ele estava aí no quarto de búzios. “Comprido, você vai embora agora e compre isso, isso, a Anita (esposa de tio Silvino) está em prantos com uma dor de cabeça”. Eu: “Meu deus”. Ele: “Ela tá que só grita. Você compre isso e faça isso, isso, pegue ela e leve em tal lugar assim, assim...”. Cheguei em casa, fiz tudo e fomos embora. Fomos até onde ele mandou e quando voltamos pra casa, ela não tinha mais nada. Então... o que é que a gente faz? Agradece uma pessoa dessa!

Ser, aos olhos do Outro, “uma pessoa dessa” é ter a sua autonomia evidenciada, seu espaço e suas escolhas respeitados por inteiro, para além de uma taxação subalterna. É ser possível existir mesmo com o Outro, apesar do Outro, e com o Outro. São as memórias de tio Silvino que revelam, mesmo sutilmente, a relação que pai Caio construiu com o entorno e as decisões ambiciosas que tomou para a consolidação de seu terreiro, mesmo as frutadas, como a construção de um Seminário Religioso de Candomblé, o que seria uma escola para reunir o conhecimento teológico da religião.

Esse desejo reforça a perspicácia que o pai de santo teve diante de uma demanda da época: a umbanda está se organizando e se transformando em candomblé. É preciso ensinar essa gente que não tem como ir a Bahia buscar conhecimento litúrgico:

Esse consumo, que não é do pobre, mas é do jovem, do estudado, do branco metropolitano, leva primeiro essa classe média aos terreiros da Bahia: há um novo universo no mercado religioso interno, à altura das formas mais originais e herméticas do Oriente. Mas a metrópole não vai pagar por muito tempo o preço de ir tão longe. Quer que a Bahia seja aqui, em São Paulo, por que não? E quando o candomblé chegar, sua clientela já estará de prontidão. Uma clientela de classe média, aliás, indispensável para garantir a infra-estrutura desta religião, clientela que se ampliará e se diversificará muito, evidentemente. De toda sorte, já temos aí uma precondição importante. (PRANDI, 1991, p. 73).

Para Prandi, o consumo não era do pobre, mas pai Caio queria que também fosse permitido para o pobre. Em sua visão, o candomblé, para se consolidar, precisava de oferecer acesso às pessoas, não dificultar: acesso a uma mulher negra sem renda fixa, convertida à igreja evangélica, mas com problemas de orixá, e acesso a um homem branco, funcionário técnico da Varig, que conseguiu se aposentar depois de 40 anos de empresa, e com resistência para entrar “naquela” religião.

Se “a dimensão simbólica do sagrado não atravessa a história impune e intocada” (PRANDI, 1991, p. 62), é por meio dessa dimensão que se faz a história. As religiões não se adaptam, elas também provocam alterações por serem construídas por indivíduos sociais. Uma casa de candomblé pode ser construída pelo desejo de manter uma tradição aprendida no berço, pela necessidade de sobrevivência financeira, pela vontade de reunir uma comunidade que se identifica para se fortalecer socialmente, pela garantia, apenas, de se legitimar.

Depois de construir uma relação amigável com os padres, autoridades públicas, delegados, políticos, homens e mulheres civis que entravam e saiam do terreiro, pai Caio morre em 15 de fevereiro de 198536, sendo sucedido por sua sobrinha, a mãe Sylvia de Oxalá.

Antes de um surpreso “tchau” de tio Silvino, interrompendo a entrevista e levantando-se

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