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4. ESTUDO DE CASO AMAZONAS E RIO GRANDE DO NORTE: ESTADOS EM GUERRA

4.4. Análise da conduta profissional nos casos estudados

4.4.1. Caso AM – Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj)

O Complexo Penitenciário Anísio Jobim estava com a capacidade de ocupação acima do permitido. Liderado, basicamente, por duas facções rivais, foi palco da maior disputa entre privados de liberdades do Estado do Amazonas e o maior número de mortos desde o Carandiru. Os fotojornalistas não tinham acesso ao interior do complexo, visto que não era permitida a entrada e não havia lugar que os possibilitassem a visão por cima dos muros, por esse motivo tiveram que direcionar suas coberturas fotojornalísticas aos familiares e agentes de segurança do Estado. Assim, há uma predominância da imagem desses indivíduos nos registros fotográficos do período do conflito.

Como já mencionado, a falta de visibilidade impossibilitou os registros dos privados de liberdade em combate. Isto porque, o Compaj está localizado em meio a floresta amazônica, as estradas até lá são de difícil acesso e quando há qualquer início de rebelião, motim ou conflito elas são bloqueadas para dificultar a fuga ou resgate dos encarcerados. As famílias desses indivíduos se acomodava dentro das matas que cercam o prédio do complexo em busca de informações sobre seus familiares. Todos os fotojornalistas entrevistados relatam contato com as famílias e o sentimento de angústia dividido com mães, esposas e filhas à espera de notícias dos seus parentes. Isso se deu porque os profissionais também ficavam, ao redor do complexo, junto aos familiares.

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Figura 14 – Print da localização do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (AM)

Fonte: Google Maps44

Como vemos na imagem acima, a floresta cerca o Compaj e só há uma estrada de acesso, o que impossibilitou a cobertura fotojornalística do interior da unidade prisional. Familiares tinham como fonte de informação as imagens que os próprios privados de liberdade divulgavam. A presença de celulares nas unidades prisionais do país é uma realidade, de acordo com Manso e Dias (2017, p. 16) “a popularização dos celulares ofereceu como uma ferramenta de comunicação entre lideranças de dentro dos presídios para se articular com o lado de fora e com as lideranças de outros estados”. Em consequência, as rebeliões ou conflitos são midiatizadas, a partir dos seus smartphones e postagens em redes sociais, também pelos privados de liberdade, sem qualquer filtro ou preocupação ética, como também mencionaram os fotojornalistas que compõem o corpus desta pesquisa.

87 Quanto à produção dessas imagens, o caso AM tornou-se ainda mais expressivo do que o Caso RN. Isto porque, a Família do Norte, facção local que entrou em conflito contra o PCC no episódio estudado, produziu um DVD com as imagens do horror que aconteceu no interior do Compaj: “não tivemos acesso aquelas fotos lá dentro, aquelas fotos horríveis, decapitação, tudo foram fotos que eles mesmos faziam lá dentro e jogavam nos grupos, vinham repassando pra todo mundo”, afirmou AM01 (2019).

Figura 15 - Print de vídeo feito de dentro do Compaj por encarcerados

Fonte: Jornal A Crítica45

As únicas imagens dos conflitos em si foram feitas pelos encarcerados (figura 15) que estavam no interior do Complexo. Segundo o AM02, os privados de liberdade “fizeram cabeça de bola de futebol [...]. São imagens realmente chocantes. E vende, né!? essas imagens?! O pessoal gosta de ver, impressionante, enfatizou”, (AM02,

45 As imagens feitas pelos privados de liberdade – que viraram DVD’s e foram no Estado – são muito

fortes. Por isso, optei por trazer apenas esse frame de parte do confronto. Disponível em: <https://bit.ly/2y>. Acesso em 20 de março de 2020.

88 2019). Neste caso, os fotojornalistas direcionaram seus registros aos familiares, aos agentes de segurança e ao confronto que existia entre eles, o que tornou as fotografias mais leves do que as imagens do conflito em si. Apesar de que, em Manaus, a mídia também cobriu os enterros dos encarcerados, afinal, havia uma quantidade expressiva de indivíduos mortos, 56 em apenas 17 horas de conflito. As imagens46 dos cemitérios e covas tinham um tom mais pesado do que as dos familiares e profissionais da segurança, muito embora fossem bem mais simbólicas. Como constatamos na imagem a seguir.

Figura 16 - Preparação de covas para vítimas do conflito no Compaj

Autor: Michael Dantas

Assim como na maioria das coberturas de conflitos, os fotojornalistas estavam expostos à dificuldades e aos perigos, mas isso não foi um empecilho para o trabalho dos profissionais. A localização do Compaj foi citada pelos três entrevistados como um fator de dificuldade para realização das imagens. A AM01 relatou os momentos de tensão:

46 Todas as imagens dos cemitérios feitas pelos nossos entrevistados estão no anexo A dessa

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Ficamos ali, entre os dois presídios, no meio da mata, e escutando um monte de tiro e bomba, que a gente não sabia de onde vinha. Então, quando anoiteceu já era mais ou menos umas seis horas, e aí eu fiquei assim meio em desespero ‘gente bora sai do meio dessa mata’, a gente não sabia onde que eles estavam, a metade tinha fugido. Estava por ali solto naquela mata. E nós pegamos e voltamos para a redação (AM01, 2019).

O fotojornalista AM02, apontou que estar perto da família dos privados de liberdade, envolvidos nos conflitos, é um dos momentos mais difíceis de qualquer registro de combates, “tem gente que, tem familiares que entende que tu tá ali fazendo teu trabalho, tem familiar que não: “sai daqui, tal”. É um momento difícil e a gente tá lá fazendo foto deles chorando”, concluiu (AM02, 2019).

A forma como o fotojornalismo de conflito é visto é de responsabilidade das imagens que são produzidas pelos profissionais. Mas, cada fotojornalista enxerga o gênero à seu próprio modo. A AM01, vê as coberturas mais trágicas como consequência da profissão:

Quando você aceita, quando você trabalha com fotojornalismo você tem que estar ciente que você vai fazer todo tipo de cobertura, tem coberturas internacionais, como a visita de um presidente internacional, ou a chegada de um chefe de Estado, como também você pode fazer o dia a dia da cidade. Como você ser pautado por uma coisa trágica dessa que são conflitos e rebeliões. E então nós estamos sujeitos a todo tipo de pauta (AM01, 2019).

Para o AM02, é difícil lidar com coberturas que envolvem corpos, conflitos e o sofrimento dos familiares. Quanto a cobertura fotojornalística do conflito no Compaj ele afirma que as imagens marcaram bastante, “fiz foto de mães chorando, manifestação de parentes em frente de presídio, eles batendo de frente com a polícia mesmo. Nesse caso eu fiz fotos bem chocantes mesmo dos familiares”, enfatizou AM02 (2019). O fotojornalista AM03 afirmou que não é fácil registrar a dor dos outros,

Você não tá ali fotografando a morte de várias pessoas apenas, você tá fotografando a dor das famílias, a dor dos sobrevivente, dos agentes penitenciários que passaram por aquilo, a dor de pessoas que supostamente não tinham envolvimento com a briga mas, ou foram feitas de reféns ou foram feridas e, claro, dos que morreram, mas aí não entra a questão da dor. Eu acho que o fotojornalista tem que ressignificar isso como algo de interesse social não fotografar a morte pela morte, mas mostrar que as pessoas estão erradas, que o sistema carcerário tem uma série de problemas, gravíssimos (AM03, 2019).

90 Essa fala traz uma reflexão relacionada aos moldes do fotojornalismo convencional. Na maioria das falas do caso AM, identificamos uma preocupação unificada dos profissionais em não retratar a morte pela morte ou a dor pela dor, mas buscar formas de ressignificar os códigos visuais na composição das imagens de conflito. Essa conduta é reflexo da consciência ética de cada profissional, a partir das suas formações e experiências.

A escolha do instante forográfico é pessoal, na cena estão apenas os componentes fotográficos, o equipamento, o profissional e a sua bagagem estética, ética e cultural. No entanto, sabemos que na realidade das redações fotojornalísticas quando ocorre um evento midiatizado, como os conflitos citados nessa pesquisa, o veículo de comunicação repassa os direcionamentos aos profissionais. Muito embora, saibamos que “o ponto de vista, o olhar de quem captou a imagem, nasce de uma intensa experiência, e de que a foto é o sedimento final, a culminação de um longo processo pessoal, profissional e artístico” (PÉREZ-REVERTE, 2008, p. 31).

Perguntamos a cada entrevistado se havia tido algum direcionamento por parte dos veículos que representavam. No que concerne a AM01 – cuja cobertura do conflito foi realizada para um jornal local – a única orientação foi que se dirigisse ao Compaj e enviasse fotos e vídeos dos acontecimentos. Já o AM02, não recebeu nenhuma orientação da agência internacional para quem fotografava os fatos. O AM03 relatou, diferente dos demais, a preocupação do editor, da agência internacional para quem prestava os serviços de fotojornalista, o direcionamento do veículo era pra ter cuidado com a integridade física, pois “nenhuma foto vale mais do que a tua segurança” (AM03, 2019).

O posicionamento ético dos fotojornalistas do caso AM refletiu-se em suas condutas profissionais e nas imagens produzidas, sabe a hora de fotografar ou não gira em torno de um importante amadurecimento ético e deontológico. Ciente dos seus direitos a AM01 pontua: “o jornalista não é obrigado a executar qaulquer tipo de tarefa que vem em desacordo com seus princípios e que agrida suas convicções” (AM01, 2019). Nesta fala, a profissional faz menção ao Código de Ética dos Jornalista Brasileiros, especificamente ao Capítulo IV – Das relações profissionais, artigo 13, que corresponde a cláusula da consciência.

91 Demonstra, também, preocupação quanto à imagem profissional, em tempos de rápida disseminação de informações nas redes sociais, quando afirma que a ética dos fotojornalistas é a responável pela não exibição dos corpos, caso eles tivessem tido acesso ao interior do Compaj. De acordo com AM01 (2019), “a maioria das nossas imagens, quase todas as nossas imagens, elas vão para a internet, antes de irem para um jornal impresso elas já foram para a internet”, por isso justifica e reafirma o cuidado em manter a ética. AM01 lembrou ainda da foto do menino sírio que rodou o mundo:

Uma foto que vem de guerra como uma famosa de uma criança sentado numa ambulância toda suja de terra, ainda estava viva, depois de um bombardeio, aquela foto rodou o mundo inteiro. Não tinha nenhum mosaico. Não tinha nada tampando essa criança, era aquela foto e era aquilo mesmo a mensagem que ele estava passando, e a foto foi exposta daquela maneira. Então, eu acredito que existe esses dois tipos de coberturas, e os espectadores eles querem, eles procuram isso, esse tipo de informação (AM01).

AM01 contou, ainda, que ao longo da cobertura do conflito teve que procurar formas de não expor aqueles que não autorizavam o uso de suas imagens, “eu fiz umas fotos assim na sombra, peguei a sombra de todos eles e fiz, entendeu?! Eu fiquei procurando de alguma forma, enquadrar, fazer uma fotografia onde eu não colocasse eles em exposição” (AM01, 2019).

O AM02 traz em suas respostas uma postura de equilíbrio. Para ele, o segredo está em “saber dosar, chegar perto na hora certa, não pode ser de qualquer jeito, tem que ter um pouco de experiência, se não acaba causando outro problema” (AM02, 2019). Ainda de acordo com ele, a ética está muito ligada ao fato do fotojornalista saber a hora de abaixar a câmera, de se colocar no lugar de quem está sendo fotografado.

A ética, para o AM03, também parte de entender os limites do outro, o momento de recuar, de abaixar o equipamento fotográfico. Por isso, ele defende que a ética é uma postura muito pessoal, e exemplifica: “eu ia fazer cobertura de morte na zona norte de Manaus, por exemplo, e eu ia lá assim meio tenso, tiroteio e tal. E tem colega que ia assim, ‘ah, tem um presunto vamos lá’, com aquela frieza” (AM03, 2019). Reafirma, em outra fala, que a questão ética:

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Não é do fotógrafo, é do ser humano. Eu torço para que esse tipo de cobertura eu não tenha que fazer, não porque eu não quero fazer, eu torço para que não aconteça. Não existe: ‘ah, eu sou ético na profissão e não sou humano’. Ética e moral são duas coisas que andam juntas. Se você é uma pessoa com moral então você vai levar moral e ética para o seu trabalho também. Tem advogado, tem ministro do supremo, tem presidente da república que não é ético, também vai ter jornalista, médico, pescador (AM03, 2019).

Perguntados em relação a criação de um código de ética voltado aos fotojornalistas, os profissionais AM01 e AM02 concordam com a existência desse direcionamento. Em contraposição, o AM03 acredita que um código não tornará alguém menos ou mais ético, ele defende que “se o cara for antiético ele vai estudar isso na faculdade, específico para imagem, e ele vai continuar fazendo, porque entra aqui sai pelo outro lado, né?’ (2019).