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2. FOTOJORNALISMO, IMAGEM E CONDUTA PROFISSIONAL

2.3. Conduta profissional e ética do fotojornalista

Martins (2019, p. 36) admite que “a fotografia é um dos componentes do funcionamento desta sociedade intensamente visual e intensamente dependente da imagem”. Entender os processos (práticas do fotojornalismo), os indivíduos (fotojornalistas e fotografados) e as noções éticas e sociais envolvidas nos conflitos registrados torna a discussão sobre ética e direitos necessária para a construção de um debate sobre os limites do fotojornalista diante da exposição da violência e da dor do outro.

A estetização do sofrimento e da dor, a partir das fotografias de conflitos, ainda busca atender a uma lógica de produção reconhecida e incentivada pelos principais prêmios de fotografia do mundo, como enfatiza a pesquisa realizada por Janaína Barcelos (2009) a qual comprova que, entre os anos 1955 e 2008, 88,2% das imagens

46 premiadas na categoria “Foto do Ano”, do World Press Photo, expõe algum indivíduo em situação de dor e vulnerabilidade.

Entretanto, as correntes de estudos – propostas por Barcelos (2009), Biondi (2010), Gonçalves (2009), Leitão (2016) e outros pesquisados – que surgem da necessidade de se pensar um fotojornalismo contemporâneo, social, preocupado com o indivíduo e com o poder das imagens fotojornalísticas estão, crescentemente, fazendo parte da conduta profissional de muitos fotojornalistas. Há uma busca, expressiva, por imagens reflexivas, provocadoras de discussões sociais construtivas e relevantes.

Entender os processos sociais, políticos e econômicos que envolvem a profissão do fotojornalista é também enxergar como nossas crenças e afirmações, construídas socialmente e coletivamente, estão erguidas sob essa mídia visual. As fotografias jornalísticas retratam conquistas, perdas e memórias da sociedade que não poderão ser esquecidas, mas também violam direitos e imagens de indivíduos, como vimos nas imagens apresentadas anteriormente e constataremos na análise do capítulo 4 (Amazonas e Rio Grande do Norte: estados em guerra carcerária).

Refletir sobre a conduta profissional fotojornalística que expõe a violência, a dor e a vulnerabilidade dos indivíduos é importante para a construção de um ideal de imagem disruptivo. Partindo desse, enquanto profissionais e pesquisadores de mídia visual, deveremos expressar a ética e a não-violação de direitos em nossas produções, sejam elas imagéticas ou teóricas, prezando por um fotojornalismo social, coletivo e íntegro. Por isso, conforme Barcelos (2014):

Esse cuidado com a produção e a seleção ganha dimensão muito maior e relevante quando as imagens são produzidas para a imprensa, seja por repórteres fotográficos ou por fotojornalistas. Isso porque a prática do jornalismo carrega consigo uma função social, ligada ao exercício da cidadania, à liberdade de expressão e ao direito à informação, aspectos que podem entrar em choque em alguns momentos. Além disso, o exercício profissional pressupõe regras de conduta da atividade, geralmente descritas em códigos de ética ou deontológicos (BARCELOS, 2014, p. 113).

Por isso, registrar os acontecimentos é também uma forma de contribuir para a sociedade, e, além disso, há uma força reflexiva representada em cada imagem que nos faz ponderar sobre determinado assunto. “É fundamental discutir sobre como

47 devem ser realizadas, selecionadas e publicadas imagens de acontecimentos que envolvem a dor do outro” (BARCELOS, 2014, p. 116), para que o interesse público, as mídias visuais e os profissionais fotojornalistas, direcionem seus olhares às imagens menos invasivas e transgressoras de direitos, porém, para isso, é preciso que os detentores desse poder imagético – o poder de escolha das imagens publicadas na mídia – tenham a compreensão da relevância de se produzir fotografias jornalísticas conscientes.

Compreendemos que o fotojornalista não age sozinho nesse processo de escolha. Há sempre um profissional – seja ele o editor de fotografia ou o chefe de redação – que diz qual fotografia será publicada ou não, com base em questões culturais, pessoais e internas dos próprios veículos de comunicação. Além disso, há um terceiro envolvido nesse processo: o espectador, que consome e compõe o público alvo dessas imagens.

Os registros fotográficos de privados de liberdade em conflitos nos presídios brasileiros, também apontam para as normas sociais da humanidade, muitas vezes calcadas em imagens violadoras. Qual o valor da imagem desses indivíduos? Por que são expostos indevidamente? Essas indagações nos trazem a perspectiva de que essa exploração pode ser pensada e analisada, também, a partir dos dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2017), os quais indicam que maior parte da população carcerária é composta por negros e pardos. As penitenciárias, portanto, têm cor. E os indivíduos expostos nas fotografias dos conflitos penitenciários também. Isto porque,

O racismo “racial” é no Brasil, no mais das vezes, latente, sutil e raramente assumido com ideologia. A raça, no entanto, permanece como categoria de ordenamento das relações com alteridade, vale dizer como categoria de “discriminação”. Esta adquire expressões e significados variados. Constata- se uma espécie de discriminação “passiva”, que indica o atraso do imaginário coletivo em reconstruir o novo lugar ocupado pelos afro-brasileiros na sociedade (PERALVA, 2000, p. 66).

Essa parte da população, maioria por assim dizer, têm suas rostos e identidades expostas na mídia. Assim como, ao longo da história, as imagens de povos em guerra, em situações de dor e violência, também são exibidas, premiadas e disseminadas pelo mundo sem entendimento do quão essa exposição é violadora.

48 Ela atinge indivíduos e seus familiares, expõem corpos, dor, sofrimento e dissemina essas informações, a partir das fotografias, seguindo a lógica de produção do fotojornalismo de conflito. Como defendido por Barcelos (2014),

Percebemos que existem fotografias de dor e sofrimento que são canalizadoras de mobilização da opinião pública e de transformações sociais. Outras apelam para a estética do horror e para o choque. A questão é que a ideia corrente de que é preciso apresentar a realidade de forma crua e violenta para criar sensações e de que a sociedade deve estar bem informada faz com que, a cada dia, se respeite menos os direitos humanos e se perca o sentido de intimidade (BARCELOS, 2014, p. 117).

Quanto a isso, nos conflitos e nas rebeliões em penitenciárias brasileiras, homens negros e pardos são expostos em capas de jornais e sites de notícias como mercadoria. Essas populações que já se encontram em condições desvalidas, são representadas como o espelho das condições estereotipadas, tanto nas guerras pelo mundo quanto nos conflitos brasileiros. Ainda se faz necessário muito tempo para que as questões raciais e sociais arraigadas nos alicerces da sociedade se desfaçam e deem lugar ao não julgamento ou discriminação por qualquer condição social que seja.

O fotojornalista tem a moral que o governa, sendo esta pessoal, e a ética que rege a profissão, definida por um código, colocada em prática coletivamente. Não há um código de ética voltado especificamente ao fotojornalista, porém, muito do que se entende enquanto prerrogativas éticas vem do Código de Ética dos Jornalistas18, o qual contém 19 artigos e foi criado no ano de 2007 pela Federação Nacional dos Jornalistas Brasileiros.

No que se refere, especificamente, à imagem, o Código (2007) traz, no capítulo II – Da conduta profissional do jornalista –, artigo 6, inciso VIII, que é dever do fotojornalista “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão”. Porém, esse regimento, quanto à profissão do fotojornalista, não é suficiente. Faz-se necessária uma reflexão pessoal do próprio profissional, como enfatizado por Sousa (2002):

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Falar de ética implica falar de uma perspectiva, o fotojornalista consciente, enquanto ser humano inquieto, deve sempre interrogar-se quando explora temas violentos: “será o acontecimento fotografado de tal dimensão sócio- histórica e cultural que o choque do observador é justificável? A violência será necessária para a compreensão do acontecimento ou para a sua corroboração? O corpo nu de um criminoso abatido pela polícia, à espera de ser autopsiado, talvez não seja um momento fotográfico eticamente aceitável, tal como não o será um rosto desfigurado após um acidente de trânsito (SOUSA, 2002, p. 136).

Desse modo, o impacto dessas imagens na vida dos envolvidos deverá ser levado em consideração no momento fotográfico. Há mesmo a necessidade de expor o outro para informar? A ética deve ser regida por um código de regras ou ela é tão pessoal que parte de uma reflexão interna? Para essas e outras perguntas, não há respostas universais, como diria Sousa (2002), entretanto, é evidente que a conduta ética profissional interfere na produção imagética.

A estética da imagem, imbuída da ética ou não, pode refletir fotografias que fortaleçam sentidos, estereótipos e preconceitos. O sofrimento dos conflitos expresso na superfície imagética atua de maneira diferente nos indivíduos, pode-se sentir compaixão ou estranhamento, pena ou contentamento. Isto, em procedência das individualidades morais e éticas de cada um. Quanto à estética, Sousa (2002) faz duas considerações:

1) a estética do fotojornalismo, ao afectar as representações que se constroem dos outros e de outros seres, tem implicações morais e éticas que devem ganhar expressão deontológica; e 2) em todo o caso, um determinado conteúdo estético pode criar ou reforçar empatias, pelo que a questão do inter-relacionamento entre a estética e a moral se mantém (SOUSA, 2002, p. 139).

Em relação à fala do autor, as implicações morais e éticas que adquirem ênfases deontológicas funcionam como controle social dessas imagens. No que diz respeito ao debate ético e deontológico do fotojornalismo – que envolve leis e direitos fundamentais garantidos constitucionalmente – Sousa (2002) dissertou acerca dos

50 principais pontos que norteiam essa questão, elencou 18 tópicos19, os quais contribuem e corroboram com esta pesquisa, e serão discutidos no próximo capítulo.