• Nenhum resultado encontrado

4. ESTUDO DE CASO AMAZONAS E RIO GRANDE DO NORTE: ESTADOS EM GUERRA

4.3. Crise do sistema carcerário brasileiro

O massacre do Carandiru marcou o início de um novo tempo no sistema carcerário brasileiro, em outubro de 1992 o país assistia ao pior momento de violência da história dos presídios brasileiros. Segundo Manso e Dias (2017, p. 12), “foi o episódio mais dramático de uma cena criminal que desde o final dos anos 1960 vinha se caracterizando pela violência por parte das autoridades de segurança e estabelecendo novos arranjos e contornos sociais em São Paulo”. Um total de 111 privados de liberdade foram mortos por policiais militares durante uma rebelião no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru (MANSO; DIAS, 2017).

As práticas arbitrárias – que vão desde os maus-tratos e tortura até a corrupção endêmica e sistemática no interior das unidades prisionais – minam a credibilidade dessas instituições públicas e fortalecem grupos organizados criminosos que impõem um código de comportamento cuja observância é rigidamente controlada e cuja transgressão é punida severamente (DIAS, 2011, p. 214).

Na atualidade, as penitenciárias brasileiras permanecem sob a lógica do estado de exceção30, configurando-se enquanto espaços trangressores das legislações vigentes e mantenedores dessas práticas arbitrárias. Fora as leis da sociedade, há dentro desses ambientes, códigos e normas estabelecidos pelas facções31, as quais surgiram com o objetivo de liderar o crime organizado no Brasil mas que ao longo dos anos passaram a comandar, também, a população carcerária. A principal e mais

30De acordo com Agamben (2010, p. 80), “o estado de exceção não é uma ditadura [...], mas um

espaço vazio de direito, uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas estão desativadas”.

77 poderosa entre elas é o Primeiro Comando da Capital (PCC)32, que vem desafiando as autoridades do sistema prisional com um poder cada vez mais atuante no mundo do crime (MANSO; DIAS, 2017).

Foi nos anos 1990 e início dos anos 2000 que o PCC se disseminou nos presídios dos Estado de São Paulo e também fora deles, isso permitiu uma conexão entre as prisões e o crime organizado. No ano de 2001, o PCC impulsionou a maior rebelião já ocorrida no sistema prisional até aquela data totalizando 29 estabalecimentos prisionais paulistas. Esse fato evidenciou um aspecto novo nas prisões brasileiras, observou-se, consoante Salla:

[...] a atuação de grupos criminosos influencia e, por vezes, determina profundamente as práticas quotidianas no ambiente prisional, inclusive as rebeliões, com a presença ou não das condições precárias de existência nos cárceres (SALLA, 2006, p. 276).

Já em 2016, de acordo com Dias (2011, p. 218), a organização criminal protagonizou “uma crise sem precedentes, no episódio que ficou conhecido como “ataques de maio de 2006” (grifo do autor), no qual o PCC promoveu uma enorme demonstração de força”, tanto no interior dos presídios quanto nas ruas de SP. Organizada e com regras elaboradas dentro da realidade carcerária da época, a facção paulista tinha como bandeira “a luta contra a opressão do Estado, o abuso e as violações de direitos impostas aos presos” (DIAS, 2011, p. 218).

Desde então o PCC só cresceu em números de adeptos e, consequentemente, no controle do mundo do crime. O encarceramento em massa ajudou a aumentar o poderio da facção, “no cenário neoliberal [...], o Brasil é o quarto país em população carcerária, [...] ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia” (BRANCO; QUEIROZ, 2017, p. 385). Os dados mais recentes do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), disponíveis previamente no Painel Interativo - dezembro/201933, apontam que a população carcerária atual é de 755.274 mil indivíduos.

32 Optamos por não recuperar a história da criação do PCC nesta pesquisa, desse modo focaremos

nos aspectos que nos interessam discutir aqui. Para mais informações sobre o tema ler Souza (2007).

78 A realidade do início do século XXI registrava 232755 mil privados de liberdade, nessa prorporção “em 2000, a taxa de aprisionamento era de 135 a cada 100 mil habitantes, hoje, 20 anos depois, subiu para 335 a cada 100 mil habitantes”34. De acordo com o Infopen, atualização de 2017 – última versão publicada completa, com todas as questões abordadas nas pesquisas sobre informações penitenciárias – “é possível observar que a maior parte dos custodiados é composta por: jovens, pretos, pardos e com baixa escolaridade. O crime de roubo e de tráfico de drogas foram os responsáveis pela maior parte das prisões” (BRASIL, 2017, p. 68). A predominância de negros e pardos, que representam juntos 63,6% dessa população, nos faz perceber que desde a virada do século “vivemos um processo de encarceramento em massa, principalmente da população negra”35, como podemos observar a seguir:

Figura 12 - Etnia/cor das pessoas privadas de liberdade e da população total

Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen36

(BRASIL, 2017, p. 32)

Outro fator relevante para observação do sistema prisional brasileiro é o nível de escolaridade dessas pessoas. Mais da metade não chegou a terminar nem o ensino fundamental. De acordo com o Infopen (BRASIL, 2017), 51,3% dos privados

34 Trecho do texto “Marielle e a luta pelo desencarceramento”, escrito pela pesquisadora Emanuele de

Freitas Bazílio e publicado no portal Nossa Ciência. Disponível em: <https://bit.ly/3dhoMpe>. Acesso em: 18 de abril de 2020.

35 Ibid.

79 de liberdade têm o ensino fundamental incompleto, 5,85% sabem ler e escrever, mas não possuem grau de escolaridade, e 3,45% são analfabetos.

A superlotação nas unidades prisionais, motivo de muitos motins e rebeliões dos encarcerados, é expressiva no país. No momento do conflito no Complexo penitenciário Anísio Jobim (AM) e na Penitenciária Estadual de Alcaçuz (RN), os dois presídios estavam com número de ocupação acima da capacidade. Os dados do Infopen demonstram que “em relação ao déficit total de vagas é possível inferir que há uma carência superior a 300 mil vagas em todo o sistema penitenciário brasileiro” (BRASIL, 2017, p. 25), como constatamos a seguir:

Figura 13 - Déficit e vagas da população em unidades prisionais

Fonte: Painel interativo do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, atualização dezembro de 201937.

Baseados nos dados acima, inferimos que o sistema prisional está quase com o dobro da sua capacidade populacional, e isso têm aumentado ainda mais o número de conflitos entre facções e o poder que essas exercem nos presídios. O

37 Painel interativo com dados de dezembro de 2019. Disponível em: < https://bit.ly/3be0ICq>. Acesso

80 encarceramento em massa e a falta de estrutura carcerária são um dos motivos para essa superlotação, como afirma Manso e Dias (2017):

“O aumento do encarceramento e do fluxo de pessoas nas prisões deslocou a prisão para o centro da dinâmica social, política e criminal contemporânea. E a violência nas prisões em 2017 explicitou esse fenômeno” (MANSO; DIAS, 2017, p. 15).

Os autores (2017) citam os episódios de violência acontecidos no Amazonas e no Rio Grande do Norte, no ano de 2017, como consequência desse processo. As cenas dos conflitos também demonstram que “o aprisionamento em massa, ao invés de controlar o crime, surge como fator de fortalecimento das lideranças criminais” (MANSO; DIAS, 2017, p. 19), com isso surgem novas formas de sobrevivência e poder das facções. Desta forma,

As rebeliões em presídios no Norte e no Nordeste do Brasil, em janeiro de 2017, produziram mais de 160 mortos e evidenciou uma nova configuração de redes criminais no Brasil, articuladas pelo mercado de drogas e organizadas por facções regionais formadas dentro dos presídios, com graus diferentes de rivalidade e articulações, em relações que podem transpor as fronteiras estaduais e até as nacionais (MANSO; DIAS, 2017, p. 11).

Outros problemas também ajudaram a fortalecer a articulação criminal dessas organizações, foram eles: o desrespeito aos direitos dos privados de liberdade e ao código processual penas, há uma quantidade expressiva de presos provisórios ocupando penitenciárias; a ampla utilização de smartpones e celulares; e, por último, a liberdade da gerência dos presos tornou o sistema prisional um local propício para organizar as demandas do crime (MANSO; DIAS, 2017).

No Brasil, os privados de liberdade sempre estiveram submetidos a arbitrariedades. Eles queriam lutar pela manutenção dos seus direitos e, para isso, precisariam combater as atitudes do sistema, “a confrontação ao poder estatal, por sua vez, só seria possível numa situação de união e de fortalecimento mútuo dos encarcerados e de todos aqueles que fazem parte do mundo do crime” (DIAS, 2011, p. 217). Com isso, o PCC encontrou espaço nas penitenciárias e passou e se tornou porta-voz da população penitenciária. Além da influência e controle exercidos sobre os privados de liberdade, abriu-se espaço para negociações e acordos entre as

81 gestões das unidades prisisonais e os líderes do PCC no gerenciamento do dia a dia das prisões (DIAS, 2011).

Tanto o encarceramento em massa e as práticas arbitrárias quanto a dominação das facções nos presídios brasileiros reforçam o estado de exceção e a reafirmação da vida nua38. O Estado “assume a função de definir qual vida merece ser vivida, ao mesmo tempo em que estabelece o seu contraponto, a vida indigna de ser vivida” (BRANCO; QUEIROZ, 2017, p. 386), sendo a essa última imposta a condição de vida nua, como afimam os autores (2017): “pessoas insacrificáveis, embora matáveis” (2017, p. 386). Desse modo, os presidiários são expostos, como afirma Manso e Dias (2017):

A violência e o medo, dessa forma, combinaram-se a processos de mudança social nas cidades e produziram formas de segregação espacial e discriminação social. A figura do “bandido”, portadora de “outro tipo de humanidade”, “cuja morte ou desaparecimento é festejado”, se consolidou como o inimigo principal a ser controlado e isolado a qualquer custo. O bandido foi identificado a partir de estigmas relacionados a gênero, idade, raça, classe social e território da cidade: jovens não brancos moradores das periferias da cidade (MANSO; DIAS, 2017, p. 13).

Quanto a esses estigmas, jovens pretos e pardos, com pouca ou nenhuma escolaridade, moradores de periferia, sem acesso ao mercado de trabalho ou financeiro, são excluídos socialmente e direcionados a um ambiente de negação total de direitos. Em vista disso, o sistema político os vê como uma ameça, suas presenças no espaço de vivência social devem ser interrompidas. Por consequência, passam a fazer parte da população encarcerada (BRANCO; QUEIROZ, 2017).

Nas prisões, esses jovens, privados de liberdade, vivem sob o estado de exceção, no qual suas vidas perdem o valor jurídico. O massacre do Carandiru, de acordo com Branco e Queiroz (2017), transformou os indivíduos encarcerados em

homo sacer39, dando validação às atrocidades com o objetivo de controle ou extermínio da população carcerária excluída socialmente. Para Agamben (2007, p.

38 Para maior aprofundamento ler Agamben (2002).

39 Homo sacer é um termo utilizado pelo autor Agamben para definir a condição dos homens excluídos,

vistos como descartáveis pela sociedade, os quais podem ser sacrificados pelo bem da sociedade que os exclui.

82 90-91), “o homo sacer apresentaria a figura orginária da vida presa no bando soberano e conservaria a memória da exclusão originária através da qual se constitui a dimensão política”.

Essa condição, segundo o autor, permite que os privados de liberdade sejam mortos por qualquer um: Estados ou facções. O termo soberano, empregado pelo autor (2007), é justamente essa esfera social onde se pode tirar a vida de alguém sem que haja qualquer responsabilização criminosa, as unidades prisionais do Brasil caracterizam-se enquando essa esfera. O homo sacer tem sua existência garatida no estado de exceção, e esse legitima as condições nos presídios. Assim, podemos caracterizar “o sistema penitenciário do estado como um espaço onde o ordenamento jurídico não vigora e onde o ser insacrificável, porém matável, vive na condição de vida nua” (BRANCO; QUEIROZ, 2017, p. 391), sobre a qual as medidas de exceção são impostas:

As medidas de exceção, que somente agora se apresentam como uma ameaça aos direitos fundamentais para algumas parcelas da população vêm ocorrendo de forma sistemática na manutenção da vida no cárcere. Mesmo com a existência de leis, acordos, pactos, resoluções e portarias que regulamentam a Execução Penal, o funcionamento das unidades prisionais no Brasil se dá a partir de medidas de exceção que visam o confinamento dos “dejetos sociais”, a manutenção da ordem pública e a segurança do patrimônio privado, em detrimento da dignidade humana e à custa do ordenamento jurídico e de recursos públicos (BRANCO; QUEIROZ, 2017, p. 388).

As unidades prisionais estão inseridas em uma necropolítica40 sistêmica que une o racismo, a exlusão social e a soberania do Estado e de outras instiuições políticas não-estatais, como as facções. As quais determinam as vidas que devem viver e aquelas que devem morrer. É a política da morte, implementada nas periferias e unidades prisionais do país. Mbembe (2018) elaborou os conceitos de necropolítica e necropoder, com os quais enfatiza que a existência e a prática dessa política se reafirma pela soberania da escolha de quem deve ou não morrer.

40 Conceito elaborado por Achille Mbembe, filósofo, historiador e professor universitário – nascido na

África Central, no país Camarões – o qual questiona os limites estabelecidos para a soberania da escolha do Estado de quem deve morrer ou viver (MBEMBE, 2018).

83 No que concerne a realidade das unidades prisionais brasileiras, especificamente quanto ao Compaj (AM) e a Alcaçuz (RN), o soberano – figura que representa a necropolítica – tem o poder de elaborar códigos, leis, normas, assim como de obrigar a submissão dos indivíduos inseridos nessa política a tais regras. Nesse sistema, a entidade soberana – seja ela o Estado ou as facções – estabelece a garantia ou não dos direitos básicos aos encarcerados, se decidir pela ausência desses direitos coloca em prática o estado de exceção, sendo assim, apesar de haver leis, elas não são executadas.

Mbembe (2018), defende que o estado de exceção e as possíveis hostilidades entre indivíduos desse sistema concretizam-se como fundamentos do direito de matar. Desta maneira, recorre-se a um entendimento e taxação do outro como inimigo, como vida não digna de existir, descartável, dispensável. Como exemplo disso, alguns privados de liberdade – os que cometeram crimes sexuais, os que não querem integrar as facções, ou os ex-integrantes, e os homossexuais – assumem a condição de vida nua, sendo eles:

Duplamente segregados e excluídos, esses presos tornam-se verdadeiros párias, sem direitos perante o Estado e diante de uma justiça que os condenou, mas é incapaz de lhes garantir existência jurídica e tampouco sobrevivência física (DIAS, 2011, p. 230).

Esses indivíduos estão sob os poderes soberanos e arbitrários tanto do Estado, que rege as unidades prisionais, quanto das facções (PCC, Sindicato do Crime do RN41, Família do Norte42), responsáveis pela organização da população carcerária enquanto. A estrutura da necropolítica controla e determina quais privados de liberdade merecem ser descartados, utilizando-se de seus próprios estigmas, códigos e determinações.

41 Facção que entrou em conflito com o PCC, em janeiro de 2017, na Penitenciária Estadual de Alcaçuz

(RN).

42 Facção responsável pelos conflitos com o PCC, ocorridos em janeiro de 2017, no Complexo

84