Por ocasião da composição final da instalação I/VOID/O, algumas questões estavam precariamente sedimentadas e suscitavam uma possível relação entre o paradoxo do mentiroso72 e o fenômeno da inversão (que abre o texto sobre a obra M(n)EMO). Essa relação indicaria a impossibilidade de verificação de certas qualidades entre dois “sistemas” distintos, que se encontravam inicialmente separados e que buscavam meios para se comunicar. Esses sistemas (o lado interno quadrimensional e externo tridimensional da esfera) precisavam se traduzir continuamente sob a perspectiva um do outro. No entanto, sempre haveria uma região obscura, intraduzível. Essa região inacessível era análoga à impossibilidade de se ver a terceira e quarta dimensões justapostas (ver figura 18).
O texto que se segue é uma reprodução integral de um texto produzido naquela ocasião e que divagava sobre as questões acima apontadas.
70 A energia aqui é entendida como sendo um fator de desequilíbrio. Esse desequilíbrio, no caso,
é causado pela quantidade e velocidade de movimento aplicado na prótese.
71 Mover-‐se simetricamente com o sentido de promover compensações, por exemplo: depois de
mover a prótese para a direita, o usuário deveria movê-‐la para a esquerda, para compensar o desequilíbrio causado pelo movimento anterior.
72 CLARK, Michael. Paradoxes from A to Z. London and New York: Routledge. 7ªed., 2005.
Primeiro caso: CASO INVERSÃO
Imagine que, de repente, tudo que está à sua esquerda passe para a sua direita e vice-‐versa, desde os astros mais distantes até sua partícula mais íntima. Você perceberia essa mudança?
Segundo caso: CASO MENTIROSO
Se perguntarmos a alguém se ele é mentiroso, e ele responder que é, essa resposta é falsa ou verdadeira?
No primeiro caso, a hipótese é que só conseguiríamos perceber a mudança se estivéssemos fora do sistema, observando as mudanças de coordenadas acontecendo em relação a uma outra pessoa. Enfim, numa perspectiva externa ao ponto de referência (ponto onde se estabelece o que está à esquerda e o que está à direita).
No segundo caso (análogo ao Teorema da incompletude de Gödel73), nunca saberíamos a verdade, pois se alguém afirmar que é mentiroso, a afirmação é tanto verdadeira quanto falsa. Se for verdadeira, ele é mentiroso e, portanto, mente sobre si mesmo. Se for falsa, ele está mentindo e, portanto, é verdadeira (ele é mentiroso). Só é possível saber se ele é mentiroso ou não se você estiver na perspectiva do mentiroso, isto é, dentro do sistema “mentiroso”, e não checando a validade da afirmação exteriormente.
Esses dois casos demonstram como certas informações só são acessíveis de dentro OU de fora de certos sistemas. No caso VOID, esses sistemas se relacionam da seguinte maneira:
Sistema externo: por meio de um artifício, o observador externo penetra no sistema interno. Esse artifício, no caso, duas próteses (uma estática e outra móvel), o coloca em contato com um universo interno. A prótese móvel promove um vasculhamento intenso dessa realidade interna. Com ela, no entanto, o observador externo possui um olhar que é desprovido de uma compreensão do espaço quadrimensional que estrutura o espaço interno. Ao observar diretamente os fenômenos internos, estes se mostram incoerentes: dilatações, contrações e inversões espaço/temporais permeiam os eventos observados. Já a prótese estática serve para o observador externo se observar no momento da observação. Com essa prótese, o observador se vê em um cubo, que é a construção de um sistema de coordenadas relativo ao espaço externo do
observador. Esse sistema que se projeta de fora para dentro dissipa as incoerências, traduzindo o espaço quadrimensional em termos do espaço tridimensional. Embora dessa perspectiva ele consiga eliminar as distorções espaciais e a fragmentação temporal, tudo o que ele consegue realizar é uma projeção da sua percepção exterior de espaço e tempo. Ele reproduz e projeta no interior a sua visão de espaço tridimensional, geometria euclidiana e tempo linear, pois usa sua realidade externa como referência.
No entanto, ao reordenar o que ele vê do universo interno, o observador externo fica impedido de perceber a correlação, a sincronia e a simultaneidade de formas e eventos do espaço quadrimensional interno.
Sistema interno: o observador interno assiste ao observador externo no seu ato de observação. As alterações provocadas pelo observador externo ao se situar nesse espaço interno a partir de suas coordenadas internas provocariam interferências estruturais nesse espaço: ao interferir nele, ordenando-‐o, dissipando distorções e inversões observadas a partir da perspectiva externa, ele provocaria uma reorganização desse espaço interno. No entanto, o observador interno não percebe a reorganização provocada pelo observador externo. O universo interno se transforma e com ele se transforma o observador interno, proporcional e entrelaçadamente: o observador interno não acessa a ordenação realizada no ato da medição/observação. Seu corpo, parte desse universo interno, se altera sincronizadamente com a reorganização promovida pelo observador externo.
Na verdade, em relação à reorganização existe uma indefinição: as alterações provocadas pela reorganização são trazidas de fora pelo observador ou são parte da realidade interna, isto é, já estariam lá em latência?74
Assim como a prótese criada para a observação é um artifício, a anulação das distorções realizada com a ajuda da segunda prótese também é artificial, construída. O universo interno é reconstruído a partir desses artifícios. O que se acessa, portanto, não é o universo interno, mas sim a interface entre o universo externo e interno. Isso posto, vale ressaltar que as alterações não são uma mera falta de sincronia entre o externo e o interno. Aliás, não existe possibilidade de se sincronizar completamente o externo e o interno. O que se pode fazer é recriar o interno (ao compor a interface), de modo a respeitar as coordenadas externas.
74 De certa forma, essa ideia de latência das alterações antecipa o que depois será mais bem
Mas essa construção não é neutra. Ela interfere no espaço interno, alterando-‐o. Assim, as alterações são tão reais quanto as demais qualidades espaço/temporais internas. A diferença é que, para o observador interno, essas alterações são inacessíveis ao seu olhar, pois seus olhos se alteram junto com o espaço, visto que estão no espaço em alteração.
Recuperemos agora os casos “inversão” e “mentiroso”: da mesma maneira que a inversão só é visível de fora do sistema, e a verdade sobre o mentiroso só é sabida por ele próprio, o observador externo vê aspectos do universo interno que observador interno não pode acessar (alterações). Da mesma forma, o observador interno sabe aspectos do observador externo, quando este último se apresenta dentro do sistema interno, que o observador externo é incapaz de alcançar (simultaneidade e correlação entre reflexos e prótese, por exemplo).
As alterações poderiam vir a acontecer até mesmo na ausência do observador? Elas seriam parte intrínseca da realidade interna, embora não visível pelo observador interno? Como a coerência do universo interno é mantida, mesmo com as alterações promovidas pela interface do observador externo? Talvez pelo fato de as alterações serem parte do sistema interno. Elas estão lá de forma latente, até mesmo antes da interferência que as gera. Assim, em I/VOID/O, sustenta-‐se a ideia de que as alterações são acionadas pela observação externa, embora elas já se encontrassem lá, em latência, antes dessa interferência. No entanto, os eventos introduzidos pela interferência externa não têm precedentes. Embora respeitem a lógica interna e existam em latência, os eventos causados pela observação são completamente novos, isto é, ao se tornarem tangíveis, observáveis, eles são uma atualização do que era latente. Essa atualização é criativa: ela opera uma transformação naquilo que era latente75.
Nesse sentido, os casos mentiroso e inversão apontam para uma questão que precisava ser aprofundada: a questão da latência das alterações e sua
75 Sobre esse processo de atualização de uma entidade latente, virtual, iremos nos aprofundar
relação com a possibilidade de comunicação entre sistemas. Essas questões só avançaram e foram requalificadas nesse processo de confecção da tese ao tratarmos dos conceitos de individuação (e sua relação com o virtual), transdução e ressonância.76 Esses conceitos, no entanto, não são uma resposta imediata a essas questões. Eles surgem dentro de um conjunto de conceitos que são mobilizados para dar forma ao que chamamos de “regimes de permeabilidade entre o humano e interfaces digitais”. Esses regimes, que buscam uma generalização dos “regimes de permeabilidade” na obra VOID (“espelhamento”, “transparência” e “inserção”), tensionam as questões tratadas na direção de um entendimento mais geral e aprofundado em relação à composição da relação entre o humano e as interfaces digitais. Nessa composição, ao tratar o espelhamento, a transparência e a inserção de maneira mais geral, novas questões e implicações requalificaram o quadro teórico. Esse processo, por sua vez, alterou o próprio entendimento sobre a obra I/VOID/O77. Uma das consequências da requalificação tanto da obra quanto do quadro teórico foi a criação de um último regime, o “deslizamento”, como veremos no capítulo V e na conclusão. O quadro geral resultante dos regimes de permeabilidade entre o humano e interfaces digitais será chamado a participar da problematização da relação do arquiteto com os meios digitais em seus processos criativos. Essa relação será abordada no capítulo VI.
76 Conceitos abordados no capítulo IV.
77 Quando tive a oportunidade de apresentar este trabalho (a instalação e suas questões) ao
físico Otto Roessler (professor do Institut für Physikalische und Theoretische Chemie, Tübingen, Alemanha. Roessler é uma das principais referências mundiais para assuntos relativos a Atratores Caóticos, Endofísica e Microrrelatividade), por ocasião de uma de suas visitas a Berlim, em 2002, ele sugeriu que eu investigasse o conceito de interface, ou Schnittstelle (“interface” em alemão; esse conceito será abordado no capítulo II.), elaborado por Siegfried Zielinski. Roessler me disse que eu havia chegado a algumas questões que se aproximavam do conceito de interface de Zielinski, e que seria interessante saber qual seria minha leitura sobre isso e como eu retroalimentaria meu trabalho posteriormente. Em 2004, recebi uma carta de Roessler onde ele perguntava se eu havia lido Zielinski. Nessa carta, ele ainda escreveu suas impressões sobre o trabalho VOID: "This is a most intriguing gadget+tool at the frontier of
modern interface science and technology. It could profoundly affect our sense of self in physics, philosophy and art.” Em vez de me sentir lisonjeado, esse elogio gerou em mim uma frustração:
mais uma vez não pude compartilhar a admiração de alguém que possui uma compreensão de VOID diferente da minha. Como não consigo compartilhar essa outra admiração e compreensão, fica sempre a impressão de não ter atingido a realização da promessa contida em VOID. De qualquer modo, esta tese é uma retroalimentação tardia à indicação de Roessler... É a entrada final na esfera. Entrar na esfera, no entanto, vai representar não apenas o atravessar do espelho e a contínua retroalimentação entre conceitos e materialização da interface. Entrar na esfera é reconstruir essa esfera desde o seu início.
Embora tenhamos apontado o “espelhamento”, a “transparência” e a “inserção” em diversos momentos do texto até aqui, convém recuperar e recompor resumidamente os regimes quanto ao caso I/VOID/O antes de introduzirmos uma requalificação generalizante no final deste capítulo. Essa introdução será ampliada e desenvolvida nos capítulos seguintes.