Palavras-‐chave: interface contraintuitiva, realidade aumentada, cibernética, topologia, mecânica quântica, endofísica.
Fig. I-‐13 – Instalação interativa “VOID”, na exposição “Splendid Imersion”, no V2_Org, como parte da II Bienal de Arquitetura de Roterdã, 2005.
A instalação “VOID” trata da observação de um objeto como um fenômeno fisicamente interativo. O interator, ao observar o conteúdo da “caixa-‐ preta” em questão (essa sentença em si só já é um oxímoro, em termos cibernéticos), interfere a tal ponto no objeto observado que, na verdade, acaba por (re)criá-‐lo. Mas o que se cria, a realidade interna observada, nada mais é do que a própria interface. Como tal, a interface trata de si mesma, é uma metainterface que se retroalimenta continuamente, partindo do input inicial do usuário: o seu processo de observação.
A retroalimentação é a lógica que permeia toda a interação. Essa retroalimentação, no entanto, se dá de maneira aberta, isso é: seus parâmetros são dinâmicos. Essa dinamicidade se dá pelo confronto constante entre os universos analógico e digital presentes na interface. A tensão gerada nesse confronto, em que um universo desestabiliza o outro na tentativa de assimilá-‐lo (mutuamente), é o material que compõe a interface.
Som (gerado pelo movimento do interator) e luz (imagem refletida no espelho e imagem captada por câmeras) são traduzidos em parâmetros discretos, que por sua vez alteram a qualidade de som e luz/imagem captados em um “looping” contínuo e vertiginoso. Dentro dessa dinâmica, o interator é levado a transitar entre dimensões (2D, 3D, 4D) ou níveis de imersão, tangenciando diferentes realidades e universos internos à caixa preta.
Esse trânsito erode a visão isolada de um superobservador externo (como conhecido na Objetividade Clássica), gerando no observador/interator uma fricção cognitiva. Essa fricção é fruto dos paradoxos espaciais gerados pela interface. Paradoxos esses exclusivamente criados pela reflexão das imagens em um espelho côncavo: imagens parecem desprender-‐se da superfície desse espelho, flutuando efemeramente no espaço como um holograma fantasmagórico. Além disso, distorções, inversões e reversões contraintuitivas das imagens questionam o nosso entendimento do espaço interno.
Essa fricção cognitiva aponta para o que não pode ser diretamente observado; aponta para a sombra, para o intervalo entre dimensões. Um intervalo que não é apenas vazio. Um intervalo que é estrutural e que, portanto, sustenta as diferentes dimensões.
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A instalação VOID é composta pelos seguintes elementos:
1-‐ Caixa-‐preta: uma esfera acrílica cuja superfície é espelhada (interna e externamente), com 500 mm de diâmetro;
2-‐ Prótese móvel: um endoscópio (câmera + fonte de luz) onde também estão anexados um microfone e o que chamamos de “padrão geométrico” (utilizado no sistema de reconhecimento de padrões, parte do sistema de
realidade aumentada54). A câmera proporciona uma visão interna em “primeira pessoa”55 de dentro da esfera. Essa prótese pode ser introduzida na esfera, rotacionada ou girada em todas as direções;
3-‐ Duas caixas de som anexadas do lado externo da esfera, utilizando ela própria como caixa de ressonância. O som amplificado pelas caixas é capturado novamente pelo microfone interno (um sistema de filtro digital impede que a microfonia alcance níveis muito altos);
4 -‐ Plataforma vibratória: uma caixa de som especial (que apenas gera sons de frequência muito baixa) é anexada na superfície inferior da plataforma onde se situa o interator. Essa caixa faz o corpo do usuário vibrar em determinados momentos;
5 -‐ Sistema de Realidade Aumentada: uma câmera situada externamente à esfera filma o interior desta através de um orifício em sua superfície. As imagens captadas são processadas por um software que gera um cubo virtual que esconde a prótese móvel, apenas deixando visível o seu tubo de sustentação. Esse cubo é sincronizado com os movimentos da prótese de maneira a gerar a ilusão de estar fisicamente no interior da esfera. Na superfície do cubo, é renderizada em tempo real a imagem do interator em ação (essa imagem é capturada por uma outra câmera externa). O interator se vê dentro da esfera. Nesse instante, a plataforma vibra intensamente, “lembrando” ao usuário que seu corpo está fora da esfera;
54 Realidade Aumentada: sistema que justapõe imagens digitais (vídeos digitais, modelos
tridimensionais, fotos digitais) à imagens captadas por uma câmera. O sistema sincroniza essas imagens, dando a impressão de que uma imagem está conectada, em contato com a outra.
55 Primeira pessoa: termo usado em jogos eletrônicos, indicando que o jogador olha através da
Fig. I-‐14: O usuário se vê renderizado na superfície do cubo “virtual”, que flutua orientado pela posição da prótese sem se refletir no espelho
6 -‐ Sistema estereoscópico: duas câmeras paralelas fornecem duas perspectivas deslocadas (paralaxe) em relação ao interior da esfera. As imagens capturadas são projetadas através de filtros polarizadores56 que garantem a separação dos canais estéreos necessários para a visão tridimensional (com sentido de profundidade) acessada pelo interator via óculos com lentes polarizadoras;
7 -‐ Sistema gerador de som: um sistema baseado no instrumento musical Theremin57 é responsável pela geração do som: ao movimentar a prótese móvel dentro da esfera, o interator altera o campo eletromagnético interno a ela. Essa variação de impedância é percebida pela esfera, que funciona como uma antena. A variação eletromagnética é traduzida em variação de frequência sonora. O som produzido é então amplificado pelas caixas sonoras, que por sua vez alimentam o microfone interno. O microfone, então, retroalimenta o sistema,
56 Filtros polarizadores: filtram a luz, deixando passar apenas os fotóns que estejam sob
determinada orientação no espaço. No caso dos filtros utilizados, a orientação poderia ser vertical e horizontal.
57 Instrumento musical considerado o primeiro instromento eletrônico. Criado em 1928 por
enviando o som de volta para as caixas. A microfonia produzida é usada como material, delicadamente controlada digitalmente;
8 -‐ Filtro de som – hardware controlado remotamente pelo protocolo MIDI58;
9 -‐ Roteador automático de vídeo: um sistema especialmente criado para a instalação VOID realiza a transição de uma perspectiva para outra (ou diferentes dimensões) de maneira automática. Esse sistema captura digitalmente o som produzido, convertendo-‐o em parâmetros discretos que são utilizados como variáveis no algoritmo que organiza a lógica de transição entre dimensões. Alternam-‐se, assim, as imagens capturadas pelas câmeras, que são finalmente projetadas em um telão à frente do usuário.
A dinâmica da interação tem como referência um experimento hipotético e impossível: a observação total de um sistema fechado. As diversas dimensões por onde o interator transita durante a interação são referentes aos diferentes estágios de um processo de observação ou medição. Esses estágios passam desde a caracterização dos instrumentos medidores até a imersão total (e impossível) do observador no sistema observado (o ato de observar “de dentro”). A demonstração da impossibilidade de uma visão integral sobre um suposto objeto observado é realizada na instalação VOID ao se constatar que o que se observa não é o objeto, mas sim a interface criada para se observar um objeto hipotético.
Para que isso fique um pouco mais claro, imaginemos uma ordem de acontecimentos em direção ao interior da caixa-‐preta (além da Cibernética, esses acontecimentos são inspirados na Mecânica Quântica): ao introduzir nesse sistema um elemento externo a esse mundo, o observador causa uma interferência irreversível, provocando distorções espaço/temporais (em VOID: paradoxos espaciais – contrações, extensões, inversões, etc.).
Para trazer coerência aos fatos observados, o observador precisa estabelecer um sistema tradutor que consiga identificar e filtrar a sua interferência no sistema observado. Esse sistema é o que chamo de “alucinação abstrata coletiva”, pois não apenas filtra as informações, mas também as recria (em VOID, essa alucinação é o cubo, no qual o observador projeta o seu próprio corpo, organizando o espaço e o tempo ao seu redor).
Nesse evento impossível, acrescenta-‐se, por último, a perspectiva de um habitante da caixa-‐preta. Sua visão interna é alienada em relação à interferência do observador externo. Quando o observador distorce o espaço/tempo interno, ele distorce também o “corpo” desse habitante, impossibilitando-‐o de perceber
58 MIDI: Musical Instrument Digital Interface. É um protocolo adotado
comercialmente que possibilita a comunicação e a sincronização entre instrumentos musicais eletrônicos (sintetizadores, baterias eletrônicas), computadores e outros equipamentos eletrônicos (controladores MIDI, Samplers, placas de áudio, etc.) .
as distorções do seu mundo. Por sua vez, a percepção espaço-‐temporal desse habitante é inalcançável ao observador externo. Quando esse último cria o cubo, este não se reflete no espelho (pois, na verdade, não está lá dentro da esfera). Para ele, portanto, o instrumento medidor (a prótese) e os objetos observados internamente (reflexos da prótese) são entidades distintas. Já para o habitante da esfera, os objetos internos (reflexos) são relativos à prótese (pois ele não pode ver o “cubo”). Na realidade, da perspectiva deste, torna-‐se difícil distinguir o que é reflexo e o que é objeto, devido às qualidades tridimensionais e holográficas dos reflexos geradas pelo espelho côncavo. Objeto e imagem estão topologicamente conectados e entrelaçados (em termos quânticos, como será explicado a seguir). Em outras palavras, seria como se o habitante da esfera e o habitante de fora da esfera existissem em dimensões distintas: o habitante interno existiria em uma quarta dimensão e o de fora em uma terceira dimensão. Essas dimensões não são desconectadas. Em VOID tratamos da natureza dessa comunicação.”
Para entendermos a natureza dessa comunicação, vamos recorrer ao seguinte artifício simplificante: em vez de descrever a justaposição entre a quarta e a terceira dimensões, vamos mostrar como a justaposição se dá entre a terceira e a segunda dimensões.
Na figura abaixo, podemos observar um retângulo onde estão dispostos dois discos.
Fig. I-‐15
Fig. I-‐16
Da perspectiva de quem olha esse plano retangular, os discos são duas entidades separadas, distintos quanto às suas posições.
Fig. I-‐17
Na figura acima, adicionamos uma dimensão: os discos, essas entidades separadas quando só vemos o plano, se tornam agora parte da mesma entidade tridimensional. A segunda dimensão (representada pelo retângulo e pelas elipses) se justapõe à terceira dimensão (representada pelo objeto tridimensional “toróide”). Na justaposição vemos como essas dimensões se conectam via discos.
Poderíamos dizer, metaforicamente, que os discos são sombras bidimensionais de uma entidade tridimensional. Se só pudéssemos ver
bidimensionalmente, sombras separadas seriam entendidas como independentes. Se, no entanto, pudéssemos justapor a terceira dimensão à segunda dimensão, perceberíamos que os discos estão conectados, pois correspondem a duas seções de um mesmo objeto.
Essa mesma relação de sombra e conexão entre duas e três dimensões aconteceria com a terceira e quarta dimensões. Objetos separados geograficamente podem fazer parte de um mesmo objeto quadrimensional.
No entanto, em VOID, essa justaposição entre dimensões, em que poderíamos avistar ambas, é uma visão impossível. Ou se está em uma dimensão ou em outra. Nunca nas duas simultaneamente. Mas qualquer interferência ou transformação de uma entidade realizada em uma dimensão (seja nos discos, seja no toróide) acarreta mudanças na outra.
Fig. I-‐18
Portanto, se olharmos apenas “tridimensionalmente”, deixamos de ver os discos como conexão. Nessa terceira dimensão isolada da segunda dimensão, os discos fazem parte agora de um conjunto infinito de discos59 que compõem o toróide.
No caso VOID, o observador externo, que habita um mundo tridimensional e o percebe tridimensionalmente, ao se comunicar com o mundo quadrimensional interno da esfera é incapaz de vivenciá-‐lo quadrimensionalmente. Os objetos que observa, como vimos nas ilustrações acima, parecem estar desconectados entre si.
Já o habitante interno, ao acessar uma dimensão a mais, pode ver como objetos tridimensionais, no caso, os reflexos e a prótese, são, na verdade, partes do mesmo objeto quadrimensional. Como esse habitante não é capaz de ver tridimensionalmente, o cubo lhe é invisível (como os discos, no exemplo dado, são invisíveis para a terceira dimensão)60.
A questão da comunicação interdimensional, em VOID traduzida como comunicação dentro-‐fora (dentro como sendo olhar “quadrimensional” do
59 Discos não são as únicas entidades geométricas resultantes de seções em um toróide.
60 Cabe ressaltar que essas relações entre mundo tridimensional e mundo quadrimensional são
apropriações livres que extrapolam certos conceitos encontrados na Topologia e na Mecânica Quântica. Quanto a esta última, nós nos apropriamos principalmente de conceitos que dizem respeito ao entrelaçamento de elétrons e fótons (essa teoria não trata da invisibilidade mútua entre dimensões, como vimos acima. A invisibilidade é uma ficção incorporada em VOID, pois nele estávamos tratando da forma da observação/interferência/comunicação entre dimensões representadas pelo espaço interno e externo. Essa forma será tratada adiante quando abordarmos o “caso do mentiroso” e o “caso inversão”). Na teoria de entrelaçamento de fótons e elétrons, que da nossa perspectiva parecem ser entidades independentes, quando estes são vistos de uma perspectiva quadrimensional, eles são, de fato, o mesmo objeto. Quando pares de fótons estão entrelaçados, é possível alterar o estado de um fóton e instantaneamente alterar o outro fóton, mesmo que eles estejam separados por grandes distâncias. Essa possibilidade de comunicação instantânea não é, na verdade, uma transmissão de informação de um fóton para o outro. Na verdade, alterar um fóton entrelaçado em outro seria, em termos quadrimensionais, alterar um mesmo “corpo”. No caso dos discos e do toróide nas figuras acima, seria a possibilidade de se alterar um disco e imediatamente observar a alteração do outro. Essa alteração se daria, pois ao provocar uma interferência no disco estaríamos interferindo em todo o toróide e, por consequência, no outro disco.
habitante da esfera e fora como sendo o olhar “tridimensional” do observador externo), enfatizando-‐se a impossibilidade de comunicação total, será ampliada com a associação entre “caso inversão” e “caso mentiroso”. Esses casos serão abordados no fim deste capítulo, depois de apresentarmos os aspectos técnicos do sistema VOID e a última versão da obra, chamada de I/VOID/O.