Entender os híbridos para além dos termos de uma essência humana ou natural significa superar a homogeneidade dos polos e caminhar na direção de um mar de heterogeneidades. Da perspectiva da Constituição Moderna, se pensarmos as relações do humano com o não humano, mais especificamente o não humano como matéria mobilizada, a produção de quase-‐objetos também é movida, na perspectiva do humano, por um processo de purificação (com a purificação eu posso determinar que quantidades de humano e natureza eu posso misturar). Se recuperarmos o conceito de informação, tanto a mobilização de humanos como não humanos é entendida como fluxo de informação dentro de caixas-‐pretas e entre caixas-‐pretas. O que diferencia essas caixas-‐pretas é a maneira como cada uma processa a informação. Nessa economia de caixas-‐ pretas, existem algumas cujos mecanismos internos ainda não foram desvendados. Caixas-‐pretas poderiam ainda alterar o modo como reagem aos
inputs no tempo, a partir de processos de retroalimentação de informações, isto
é, uma informação-‐input altera o que é interno à caixa-‐preta que, por sua vez, retorna uma informação-‐output ao que lhe é externo. Essa informação altera também o que está fora da caixa-‐preta. O ciclo, a partir daí, pode se repetir, gerando uma cadeia de retroalimentações mútuas.
A informação enquanto concepção e mecanismo possibilitaria, ainda, o que chamamos de mapeamento (capítulo III): caixas-‐pretas se mapeiam, se traduzem entre si, se comunicam.
A possibilidade de um híbrido de se mapear em outro híbrido dependeria da compreensão de como a informação organiza e determina esses híbridos. Nesse sentido, os híbridos precisam deixar de ser híbridos para se tornarem entidades informacionais. Mas, como vimos com Turing e Goedel, essa modelação possui limitações intrínsecas que impedem uma formalização de certos aspectos do real. Portanto, o motor totalizante da ideia de informação não pode ser total, completo. Mas, como incorporar essa região obscura do real que compõe qualquer híbrido e que não é alcançável pela ideia de informação? Talvez essa seja uma tarefa impossível. Mas deveríamos buscar essa
incorporação? Ou a não incorporação dessa região seria o que poderia garantir a existência de acidentes, a impossibilidade de controle total?
Se invertêssemos o valor dessa região de problema para solução, poderíamos dizer que ela (essa região) é o que possibilita o híbrido: sua indeterminação impulsionaria heterogeneidades. O enfoque na indeterminação promoveria a passagem da compreensão da produção de híbridos a partir de uma grade de potenciais que se realiza em caixas-‐pretas para um campo de virtualidades que se atualiza. No entanto, como veremos, esse campo de virtualidades não é o lugar da indeterminação140.
A atualização do virtual se dá a partir da tensão de um campo de virtualidades de um híbrido em relação com o outro. Um híbrido, portanto, não deve ser visto isoladamente. Sua diferenciação sempre se dá na relação com o outro ou com seu meio. Um híbrido é, portanto, algo aberto, não absoluto, que está em constante hibridização. Mas como essa hibridização se opera? Como essa diferenciação em relação ao outro acontece? Como a região obscura do não modelável participa desse processo?
Embora resolver essa questão seja algo difícil, vamos utilizar alguns conceitos desenvolvidos por Simondon, Pierre Levy e Deleuze para minimamente sistematizarmos essa problemática. Esses conceitos promovem um deslocamento sutil da ideia de informação de Shannon e de Wiener, que entende a região obscura como uma caixa-‐preta cujos mecanismos ainda não foram modelados ou deduzidos, considerando-‐a parte fundante da diferença entre híbridos. No entanto, para que esses híbridos possam se alterar mutuamente, se comunicar e se diferenciar, seria preciso algum nível de equivalência e conexão entre eles. Para compreendermos melhor essa afirmação, precisamos entender certos conceitos elaborados por Simondon, entre eles: individuação, transdução, ressonância e metaestabilidade.
140 Ele já possui um grau de resolução (talvez o último nível antes da indeterminação total, como
veremos ao tratar do virtual em Deleuze). A região indeterminável, assim, não é domesticada sob a ideia de virtual. Mas ao definir o que é virtual, ela passa a existir como complemento e não como negação. Invertem-‐se os vetores.
Esses conceitos serão tratados enfatizando-‐se suas participações na construção da continuidade entre a técnica (manifestada no que ele chama de objeto-‐técnico) e o humano. Essa continuidade não pretende mapear um no outro ou estabelecer semelhanças essenciais. Pretende, no entanto, definir como um participa no outro, inclusive em suas respectivas ontogêneses141.
Para compreendermos essa influência mútua, vamos abordar o processo de individuação do objeto-‐técnico. Depois, analisaremos o mecanismo que propicia a individuação: a transdução.
Mas o que é um indivíduo? No nosso caso, como determinar os nós da rede de quase-‐objetos? Entendemos que a rede é um tecido contínuo no sentido de que cada nó exerce e sofre influência e, de certa forma, para que essas influências aconteçam, deve-‐se, de um lado, compreender-‐se como se dá a construção dessa continuidade entre nós da rede e, do outro, o que estabelece a individualidade do nó.
Inicialmente, podemos apontar uma certa contradição: se estamos falando em tecido contínuo, como podemos falar em indivíduos? Se mantivermos a ideia de indivíduo como entidades isoladas, essa questão é uma contradição. Precisamos, portanto, superar a ideia de indivíduo através do conceito de individuação.
Para Simondon, o indivíduo não é uma entidade acabada, mas sim um processo em andamento. Um indivíduo como uma entidade finalizada nunca seria atingido. Nesse sentido, deveríamos falar em individuação, ressaltando o caráter processual da existência dessa entidade em continua transformação ou, como diz Simondon, em continua (re)criação.
A individuação ainda pressuporia uma outra proposição: a inexistência de uma pré-‐forma, uma essência que se realiza e se torna tangível, dando forma à matéria. Com esse pressuposto, Simondon se contrapõe à ideia de hilemorfismo de Aristóteles, isto é, a dualidade entre forma e matéria. No hilemorfismo, a matéria é passiva, inerte e modelável, assumindo uma forma a
141 SIMONDON, G. L'individll et sa genese plzysicobiologiqlle .Grenoble: Editions Jerome
partir de uma essência (pura forma). Para Simondon, no entanto, a matéria não é completamente inerte, pois possui estruturas latentes, virtualidades que definirão, em conjunto com interferências que lhe são externas (entre elas, a forma pretendida), a direção que a modelação da matéria deverá assumir. Mas nesse processo de diferenciação da matéria, quem atua nela também sofre uma interferência. O que se teria seriam influências mútuas, relacionais,
“Usando “informar” no sentido forte de “informação” como não somente um sinal, mensagem ou série de bits, mas como um processo pelo qual algo é afetado ou modulado por uma outra coisa através de um processo de troca e comunicação.” 142
Assim, a forma não seria imposta externamente à matéria. Nos termos de Lévy, a transferência de uma forma para a matéria de maneira hilemórfica seria um processo de realização de uma forma potencial. No caso descrito acima, na definição de Simondon, teríamos a passagem de campos virtuais para entidades atuais, manifestas.
Continuando com a ideia de individuação: se o indivíduo deve ser entendido como processo de individuação, não devemos separá-‐lo do seu contexto. Assim, o indivíduo só pode ser definido em termos relativos, contrastando/separando-‐se ou conectando-‐se com seu milieu. Os processos de diferenciação em relação ao seu contexto, isto é, em relação ao(s) outro(s), é o que define o indivíduo em contínua individuação. A individuação é relacional e, como processo, compõe com a diferença. Assim, o processo de individuação, que promove a diferenciação, também promove a conexão com a diferença. O indivíduo só continuamente se constitui com a presença da diferença.
Mas a conexão com a diferença implica uma tradução ou, nos termos de Simondon, uma transdução. Somos informados pelo nosso contexto e o informamos. Mas esse processo de informação não deveria ser entendido como uma troca de informações entre caixas-‐pretas, como na cibernética. Nesta, como vimos, a informação é uma entidade autônoma que pode assumir qualquer
142 “Using “inform” in the strong sense of “information” as not just a signal or message or series
of bits, but as a process by which something is affected or modulated by something else through a process of interchange and communication.” SIMONDON, G. On the Mode of Existence of Technical Objects, Trans. by N. Mallahphy, London: University of Western Ontario, 1980. p. 66.
corpo. E nesse corpo ela permanece como informação. Ela pode até alterar esse corpo, modificando sua forma ou sua dinâmica. Mas ela permanece informação autônoma (ecoando aqui o hilemorfismo aristotélico), que pode ser extraída novamente na forma de outputs.
A transdução, como processo transformativo, concebe a informação de uma outra maneira: a informação seria a dinâmica de padrões/estruturas interna a um domínio/corpo/meio, e informar outros domínios/corpos e meios seria a contínua ressonância desses padrões. Cada meio possui especificidades materiais, estruturas e campos virtuais latentes que determinam quais padrões são “emitíveis” e, “no outro corpo”, como eles podem ressonar. Mas, além de operar entre o que é emitível e o que é receptível, a ressonância também transforma o que emite e o que recebe.
A ideia de transdução implica uma justaposição entre domínios/corpos e meios que se traduzem uns nos outros, sobrepondo e contaminando mutuamente seus padrões intrínsecos. Com a transdução, o meio deixa de ser caixa-‐preta que oferece inputs e outputs (informação pura, autonomizada, emitida e recebida via canais estabelecidos) para outras caixas-‐pretas para ser a contínua recriação da conexão e da separação.
Interpretando os conceitos de Simondon, Laymert G. Dos Santos143 pontua que
“o sinal de informação não é exclusivamente o que deve ser transmitido, mas também o que deve ser recebido. Mas tal significado não pode ser encontrado nem na saída nem na chegada: a informação só existe quando o emissor e o receptor do sinal formam um sistema, ela existe entre as duas metades de um sistema díspar até então. A informação é, portanto, uma aptidão integradora, uma singularidade através da qual uma energia até então potencial se realiza.” 144
Essa singularidade, assim, “ (...) é o germe que opera a passagem da dimensão virtual da realidade para a sua dimensão atual, possibilitando a individuação tanto de matéria quanto dos seres vivos e do objeto técnico.”145
Segundo Simondon, portanto, a transdução não seria apenas um
143 SANTOS. Politizar novas tecnologias. O impacto sócio-técnico da informação digital e genética.
Estética e Política. São Paulo: Editora 34, 2003.
144 Idem, p.85 145 Idem, p.86
processo exclusivo dos objetos. A transdução seria um processo mais amplo: ela ocorreria entre domínios físicos, biológicos, sociais e mentais. Fundamentalmente, ela indicaria como um domínio interfere no outro. O conceito de transdução, no entanto, não pretende definir e esgotar que padrões atuam e sofrem ações. Ao apontar que padrões materiais/tecnológicos sofrem influência de padrões mentais e vice-‐versa, o conceito de transdução constrói a possibilidade de justaposição, mostrando que os limites desses domínios se encontram difusos, se interpenetram, e com isso provocam mudanças nos próprios domínios, recriando-‐os, criando novos híbridos.
Em contraste com a Teoria da Informação146, a informação não modela o meio, dissipando influências indesejáveis não adequadas à forma pretendida. O ruído, essa influência indesejada, para a transdução é parte da estrutura do meio e, assim sendo, não é um fator a ser excluído, e sim um componente da energia potencial e estruturas desse meio. O ruído é parte do corpo e não seu resíduo. A informação, ao ser transmitida, contamina-‐se com o corpo. O que se transmite é o que um corpo (ou matéria) pode receber, em ressonância, do outro corpo. No caso do computador, chamamos essa propriedade do que pode ser transmitido e recebido de “consistência”. Nesse sentido, todas as condicionantes147 dos processos de recombinação da informação se submetem a essa consistência.
Ainda precisamos explicar como o processo de individuação via transdução é iniciado. Nesse sentido, Simondon define o conceito de metaestabilidade: o indivíduo que sofre transduções em seu processo de individuação seria metaestável. Um estado metaestável é um estado cheio de energia potencial que, com certos estímulos ou perturbações, pode deflagrar essa energia, gerando transformações.148 Como estado precedente ele é anterior até mesmo à ideia de estável e instável. Ele contém ambos em potência. Para
146 E sua apropriação pela Cibernética, como vimos no capítulo III, ao tratarmos da autonomia
da informação como input e output de uma caixa-‐preta.
147 Como vistas nos capítulos II e III: o que é possível de ser modelável matematicamente,
algoritmicamente, e que, por sua vez, obedece ao que é coerente dentro do computador.
148 É o estado, por exemplo, de água super pura que se mantém líquida mesmo abaixo de 0 °C.
Simondon, portanto, o estado que precede uma transformação, uma diferenciação no processo de individuação, é uma espécie de metaestabilidade. Esse estado define o pré-‐indivíduo, isto é, aquele que ainda não iniciou seu processo de individuação. Ao sofrer uma perturbação (interna ou externa), esse pré-‐indivíduo sai de seu estado metaestável, liberando as energias potenciais que continha.
Essas energias se atualizam se tornando tangíveis (materiais, por exemplo), respeitando estruturas ou campos virtuais condicionantes. A passagem do virtual para o atual não é, no entanto, a passagem de um estado de total indeterminação para um estado com mais resolução. O virtual já é um nível, talvez o que se sucede ao indeterminável, segundo Deleuze149, com diferenciações, ou, mais exatamente, com mecanismos diferenciadores. O mecanismo diferenciador, no entanto, não deve ser entendido como algo essencial, pois nem o próprio mecanismo permaneceria o mesmo durante o processo de diferenciação. Esse mecanismo não promove diferenciações sempre do mesmo modo. O próprio mecanismo se diferencia. Esses mecanismos, geradores de heterogeneidades, também ressonam entre si e entre as regiões onde operam. O que caracteriza, portanto, o virtual, é o seu princípio de mutação.
Cabe ressaltar que o estado de metaestabilidade é cíclico, se repete. Uma entidade em individuação é simultaneamente um indivíduo em relação ao pré-‐
149 Deleuze refere-‐se ao virtual como uma dimensão com nível de organização específico.
Deleuze busca qualificar essa especificidade comparando essa organização a certos modelos matemáticos. No livro “Lógica do Sentido”, Deleuze refere-‐se à “singularidades” e “campos vetoriais” para descrever os campos virtuais. Em outros momentos, Deleuze utiliza fenômenos físicos e químicos para descrever a passagem do virtual para o atual (por exemplo: a formação de cristais). A matematização do virtual e a utilização da Física e Química por Deleuze é abordada e interpretada por Manuel de Landa em seu livro Intensive Science & Virtual
Philosophy. Embora um tanto hermética para leitores sem conhecimentos relativos ao conteúdo
matemático, físico e químico, de Landa constrói um inventário dos paralelos acima mencionados, descrevendo minuciosamente os modelos matemáticos, físicos e químicos mobilizados por Deleuze. Optamos nessa tese em não recorrer à tais exemplos. Reduzimos e simplificamos aqui a idéia de virtual, ressaltando sua organização, sua estrutura, através da idéia de mecanismo diferenciador (que pode se alterar no tempo) explicando como este provoca ressonâncias em si mesmo e em outros campos virtuais ou outras regiões de um campo. Ressaltamos ainda que Deleuze considera o virtual a última fronteira com o indeterminável. A última fronteira passível de uma conceituação ou qualificação. Ver: DELEUZE, Gilles. Lógica do
indivíduo anterior, e também um pré-‐indivíduo em relação ao que virá a ser150. Sendo assim, um pré-‐indivíduo sempre está disponível para novas transformações. Em outras palavras, o pré-‐indivíduo seria ainda um indivíduo em excesso, pois contém um excesso de potencialidades. O pré-‐indivíduo é uma multiplicidade de latências ou um campo de virtualidades a ser atualizado no processo de individuação.
De certo modo, existe nessa abordagem uma inversão da ideia de homeostase, isto é, a busca pelo equilíbrio dos vários níveis entre si de uma entidade viva e o que lhe é externo. O vivo tornar-‐se-‐ia vivo através das contínuas desestabilizações que, por sua vez, são produtoras de diferenciações e individuações. A diferenciação é um desvio, e não a busca pelo retorno ao equilíbrio, a um estado mais organizado.