I.4 -‐ END(O)LOS
Se a vontade/ímpeto de transparência da superfície espelhada da esfera não pôde ser concretizada, à medida que eu incrementava meus conhecimentos sobre tecnologias digitais e programação, uma outra transparência começou a acontecer: os processos digitais até então obscuros, passaram a ser gradualmente “visualizáveis”: o controle do software em relação ao hardware, as funções computacionais controlando operações, as conversões A/D41 passaram a fazer parte de um entendimento da esfera que crescia gradualmente. Essa ampliação da visibilidade dos processos maquinais sensibilizou-‐me para a percepção de uma tensão contínua entre um universo analógico e um universo digital que não dizia respeito somente à contraposição simulação x fenômeno físico. As idas e vindas das traduções/conversões de um universo em relação ao outro (do analógico para o digital e vice-‐versa), que propiciavam, em última instância, a entrada na esfera, direcionavam tanto o campo teórico como o empírico para uma investigação das características intrínsecas de cada um desses universos.
Com o andamento dos experimentos com o modelo físico foi-‐se abandonando a preocupação de uma sistematização do que poderíamos chamar de banco de dados dinâmico do “Spherical Spaces” inspirado nos fenômenos da esfera. O foco foi deslocado para a esfera física e para os processos de conversões “A/D” citados acima. Assim, os fenômenos observados apontavam para uma ênfase na exploração visual via câmera como algo a ser incorporado como parte da própria interface final e não apenas como referencial a ser remodelado virtualmente, como acontecia no projeto Spherical Space.
O componente visual se mostrou tão forte que passou a ser o protagonista da história. E, talvez, mais importante ainda: ficou claro que a observação do espaço interno da esfera era uma criação contínua da interface, isto é, ao observar (via criação de meios de observação), eu estava interferindo
no fenômeno observado. E mais: eu, na verdade, estava observando o próprio ato de observar.
Uma outra camada de significação (metafórica) foi adicionada ao se associar a leitura de “idade da imagem/passado”42 específica da esfera espelhada com a ideia de memória, de como experimentamos nossas lembranças. A intenção era mostrar que as memórias se recriam quando nos lembramos delas, quando as “observamos”. O produto desse processo foi apresentado como trabalho final da disciplina “Generative Systems”. Seguindo o formato já utilizado, vamos apresentá-‐lo aqui em citações, seguidas de comentários.
End(o)Los: “Uma endoscopia dentro de memórias: a busca pela excentricidade” 43
Fig. I-‐3: Projeto End(o)los, estudo número dois
“Quando visitamos nossas memórias, nós também somos visíveis para elas. Como observadores, transformamos o observado, interferindo constantemente em nossa realidade interna.”
42 As imagens refletidas maiores em espelhos planos são mais “novas” que as imagens menores.
No espelho côncavo, essa diferença não acontece: justapõe-‐se presente e passado, imagens novas sobre imagens antigas e vice-‐versa.
“O projeto end(o)los é um atualização do projeto Spherical Spaces que, por sua vez, atualizou o projeto inicial Kaleidoscope Universe. End(o)los é um modelo físico (uma esfera espelhada internamente, que possui uma câmera, microfone e duas caixas de som. A câmera e o microfone propiciam a captura de imagens e sons de dentro da esfera. Maiores detalhes serão mostrados na descrição técnica) que modela e representa o momento da observação e sua interferência no objeto observado. Nesse momento, observador e observado se situam simetricamente em relação um ao outro. O que os separa é a interface. Nesse projeto, o objeto observado poderia ser entendido como nossa própria memória: as imagens de nós mesmos (no caso, o reflexo da câmera e do microfone) refletida no espelho. Essas imagens, portanto, são imagens do passado. A rigor, o presente seria a própria superfície espelhada. Mas esta é invisível e dela só podemos ver seus rastros (os reflexos). A superfície é o próprio presente, e como tal, é parte estrutural da interface: algo que se situa entre as imagens de nós mesmos e nós mesmos. Nesse sentido, somos totalmente rodeados pela interface (essa superfície que agencia passados), que modela, estrutura e fundamenta a realidade. Quando observamos esses reflexos, também os criamos. E o que é criado respeita e obedece às regras da interface.”
Nessa fase, podemos ver a tentativa de se associar uma questão temporal das imagens refletidas com a ideia de memória. Elabora-‐se a noção de um passado que se remodela ao ser observado (lembrado), e de um presente fugaz, inalcançável. No entanto, podemos ressaltar como mais importante a utilização de um sentido estrutural da interface: o espelho, em conjunto com a prótese, determina o que vemos. E, nesse ponto, inaugura-‐se uma espécie de retroalimentação metalinguística: o que se observa é aquilo que determina o que é observável, isto é, a própria interface.
“Em termos técnicos, o projeto end(o)los é a realização de um sistema analógico complementado por componentes digitais: um conversor A/D (analógico/digital). Essa máquina digital (uma composição entre hardware e softwares computacionais) trabalhará coletando informações sobre o interior da esfera (através de duas próteses, como mostra a figura 3). As imagens capturam os reflexos no espelho e o som explora a microfonia causada pela orientação entre o microfone móvel e as caixas de som.”
Em end(o)los inaugura-‐se uma outra dimensão da interface: a sonora. Ela passa a se justapor à dimensão visual, possibilitando a criação de interferências entre a movimentação da prótese e a qualidade da imagem capturada. Embora ainda muito primariamente, estudos (via software
ISADORA44) que indexavam parâmetros sonoros (variação de frequência e amplitude) a certos parâmetros da imagem (brilho, contraste e cor) mostravam que a percepção da ideia de observação como criação poderia ser intensificada com a ampliação da interferência (propiciada pela indexação de parâmetros) da movimentação em relação ao que se observava via prótese.
“Essas informações coletadas são relativas a um ambiente extremamente simétrico, cujas principais características são: simultaneidade, relação entre luz e tempo, continuidade entre tempo e espaço, universo não discreto e que se mostra como uma metáfora visível de um espaço n-‐dimensional.”
A afirmação que diz que esse espaço é de uma extrema simetria só é válida se pensarmos na esfera espelhada não sendo observada internamente. Qualquer interferência, ou presença, nesse espaço interno, causa uma quebra de simetria. Assim sendo, poderíamos dizer que uma observação interfere na esfera, quebrando sua simetria original.
“Essas características são acionadas por uma fonte de luz acoplada a uma fonte sonora, cuja posição é variável. Uma imensa tensão deverá surgir da relação da máquina digital com a esfera, algo completamente analógico e contínuo, que é constantemente discretizado (via digitalização dos sinais analógicos). Essa tentativa de captura dos fenômenos sonoros e luminosos, traduzindo-‐os para informações digitais, fornecerá o material binário que será manipulado posteriormente em “sistemas generativos”45.
Essa manipulação (feita pela programação da máquina discreta e pela operação de softwares) deverá ser guiada pela lógica da simetria46 observada dentro da esfera.”
Esse trabalho final foi selecionado para a exposição BLUE RODEO, em 2002, em que artistas residentes da casa de cultura Podewil, em Berlim, expunham anualmente seus trabalhos. O projeto End(o)los sofreu uma nova transformação, em que a metáfora da “memória” foi substituída pela metáfora do “sonho”. Passou então a se chamar M(n)EMO. Essa metáfora foi escolhida, pois, na ocasião, me instigavam as questões físicas dos limites entre energia e
44 Software de programação de vídeo e áudio (www.troikatronix.com)
45 Sistemas que possuem um certo nível de autonomia, isto é, a partir de certas regras iniciais,
são capazes de produzir novas regras e se auto-‐organizar continuamente.
46 A rigor, como constatado posteriormente, deveríamos dizer pela “lógica da quebra de
matéria e, mais especificamente, entre pensamento e matéria. A partir dessas questões, surgiu a seguinte pergunta:
“Imagine que um dia tudo (o mundo e até mesmo todas as partículas do seu próprio corpo) se inverteu (o lado esquerdo moveu-se para o direito e vice-versa, respeitando um eixo de simetria orientado pelo eixo de simetria do seu corpo) logo antes de você acordar. Você perceberia a diferença depois de acordar?”
Essa pergunta relacionava-‐se, de certa forma, com a desorientação durante a navegação interna à esfera: os paradoxos espaciais causavam uma ruptura entre o que se esperava ver e o que realmente se via47.
Além da alteração da metáfora, foi introduzida uma nova camada justaposta às imagens capturadas pela câmera. Essa camada era composta por imagens gravadas de vídeo, que faziam parte de um banco de imagens que eram acionadas e tornadas visíveis pela movimentação da prótese48. Essa justaposição buscava compor paisagens oníricas, difusas, que eram descobertas/criadas pelo interator em seu processo de escaneamento do sonho de alguém.