As operações de mediação e purificação acontecem em uma região entre os polos natureza-‐cultura: o “Império do Centro”. Esse império e os híbridos que o habitam deveriam permanecer invisíveis para que a própria Constituição Moderna se mantivesse:
“Os modernos sabiam muito bem como pensar este Império. Faziam com que desaparecesse através da limpeza e negação. Cada vez que o trabalho de mediação era concluído, o trabalho de purificação começava. Todos os quase-‐objetos, todos os híbridos eram concebidos como uma mistura de formas puras. As explicações modernas consistiam, portanto, em clivar os mistos para deles extrair o que era proveniente do sujeito (ou do social) e o que era proveniente do objeto. Em seguida, os intermediários eram multiplicados para que sua unidade fosse recomposta através da mistura das formas puras. Estes processos de análise e de síntese, portanto, tinham sempre três aspectos: uma purificação prévia, uma separação fracionada, uma nova mistura progressiva. A explicação crítica partia sempre dos dois pólos e se dirigia para o meio, inicialmente ponto de clivagem e depois ponto de encontro dos recursos opostos. Desta forma o meio era mantido e abolido ao mesmo tempo.132
Assim, além de garantir a invisibilidade do Império do Centro, da imanência da natureza e da transcendência da sociedade/natureza, os mecanismos de mediação e purificação se complementavam na tarefa de multiplicar os híbridos. Mas os híbridos deveriam permanecer como entidades provisórias, intermediários entre os polos, esperando a operação de purificação. E essa purificação, por sua vez, deveria propiciar uma nova rodada de
mediações ou misturas, deixando claro que as misturas são composições entre os polos puros. Essa composição garante ainda que esses polos atuem um sobre o outro sem perder o status que a Constituição Moderna lhes confere:
“Serão necessários muitos outros autores, muitas outras instituições, muitos outros regulamentos para completar este movimento esboçado pela disputa exemplar de Hobbes e Boyle. Mas a estrutura do conjunto pode ser, agora, facilmente captada: estas três grandes visões de conjunto irão permitir a mudança de escala dos modernos. Estes poderão fazer com que a natureza intervenha em todos os pontos na construção de suas sociedades sem deixar, com isso, de atribuir-‐lhe sua transcendência radical; poderão tornar-‐se os únicos atores de seu próprio destino político sem deixar, com isso, de sustentar sua sociedade através da mobilização da natureza. De um lado, a transcendência da natureza não irá impedir sua imanência social; do outro, a imanência do social não irá impedir o Leviatã de continuar a ser transcendente. É preciso confessar que é uma bela construção, que permite fazer tudo sem estar limitado por nada. Não é de se estranhar que esta Constituição tenha permitido, como se dizia outrora, ‘liberar algumas forças produtivas’...”133
Essa atuação de um polo sobre o outro só é possível porque existem os intermediários (os híbridos não reconhecidos como tal). Estes promovem a ligação entre os polos. Mas o fazem de maneira precária:
“Na perspectiva moderna, a natureza e a sociedade permitem a explicação porque elas, em si, não precisam ser explicadas. Existem, é claro, os intermediários cujo papel é justamente o de criar uma ligação entre as duas, mas estes só podem criar as ligações porque, justamente, não possuem qualquer dignidade ontológica. Nada fazem além de transportar, veicular, deslocar a potência dos dois únicos seres reais, natureza e sociedade. Claro, podem transportar mal, podem ser infiéis ou obtusos. Mas esta falta de fidelidade não lhes dá nenhuma importância própria, uma vez que é ela quem prova, pelo contrário, seu estatuto de intermediário. Eles não possuem competência original. Na pior das hipóteses, são bestas ou escravos, e na melhor, servidores leais.”134
Latour propõe uma revisão dessa composição de maneira a tornar visíveis os processos de mediação e purificação. Essa revisão mudaria os status dos quase-‐objetos: eles passariam de intermediários a mediadores: em vez de sofrer um processo de purificação, deveriam ser vistos como atores que
133 Idem, p.38. 134 Idem, p.79.
redefiniriam continuamente o que entendemos por natureza e cultura. Mas como operar essa mudança?
“Mas como modificar o princípio de classificação dos seres? Como dar às multidões ilegítimas uma representação, uma linhagem, um estado civil? Como explorar esta terra incógnita que, entretanto, nos é tão familiar? Como ir do mundo dos objetos ou dos sujeitos àquilo que chamei de quase-‐ objetos ou quase-‐sujeitos? Como passar da natureza transcendente/imanente a esta natureza, igualmente real, mas extraída do laboratório e depois transformada em realidade exterior? Como deslizar da sociedade imanente/transcendente rumo aos coletivos de humanos e de não-‐humanos? Como passar do Deus suprimido transcendente/imanente ao Deus das origens que talvez fosse preciso denominar Deus de baixo? Como atingir as redes, estes seres de topologia tão curiosa e de ontologia ainda mais estranha, nos quais residem as capacidades de conectar e de separar, ou seja, de produzir o espaço e o tempo? Como pensar o Império do Centro?”135
Latour propõe que abordemos o Império do Centro como um ponto de partida (e não como ponto de clivagem e encontro). Com isso, ao olharmos para os quase-‐objetos e demais misturas geradas na região entre os polos, não os explicaríamos como resultado de um movimento dos polos para o centro, mas sim como o inverso: do centro para os extremos. Esses extremos não seriam mais o apoio para as explicações sobre a realidade. Passariam a ser resultados parciais e provisórios:
“Não precisamos apoiar nossas explicações nestas duas formas puras, o objeto ou o sujeito-‐sociedade, já que elas são, ao contrário, resultados parciais e purificados da prática central, a única que nos interessa. São produto do craking purificador, e não sua matéria-‐prima. A natureza gira, de fato, mas não ao redor do sujeito-‐sociedade. Ela gira em torno do coletivo produtor de coisas e de homens. O sujeito gira, de fato, mas não em torno da natureza. Ele é obtido a partir do coletivo produtor de homens e de coisas. O Império do Centro se encontra, enfim, representado. As naturezas e sociedades são os seus satélites”.136
Os intermediários passariam de mediadores, de servos que conduzem precariamente os polos, para agentes que transformam o que transportam:
135 Idem, p.98. 136 Idem, p.78.
“Natureza e sociedade não são mais os termos explicativos, mas sim
aquilo que requer uma explicação conjunta (Latour, 1989a). Ao redor do trabalho da bomba se forma um novo Boyle, uma nova natureza, uma nova teologia dos milagres, uma nova sociabilidade científica, uma nova sociedade que incluirá, a partir de agora, o vácuo, os cientistas e o laboratório. Não iremos mais explicar a inovação da bomba de ar mergulhando alternadamente a mão nas duas urnas da natureza e da sociedade. Pelo contrário, iremos encher estas urnas ou, ao menos, modificaremos profundamente seu conteúdo. A natureza vai sair mudada do laboratório de Boyle, e também a sociedade inglesa, mas tanto Boyle quanto Hobbes irão mudar também. Tais metamorfoses são incompreensíveis se eternamente existirem apenas dois seres, natureza e sociedade, ou se a primeira permanece eterna enquanto a segunda é agitada pela história. Estas metamorfoses, no entanto, tornam-‐se explicáveis se redistribuirmos a essência por todos os seres que compõem esta história. Mas então eles deixam de ser simples intermediários mais ou menos fiéis. Tornam-‐se mediadores, ou seja, atores dotados da capacidade de traduzir aquilo que eles transportam, de redefini-‐lo, desdobrá-‐lo, e também de traí-‐ lo. Os servos tornaram-‐se cidadãos livres.”137
Mas o que os híbridos, os quase-‐objetos, tem a ver com a técnica? Para Latour, a técnica seria eficiente, não por conseguir instrumentalizar o social ou tornar a natureza (e o social, indiretamente) um recurso disponível. A técnica seria eficiente, pois multiplica os não humanos mobilizados na construção de coletivos. A técnica também propiciaria uma aproximação entre os seres desses coletivos e, assim, se caracteriza como um fator hibridizante e aglutinante. Ainda segundo o autor:
“As ciências e as técnicas não são notáveis por serem verdadeiras ou eficazes — estas propriedades lhes são fornecidas por acréscimo e por razões outras que não as dos epistemólogos —, mas sim porque multiplicam os não-‐humanos envolvidos na construção dos coletivos e porque tornam mais íntima a comunidade que formamos com estes seres. É a extensão da espiral, a amplitude dos envolvimentos que irá suscitar a distância cada vez maior onde irá recrutar estes seres que caracterizam as ciências modernas e não algum corte epistemológico que romperia de uma vez por todas com seu passado pré-‐científico. Os saberes e os poderes modernos não são diferentes porque escapam à tirania do social, mas porque acrescentam muito mais híbridos a fim de recompor o laço social e de aumentar ainda mais sua escala. Não apenas a bomba de vácuo, mas também os micróbios, a eletricidade, os átomos, as estrelas, as equações de segundo grau, os autômatos e os robôs, os moinhos e os pistões, o inconsciente e os neurotransmissores. A cada vez, uma nova tradução de quase-‐objetos reinicia a redefinição do corpo social, tanto dos sujeitos quanto dos objetos. As ciências e as técnicas, em nossa sociedade, não a refletem, assim como a natureza não reflete
as estruturas sociais nas outras. Não se trata de um jogo de espelhos. Trata-‐se de construir os próprios coletivos em escalas cada vez maiores. É verdade que há diferenças de tamanho. Não há diferenças de natureza — e menos ainda de cultura.”138
A máquina, uma das formas de aparição da “técnica”, é vista pela Constituição Moderna como sendo fruto de purificações, e o que gera são entidades purificadas.
A máquina, e aquilo que ela produz, é uma espécie de materialização e constatação de uma natureza dominada, reconstruída. O próprio universo já foi entendido com um relógio. Assim, a máquina, quando vista dessa maneira, sofreu uma purificação que limpou dela aspectos humanos.
Uma outra leitura, uma crítica da Constituição Moderna, pode ver na máquina uma reorganização da natureza com a intenção de transformá-‐la e ao homem que a opera em recursos. Recurso é mais uma modalidade de natureza reconstruída. Essa denúncia enfatiza a purificação da máquina em natureza novamente. Uma natureza “artificializada”. E a denúncia deve garantir que o homem (puro) não se contamine com essa natureza tecnicizada, carregada de interesses instrumentalizantes.
Mas, como mostra Latour, a purificação nunca se completa ou se concretiza plenamente. Ela seria somente projeto, pois ao produzir quase-‐ objetos, estaria inserindo esses quase-‐objetos em redes. Essas redes, que conectam e separam, são hibridizantes. Os quase-‐objetos não são entidades isoladas. Sua aparição, ao contrário do que a purificação faz crer, não é um processo de destilação, e sim de contaminação.
Poderíamos aproximar essa ideia de purificação a um processo de realização de uma essência potencial: a essência (natureza ou cultura) se torna gradativamente aparente, lapidada. Com a transformação desse processo de purificação em mediação, a aparição é um processo de atualização: o próprio processo de aparição cria o quase-‐objeto, pois este é tensionado, enquanto se torna tangível, na direção da rede que o envolve e que o penetra, que o constitui
e é constituída por ele. Sua aparição é um transporte, é uma transmissão por onde passa a rede. E essa rede se transforma durante esse processo.139
Uma outra reação crítica apontada por Latour como uma estratégia de entender os híbridos não como formados por frações de natureza e cultura, foi a que ele chamou de vertente semiótica: nessa vertente, o híbrido é um intermediário entre polos distantes, tão distantes que não podem ser mais avistados.
O que sobra é o próprio intermediário que, no caso da vertente semiótica, é a linguagem. A linguagem, vista dessa maneira, deixa de ser um intermediário transparente, naturalizado, que coloca o sujeito humano em contato com o mundo natural, passando a ser um intermediário independente da sociedade e da natureza.
Essa abordagem realiza um processo de purificação análogo à purificação moderna, que tornava os híbridos simples intermediários entre cultura e natureza, mas, ao invés de tornar o híbrido algo formado por frações entre cultura e natureza, o torna algo que é formado apenas por linguagem. E essa linguagem, de forma totalizante, acaba por se espalhar em direção aos polos, passando a definir natureza e cultura em seus termos. Mas a linguagem dos semióticos não é uma linguagem de várias linguagens (visuais, escritas, sonoras, etc.). Existe o predomínio da linguagem escrita enquanto paradigma. Dessa maneira, tudo passa a ser entendido como um texto, significante e significado e estruturas gramaticais e, assim, deixa de ser necessária a distinção do híbrido em termos de natureza ou sociedade. A linguagem ocupa o centro onde os híbridos proliferam, e também os polos. Sociedade e natureza são reduzidas e desrealizadas, tornando-‐se significantes cujos significados, secundários e quase irrelevantes, devem ser dados pelo homem.
Essa vertente linguística pode englobar vários campos das humanidades: semiologia, semiótica, estruturalismo, pós-‐estruturalismo, como aponta Latour.
Mas, como vimos na Teoria da Informação, a autonomia da linguagem e principalmente do significante também se encontra representada pela
139 Esse processo de atualização será desenvolvido quando tratarmos do conceito de
autonomia da “informação”. E lá, talvez, a linguagem encontre seu estado mais “puro”, pois é destilada apenas em significante. Um significante modelado da maneira mais econômica: o bit.
Essa informação, destilada a partir do mundo, explica tanto o humano quanto o não humano, negando seus corpos (informação sem corpo e corpo como informação). Como tal, isto é, autônoma em relação aos polos, ela pode transitar entre corpos e também organizar novos corpos. Na informação, natureza e humano se reencontram e se igualam.
No entanto, ao transformar homens e natureza em informação, ela potencializa a mistura, pois estabelece o ponto de conexão entre o que se considerava separado. Mas, como o resultado dessa operação é entendido também como linguagem, a informação acaba por homogeneizar a diversidade dos híbridos. Do ponto em que nos encontramos nesta tese, podemos olhar para o capítulo II – “Construindo o espelho” – como um relato desse processo de purificação ou, como veremos a seguir, como um processo de potencialização.