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O caso da população cigana de Évora e a relação com a habitação social

PARTE I – Enquadramento Teórico

Capitulo 3 Os ciganos de Évora

3.2. O caso da população cigana de Évora e a relação com a habitação social

O realojamento dos primeiros ciganos em habitação social teve o seu início no final da década de 70, no âmbito das políticas de habitação, com o objetivo de por cobro à falta de habitação na cidade devido ao êxodo de populações rurais e outras, oriundas das antigas colónias portuguesas, como aliás, acontecia em outras cidades do país. Estas políticas apareceram na esfera da construção de um Estado-providência, à imagem do que vinha sucedendo noutros países europeus. A partir de 1961, com a assinatura da Carta Social Europeia criada pelo Conselho da Europa, as preocupações sociais ganharam maior relevo. Com a assinatura desta Carta e a sua entrada em vigor em 1965, os direitos sociais foram consagrados e os países membros comprometeram-se a respeitar e garantir um conjunto de direitos nos quais se contavam a reabilitação e realojamento (Pereirinha, 2008).

Em Évora, foram criadas infraestruturas próprias para acolhimento destas populações, nomeadamente: o Bairro da Cruz da Picada concluído em 1977, com 479 fogos e entregues na sua totalidade ao FFH (Simplício, 2009) e o Bairro da Malagueira projetado pelo conhecido arquiteto Álvaro Siza Vieira. Este último após a construção em 1982 foi processando de forma mais ou menos faseada o realojando e ocupação dos fogos. O projeto foi entregue a duas cooperativas locais que se encarregaram da construção a custos controlados, uma pequena parte dos lotes foi entregue a particulares e 400 fogos foram destinados para fins de habitação social. Numa primeira fase de realojamento, foram ocupados os fogos entregues ao FFH, dando lugar mais tarde ao IGAPHE, entidades gestoras da habitação social em Évora na altura (CME, 2012, nº 11, p. 4).20

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Para enquadramento da situação das famílias ciganas realojadas em habitação social, foi solicitada autorização para consulta e análise aos registos e arquivos da Habévora E.M., no entanto, essa possibilidade não foi autorizada pela direção da empresa.

64 De entre os que beneficiaram de arrendamento em habitação social contavam-se algumas famílias ciganas (Correia, 2013, p. 243), que se encontravam já fixadas na cidade, a residir em tendas e construções abarracadas, ocupando espaços públicos em vários locais da cidade. Não se pode precisar o número de famílias ciganas realojadas nestes dois bairros, nem as datas do seu realojamento, contudo, sabe-se que o seu realojamento surgiu logo desde os primeiros momentos. Ainda assim, nos anos seguintes e até à construção de outras habitações, ao abrigo do PER já em 2004, nunca deixaram de existir pessoas ciganas albergadas em barracas nas imediações da cidade, nomeadamente no Bairro da Casinha, na zona sul da cidade (Sama, 2010; Correia, 2013).

Atualmente sabe-se que apenas 8% dos fogos disponíveis para habitação social estão ocupados por famílias ciganas21 (de um total de cerca de 960 fogos propriedade da Câmara Municipal de Évora).

No que se refere à satisfação com a habitação, Castro (1994) conduziu uma pesquisa sobre os ciganos realojados no Bairro da Malagueira e constata que os moradores se mostravam bastante satisfeitos com o realojamento, evidenciavam os aspetos positivos da mudança alcançadas nas suas vidas com realojamento naquele bairro. Nas conclusões deste trabalho a autora refere existirem

“sinais de pertença ao bairro - manifestada pala afetividade que mantêm com o espaço do bairro e pelo sentimento que demonstram pela especificidade nas suas formas de apropriação e no relacionamento com os outros.”

(Castro, 1994, p.104).

Não obstante os indícios positivos destas presenças no bairro, recorde-se que este estudo foi efetuado muitos anos volvidos após os realojamentos e que o tempo já havia produzido novas formas adaptativas de apropriação dos espaços. Ainda assim, a autora refere alguns fatores de constrangimento à adaptação, como a itinerância, que surge ao longo dos percursos identificados ainda que para preencher as função económicas e sociais. Refere ainda alguns comportamentos entendidos como desajustados ao meio, relacionados com a autonomia e liberdade de movimentos que se manifestava ao nível da organização do tempo e dos espaços. São exemplo disso a inexistência de horários rígidos, a rua como

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65 prolongamento do alojamento, a utilização do fogo, os usos feitos dos espaços exteriores, tal como procedia num modo de vida itinerante mesmo após os realojamentos. Talvez por estas razões a autora refira que as forças de produção e apropriação dos espaços parecem ter ficado aquém das previstas ou desejadas pelas ações de realojamento. Não admira portanto, que a opinião da entidade gestora da habitação social sobre o realojamento de pessoas ciganas neste bairro seja curiosamente contrária à dos próprios. Na revista periódica Évora Mosaico, produzida pela Camara Municipal de Évora (2012), as famílias ciganas são responsabilizadas pela degradação acelerada das habitações e ainda pelos conflitos que surgiram na sequência do seu realojamento nesse bairro:

“Por outro lado, a primitiva inadaptação da etnia cigana a tal tipo de habitação provocou a inadequação do seu uso e o aparecimento de conflitos vários com a restante população.” (CME, 2012, nº 11, p. 5).

A expressividade demonstrada e difundida pelos canais de comunicação da CME, à data, sobre o impacto destes realojamentos é representativa da opinião negativa que se generalizou ao longo dos anos sobre o realojamento de pessoas ciganas, baseada em pressupostos de inadaptabilidade ao espaço e conflitualidade com a população maioritária. No ano de 2018 foram realojadas quatro famílias ciganas em habitação social, provenientes de acampamentos. Estes realojamentos têm sido encarados com forte contestação por parte da população residente, inclusivamente por parte dos outros ciganos já radicados nos bairros há mais tempo. Conforme tenho podido observar o sentimento de ameaça é sentido por ambas as partes. No que respeita à população local, tem sido demonstrado um desconforto pela presença destes novos moradores, as queixas revestem-se de enorme cariz discriminatório e em grande parte das vezes revelam-se infundadas. Numa reunião solicitada pelos moradores de um dos bairros onde foram realojadas famílias ciganas proveniente de acampamentos, que contou com a presença do Presidente da Junta de Freguesia e a Vereadora responsável pelo Pelouro da Educação e Intervenção Social da CME, realizada já no início de 2019, os moradores davam conta dos prejuízos para o bairro que advieram do realojamento destas famílias. Nessa reunião foi elencado um conjunto de comportamentos “antissociais” atribuídos a estas famílias onde se destacava “a falta de

educação”, a “falta de higiene”, a “destruição de equipamentos urbanos”, a “utilização de armas”, entre outros.

66 Por parte das famílias recentemente realojadas cresce o medo da reação das pessoas às suas ações e denota-se já uma certa aversão ao bairro. Este fenómeno é encarado pelos residentes locais como a justificativa que necessitam para acusar a empresa gestora da habitação social de fazer realojamentos desajustados e reconhecerem nos próprios ciganos uma preferência pela itinerância como modo de vida. Ao longo dos últimos meses tem-se presenciado um clima de tensão e incómodo que ecoa por toda a cidade, não apenas entre os populares como também entre os profissionais de instituições com responsabilidade social.

Tal como acontece em alguns concelhos, cuja seleção de terrenos para a futura localização de novos empreendimentos de habitação social parece ficar condicionada pelo “alarme social” gerado em torno de uma eventual vizinhança com ciganos, gerando rumores e produzindo o efeito de contágio sobretudo em lugares de dimensão reduzida (Castro, 2012, p.110; Medinas, 2018, p. 100).

O não acesso a habitação destas pessoas pode estar muito relacionado com um conjunto de factos circunstanciais e elementos transcendentais aos mesmos, que os desprotegem, contribuindo para o agravamento da vulnerabilidade e exclusão social, aumentando as desigualdades sociais e dificultando o exercício dos seus direitos de cidadania (Conselho da Europa, 2010, Mendes, 2007; referidos por Mendes, Magano & Candeias, 2014).