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Entre a itinerância (forçada) e a sedentarização

PARTE I – Enquadramento Teórico

Capítulo 2 Os ciganos em Portugal

2.3. Entre a itinerância (forçada) e a sedentarização

Num estudo realizado por Duarte et al. (2001) constatou-se que os traços negativos associados aos ciganos “nómadas” tendem a ser mais marcantes. As pessoas não ciganas que responderam a entrevistas14 para este estudo reconhecem os ciganos sedentarizados como mais “evoluídos” e “sociáveis”. Em contrapartida apontam características como a falta de cuidado com os espaços que ocupam e a falta de higiene pessoal aos ciganos “nómadas”. No entanto, no mesmo estudo, as pessoas entrevistadas identificaram a itinerância como um traço cultural subjacente a toda a comunidade cigana, independentemente do grau de fixação ao território (Duarte et al., 2001, p.p. 81-83).

Castro (2004) através de inquérito enviado às câmaras municipais optou de forma intencional pela não explicação do que se entendia por “itinerância” por se pretender

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Foram entrevistadas para este estudo, pessoas não ciganas em espaços de copresença (espaços residencial, profissional e ocasional) com comunidades ciganas.

49 justamente captar as representações subjacentes a esta noção. Pelos resultados obtidos constatou-se que os entendimentos divergem muito de município para município (Castro, 2004, pp. 58-59). Ainda segundo esta autora, na prática, os termos que se utilizam para definir a relação com o território correm sérios riscos de não traduzirem a realidade efetiva quanto ao estilo de vida das famílias ciganas. Isto acontece por que a dinâmica familiar e particular de cada grupo pode oscilar entre a itinerância e o sedentarismo. A relação entre estes dois conceitos não implica (entre as famílias ciganas) que se dê uma transição evolutiva do primeiro para o segundo sem hipóteses de retorno. Isto significa que um grupo familiar pode oscilar entre períodos de deslocações frequentes e períodos de fixação mais ou menos prolongados, sendo que as razões para tal são também diversificadas, repartindo-se entre fatores endógenos e exógenos do seu quotidiano ou contexto familiar, como veremos a seguir (Castro, 2006, p. 6). A questão que se levanta aos conceitos de “itinerante” e “sedentarizado”, no que respeita aos ciganos enquanto objeto de estudo, é exatamente a diversidade de posicionamentos no que respeita ao seu conceito e significado. Por um lado existe uma tendência generalizada para a colocação de cada um destes conceitos em polos opostos, distintos e distantes, fazendo uma separação entre os ciganos que se encontram fixos a um território e os que revelam uma condição de vida nómada. Por outro lado, os dois conceitos apresentam-se de forma confusa e subjetiva, cujas fronteiras se cruzam e transcendem (Castro, 2006, p. 2).

A análise das questões da habitação das pessoas ciganas implica considerar as formas de mobilidade espacial e a relação com os territórios por onde circulam. Acontece frequentemente haver uma representação generalizada (também nas entidades públicas), de que as pessoas ciganas “escolhem” um tipo de vida itinerante, e de que não terão raízes em parte certa, optando por viajar entre territórios. Afirmações como “a itinerância é o

elemento fundamental de organização cigana”, “a coesão familiar é possível graças à itinerância”, “a viagem é fundamental para o sentido identitário cigano” legitima uma

certa desresponsabilização das entidades locais na procura de resoluções para o problema dos ciganos desalojados imputando uma certa “naturalização” às situações detetadas. Sob esta linha de pensamento a itinerância é vista como uma forma de rejeição à sedentarização, colocando-se a tónica do lado dos próprios visados e não das questões estruturais que impedem o acesso a direitos fundamentais entre os quais se encontra a habitação (Castro, 2006, p. 3)

50 Pese embora o conhecimento por parte do poder local que o acesso a uma habitação condigna (que implica a fixação das pessoas a um território) é um fator essencial para a sua integração15, grande parte das entidades assumem uma postura implícita que revela padecerem da síndrome de NIMBY (Not In My Back Yard). Isto significa que, embora sejam criadas estratégias e assumidos compromissos que visam o realojamento dos ciganos, implicitamente prevalece a vontade que tal situação se cumpra longe das vistas e dos domínios que se consideram seus (Castro, 2006, p. 3).

Assente na ideia generalizada e enraizada no passado, de que os ciganos itinerantes não podem permanecer mais do que 24/48 horas num mesmo território considerado público, tomam-se medidas, por parte das entidades locais, preventivas à sua fixação e põem-se em prática habitualmente pelos municípios e pela Guarda Nacional Republicana (GNR). É exercida uma vigilância mais ou menos discreta sobre estas famílias a fim de perceberem a finalidade da visita e monitorizarem os seus movimentos. Estes procedimentos desajustados e sem enquadramento legal são aplicados com naturalidade e frequência. Neste mesmo estudo, onde foram contactadas 66 câmaras municipais, metade destas admitiram tomar medidas repressivas à entrada de ciganos, ou em articulação com a GNR, ou através dos seus próprios serviços de fiscalização. 15% das autarquias refere que a curta permanência dos ciganos não necessita de grande intervenção, isto implica desde logo que a permanências destas pessoas será curta. 20% das câmaras inquiridas refere não tomar medidas quanto à entrada e permanência de ciganos, salvo se os mesmos criarem situações conflituosas entre si ou com os residentes locais, pressupondo-se já uma responsabilização dos mesmo em situações como as descritas. Esta postura por parte das entidades públicas torna claro o repúdio pela itinerância dos ciganos. É, portanto, compreensível que na realização de estudos, as respostas obtidas apresentem uma forte tendência para subestimar a sua existência (Castro, 2006, p. 4).

Castro identifica três leituras subjacentes a este comportamento por parte das autarquias. Por um lado, a interpretação das estratégias de fixação dos ciganos a um determinado espaço como uma ocupação ilegal, que carece de medidas preventivas e de eliminação do

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O conceito de integração é entendido como uma pluralidade de estilos de vida, que se podem ir adaptando de acordo com as escolhas, preferências e opções individuais, todos eles partilhando a cidadania. Nesse sentido, a integração não se pode pensar como um conceito homogéneo ou estático, dependente de autodefinições grupais ou de representações sociais, valores e comportamentos que uma determinada sociedade avalia como positivos (Almeida, 1993, p. 830).

51 problema. Por outro lado, admitindo a necessidade de melhoramento das condições de habitabilidade dos ciganos, são criadas estruturas próprias para acolhimento desta parte da população, são exemplo disso os chamados Parques Nómadas16, que para além de se tornarem uma solução economicamente vantajosa resolvem ainda o problema da coabitação entre os ciganos e a restante população, uma vez que estes espaços são criados em locais mais ou menos afastados ou isolados. Por último, assume-se uma postura de efetiva inexistência de ciganos itinerantes, tendo por base o facto de que os mesmos não se encontram recenseados, logo não existem de facto (Castro, 2006, p.5).

Ora, de acordo com a autora, os pressupostos aqui apresentados deixam dúvidas quanto a uma itinerância espontânea e voluntária por parte dos ciganos. A conjuntura que envolve a realidade destas pessoas obriga a uma diversidade de estratégias e relações com o território na procura de melhores condições de vida, ainda que possa existir uma predisposição de génese histórica para as deslocações. Isto significa que as viagens, embora usadas de forma frequente e em geral por grande parte de indivíduos ou famílias ciganas, não acontecem por acaso, têm sempre uma função. A autora identifica algumas razões que justificam as deslocações frequentes dos ciganos, entre elas, a função económica, que permite a alguns ciganos que se dedicam ao comércio, procurar a sua clientela. Identifica também a função social, no sentido de se estreitarem laços familiares e manter o relacionamento, tão importante como rede de apoio em situações de dificuldades. Pelo contrário, a itinerância pode também ocorrer como forma de afastamento entre famílias para evitar situações de conflito, é comum e faz parte da cultura cigana a estratégia de não coabitação nos mesmos espaços, de duas ou mais famílias entre as quais tenham ocorrido desentendimentos ou conflitos, este afastamento evita o confronto direto e por conseguinte o apaziguamento da crise (Castro, 2006, p. 8).