• Nenhum resultado encontrado

Diferenciação e estigmatização dos espaços

PARTE I – Enquadramento Teórico

Capitulo 1 Habitação e realojamento

1.4. Diferenciação e estigmatização dos espaços

Tal como acontece em relação à Europa, em que se verifica uma reorientação de políticas de habitação (Guerra, 2008, p.58), no que se refere a Portugal, essas políticas têm vindo a ser questionadas, na medida em que, a construção dos chamados bairros sociais coloca em causa a eficiência e eficácia destas políticas de habitação e programas no que respeita à melhoria das condições de vida das pessoas suas beneficiárias e ao contributo destas políticas para a integração social das populações. As políticas, demasiadamente centralizadas e burocratizadas, revelam-se na falta de cuidados na conceção destes espaços, no desconhecimento das especificidades das populações que neles se têm realojado e reflete-se na crescente incapacidade de gerir as suas relações internas. Desta forma, a concentração de fogos para habitação social pode apresentar-se, em alguns casos, como um constrangimento à integração e à inserção urbana de grupos socialmente excluídos (Augusto, 2000, p. 2).

O realojamento em massa ou com deficientes condições, tendo por base critérios estereotipados de homogeneização em relação às características da população, trata todos como se fossem um conjunto indistinto (Cachado, 2013). Ora, o que acontece muito frequentemente, é a existência de graves conflitos entre algumas famílias de origens culturais diferentes ou a existência nestes mesmos territórios de outras famílias também fragilizadas social e economicamente (Mendes, 2007 referido por Mendes, Magano e Candeias, 2014, p. 88).

A promoção de habitação social não tem como única função criar o alojamento, é essencial que a mesma promova o exercício de cidadania e ajude a criar laços sociais fortes capazes de inserir o indivíduo e levá-lo a interagir com o meio, de forma aliada ao seu desenvolvimento. Não obstante os benefícios que se podem associar ao acesso a uma habitação condigna, outros aspetos da vida são igualmente importantes para o

31 desenvolvimento pleno de todas as capacidades e igualdade de oportunidades dos indivíduos. No entanto, paradoxalmente nem sempre assim acontece e os resultados não fazem jus às preocupações públicas com estas famílias, ou pelo menos não tem o impacto na condição de vida das pessoas que o investimento (financeiro) merece. Por vezes, a intenção de inserção dos mais desfavorecidos através do acesso a uma habitação (atribuindo fogos e oferecendo condições habitacionais melhoradas) potencia a sua situação de exclusão (Augusto, 2000, p. 1).

Por outro lado, os residentes e alguns profissionais que trabalham com estas populações queixam-se que as próprias construções públicas destinadas a habitação social são quase sempre de baixa qualidade, degradam-se rapidamente e a manutenção nem sempre é atempada e suficiente para manter a qualidade do realojamento. Estas construções de pouca qualidade e matérias-primas baratas não vieram trazer condições de habitabilidade excecionais aos residentes e acentuam a imagem negativa que estes bairros apresentam (Mendes, Magano e Candeias, 2014, pp. 88-89).

Num estudo realizado por Augusto (2000, p. 2) sobre o Bairro da Estação, na Covilhã, são apontados alguns fatores que limitam a criação e manutenção de um triângulo de influência entre as identidades, as sociabilidades e a participação dos residentes. Considera-se a identidade um construto que se relaciona com o entendimento que cada indivíduo tem sobre si próprio e sobre aquilo que entende ser o melhor para si, de entre as opções que têm ao seu dispor (Giddens, 2004, p. 29). O modo como o indivíduo constrói a sua identidade está diretamente ligado à forma como se relaciona com o espaço.

Um outro estudo realizado por Rebelo, Pereira e Silva (2013) sobre a integração de imigrantes e de grupos minoritários em Portugal revela que a promoção habitacional pública, tal como se processou, não auxiliou o surgimento de uma identidade de aproximação ao grupo maioritário ou de acolhimento, mantendo um processo de dissociação relativamente a este, ou seja, da promoção habitacional não resultou, para estes casos, um ajustamento social, a partir da matriz identitária (p. 263)

Augusto (2000, p. 3) aponta algumas características dos bairros sociais que os torna iguais entre si promovendo a distinção dos mesmos relativamente aos outros espaços da cidade. A sua homogeneidade arquitetónica e condições socioeconómicas dos seus moradores rapidamente se tornam alavancagem de situações de segregação urbana. A periferização e

32 segregação destes bairros conduziram a uma espacialização da pobreza no espaço urbano, desenvolvendo-se de forma diferenciada e paralela à dinâmica interna dos centros urbanos. Parece haver uma relação estreita entre alguns locais de concentração de habitação social e os problemas sociais ligados à pobreza, promiscuidade, abandono e deterioração das relações sociais, enfim, ligados à exclusão social em todas as suas dimensões. Fernandes e Ramos (2010), num estudo desenvolvido em dois bairros sociais da cidade do Porto, constatam que parece haver um poder de atração entre os problemas sociais e as mais

mediáticas zonas de exclusão social. Os autores observam o quotidiano destes bairros, as

interações entre os seus atores e a forma como estes locais adotam quase de forma natural situações de desvantagem como o consumo de drogas, o desemprego, o abandono escolar e outras formas de exclusão (p. 25). Um dos bairros foi demolido e a sua população foi transferida para outro local, numa tentativa de exterminar a disseminação do problema. No que se refere ao consumo de drogas foram sendo transferidas as dinâmicas do consumo, dando continuidade ao problema, sendo que esta mudança espacial não trouxe impacto positivo, muito pelo contrário, comprometeu a eficácia da intervenção que se havia iniciado no antigo bairro junto dos toxicodependentes, pelas equipas de rua já conhecedoras das trajetórias dos deambulantes do bairro (p. 26).

Num estudo desenvolvido por Wäcquant (2006) sobre bairros relegados na América e em França, o autor aponta as consequências devastadoras da marginalização destes bairros, não apenas para a comunidade marginal como também para os moradores que tentam sobreviver apartados do quotidiano miserável a que assistem entre portas.

“Que esses lugares estejam ou não deteriorados, sejam ou não perigosos e a sua população seja ou não essencialmente composta de pobres, minorias e estrangeiros, tem pouca importância, no fim de contas: a crença preconceituosa de que assim são bastas para engendrar consequências socialmente nocivas”. (Wacquant, 2006, p. 29)

O facto é que, de acordo com Guerra (1994) a degradação dos bairros afeta a vida de todos os intervenientes, com especial impacto também nos moradores que, fazendo um esforço para se demarcarem do estigma sobre o espaço residencial, ele está impregnado nas suas próprias vidas. A residência nestes bairros “é arriscar a imagem de se ser marginal,

33 bairros de habitação social, demonstram bem o desprezo e vergonha que por vezes os seus moradores sentem por viverem nesses espaços. As condições socioculturais são mais responsáveis pelo desinteresse dos seus moradores do que propriamente as condições habitacionais, a degradação dos fogos e dos espaços públicos ou a falta de equipamentos (p. 12). Isto significa que, aos constrangimentos físicos e concretos dos espaços, junta-se ainda uma dimensão simbólica, percecionada, capaz de se tornar um maior fator de limitação das perspetivas do que a própria condição de pobreza. Muitas vezes o que acontece e que foi realçado por Pinto (1994) no que se refere ao “gosto pela casa e

desgosto pelo bairro”.

A “má fama” de que sofrem alguns bairros sociais é amplificada pela espetacularização e mediatismo com que são tratados acontecimentos negativos nestes espaços. Fernandes L. (1995) apelidou este fenómeno de “Efeito Casal Ventoso” (p. 29) num estudo que desenvolveu em torno de bairros “ditos das drogas” e a propósito do efeito do rumor social difundido pelos meios de comunicação. Sobre o tema, o autor refere que a insistência nestes temas inspira ao sentimento de insegurança e ramifica a desconfiança sobre os vários aspetos e populações destes lugares.

Em conclusão, é legítima a consideração de que o estigma que envolve os moradores de alguns bairros sociais é um mal a juntar a outros de que provavelmente já padeciam e que vieram a agravar-se com o processo de realojamento.