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Castigos e maus tratos infligidos à imagem de Santo António

CULTO RELIGIOSO E DEVOÇÃO POPULAR EM PORTUGAL E EM ESPANHA

2. O papel das irmandades de Santo António em Espanha

3.11. Castigos e maus tratos infligidos à imagem de Santo António

Associado ao culto religioso de Santo António, surge um conjunto de superstições, divulgadas por transmissão oral, através de algumas publicações296 ou em páginas de Internet297, que servem para ajudar a concretizar os pedidos dirigidos ao santo.

Certas práticas são levadas a cabo com o objectivo de pressionar o santo a realizar os pedidos dos seus devotos: colocar a sua imagem com a cara voltada para a parede ou esbofeteá-la, amarrá-la à perna de uma mesa, suspendê-la por um cordel, mergulhá-la com a cabeça para baixo, ou roubar o Menino Jesus, que geralmente traz ao colo, motivo pelo qual muitas imagens do santo já o perderam. O hábito de roubar o Menino Jesus constitui uma prática bastante antiga e muito comum, cumprida geralmente pelas devotas e em fases mais desesperadas no processo de procura de noivo para casar.

Com efeito, a imaginária de Santo António revela por vezes a ausência da figura do Menino Jesus, justificada pela tradição de o roubar temporariamente como forma de coagir o santo a concretizar certos pedidos, geralmente de namorado ou de casamento, milagres não realizados, facto que justifica a não restituição da figura em falta.

Em Jerez de la Frontera, na Iglesia de San Francisco existe uma imagem de Santo António da qual é roubada frequentemente a imagem do Menino Jesus. Consta até que esta peça, de meados do século XVIII (Anexo I, Figura 67), correu o risco de não poder estar presente numa exposição sobre iconografia do Menino Jesus

296 A título exemplificativo: Santo António: Orações e Simpatias, Carcavelos, Editorial Angelorum-

Novalis, 2004; Salmos & Anjos, Ano 6, 2004, Nº 57, pp. 10-13.

297 O ciberespaço tem-se revelado um campo bastante profícuo também no que toca à divulgação de

práticas menos ortodoxas relacionadas com a devoção popular em geral e com o culto a Santo António em particular. Veja-se Susana GALA PELLICER: “Oraciones rogativas a san Antonio de Padua en Internet: entre la oralidad y la escritura”, in Vanderbilt e-Journal of Luso-Hispanic Studies. “El aura de

la voz”: problemas y nuevas perspectivas en torno a la oralidad y la escritura, Nº 7 (2011), pp. 167-186;

“Devoción en Internet. Presencia de un santo medieval en el ciberespacio”, Il Santo, Nº 53 (2013), (no prelo).

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organizada pelo Ayuntamiento de Jerez de la Frontera, visto que o Menino se encontrava desaparecido. Mas Santo António terá realizado o milagre pedido e fez aparecer o Menino Jesus a tempo de integrar a exposição, que decorreu entre 12 de Dezembro de 2005 e 22 de Janeiro de 2006.

A prática do roubo do Menino Jesus encontra-se ilustrada por Viera Sparza e relatada por Luís M. Kleiser no texto intitulado “Garbanzos y verrugas”, publicado na edição de 12 de Março de 1961 do jornal ABC, que dá conta das conversas que resultam das reuniões semanais de quatro amigas solteironas. Algumas confessam ter pensado nesta estratégia para arranjar noivo mas que não chegaram a concretizar por receio de serem descobertas a roubar o Menino Jesus. No entanto, recordam o exemplo de uma prima que “(…) más pobre que un día sin pan y más fea que un santo de aldea, robó un Niño Jesús, y a los tres meses estaba otra vez el Niño en la iglesia, y ella también para casarse.”298

Já Pe António Vieira alertava nos seus sermões para certas práticas de chantagem que eram exercidas sobre Santo António com vista a pressioná-lo a corresponder aos pedidos de milagres.

Veja-se a referência que Miguel Mestre faz, no século XVIII, relativamente a este assunto, fundamentando-o no excesso de confiança que por vezes se produz entre Santo António e os seus devotos:

De esta confianza nace una piadosa temeridad, con que suele tratarle la impaciencia de algunos de sus devotos, cuando les parece que tarda en hacer lo que le piden; pues, como ejecutándole por el milagro que pretenden, ó ya le quitan en prendas el niño, ó ya aprisionan su sagrada imagen, pero quienes pueden dar razón de esto, son los sacristianos del convento de San Francisco de esta ciudad de Barcelona, y yo con otros que no pocas veces los vimos asustados por faltar el Niño, que es de plata á martillo, hermosamente labrado, à la imagen de la capilla del Santo, hasta que con mucho secreto se les daba cuenta, de que estaba en poder de alguna persona, su devota, con seguridad guardado.299

298

Luís M. KLEISER, “Garbanzos y verrugas”, ABC, Madrid, 12/3/1961, p. 22.

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O mesmo autor dá conta de como, já à época, era usual ameaçar o santo com represálias quando se verificava demasiada demora na realização dos pedidos:

Era la tal muger muy devota de San Antonio, y tenia en un Oratorio una Imagen del Santo, à quien todos los dias pedia con mucha instancia, le bolviese à su marido. Pasóse largo tiempo, y cansada un dia de ver dilataba tanto el cumplimento de su deseo, impaciente dixo al Santo: Santo mio, ya no puedo sufrir mas, bien veys quanto tiempo ha que os estoy rogando bolvays mi marido à su casa, y pareceme no haceys caso de mis ruegos, ni quereys darme consuelo: ahora, pues, os digo, que si dentro el termino de tres días no está mi marido en casa, reñiremos de veras los dos, y no seré mas vuestra devota.300

Apesar de certas reservas quanto à autenticidade do conteúdo das cartas de Arthur William Costigan, o epistológrafo relata, na quadragésima segunda carta301, um episódio de pedido de auxílio, feito por um marinheiro a Santo António, que era padrinho de um dos seus filhos, para que o santo enviasse ventos favoráveis à viagem que a sua embarcação efectuava rumo a Lisboa. Não obtendo ajuda, após várias orações, o remador praguejou tanto contra o santo, que este acedeu a enviar um ligeiro sopro favorável. Esta displicência de Santo António enfureceu de tal forma o seu compadre que este ameaçou abandonar a sua confraria e tornar-se incrédulo. Não podemos deixar de apreciar, uma vez mais, a relação estreita que une Santo António e os seus fiéis, que pode dar origem a este tipo de atitudes e chantagens.

Pelo contrário, por vezes é o próprio Santo António que pode ser considerado interesseiro e chantagista, exigindo que lhe seja feita primeiramente a oferenda e só depois concedendo a graça que lhe é pedida302. Em Espanha há mesmo quem lhe chame “pesetero”303

.

Talvez a tortura mais dolorosa de que uma imagem de Santo António possa ser vítima consista na que é infligida em Espanha quando, dando três nós num pano, se

300

Ibidem, p. 216.

301 Arthur William COSTIGAN, Cartas sobre a sociedade e os costumes de Portugal 1778-1779, Vol. II,

pp. 170-172.

302

Moisés ESPÍRITO SANTO, A Religião Popular Portuguesa, p. 123.

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simula que se lhe atam os genitais. Trata-se de uma prática que resulta da aproximação à figura de São Cucufate, pois este procedimento deve ser executado enquanto se diz uma oração dedicada a este santo com o objectivo de recuperar objectos perdidos. A fórmula base da oração a São Cucufate é a seguinte:

San Cucufato, los huevos te ato,

y hasta que no aparezca no te los desato.304

Há inúmeras versões desta oração e muitas vezes São Cucufate, por vezes identificado em português como São Cucufato, recebe em espanhol outras designações, tais como San Cutufato, Gurrufato, Justufato, Donato, Pilato, Cojonato305. Provavelmente porque se trata de uma prece para fazer aparecer os objectos perdidos, é possível encontrar também algumas versões dirigidas a Santo António, que sofre exactamente o mesmo castigo.

Também em Espanha, há notícia de outra forma de chantagear o santo: vendar- lhe um olho ou, caso não seja suficiente, vendar-lhe os dois olhos até que o pedido se realize306. Uma das práticas mais tradicionais é deixá-lo afogado num poço, de preferência com a cabeça virada para baixo. Uma vez que colocar a imagem de Santo António submersa num poço, prática considerada bastante eficaz, se torna de difícil execução na actualidade, parece que começa a ser frequente colocá-la no congelador, hábito que faz parte do processo de actualização do rito.

Acácio de Paiva, ao longo de trinta e três quadras, sob o título “Milagre de Santo António”307

, conta um episódio que se baseia na tradição de chantagear o santo até que ele decida fazer o milagre que lhe foi pedido. Narra-se o que aconteceu a uma rapariga

304

Juan RODRÍGUEZ PASTOR, op.cit., p. 94.

305 No Sul de Portugal, junto a Vila de Frades, existem ruínas de um antigo convento dedicado a este

santo.

306

Juan RODRÍGUEZ PASTOR, op.cit., p. 87.

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que, desanimada e revoltada com a passividade do santo, resolveu deitar a sua imagem pela janela. Afortunadamente, a imagem foi cair em cima da cabeça do seu amor platónico que passava na rua. Embora o rapaz não a conhecesse, apaixonou-se logo por ela e casaram-se. Este argumento serviu também para uma peça de teatro, como veremos na Terceira Parte desta dissertação.