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CULTO RELIGIOSO E DEVOÇÃO POPULAR EM PORTUGAL E EM ESPANHA

2. O papel das irmandades de Santo António em Espanha

3.10. Santo António, protector das crianças

A ligação de Santo António às crianças sempre foi bastante forte. Conta-se que, logo após a sua morte, as crianças rapidamente saíram à rua, lamentando: “Morto he o padre santo; morto he o Santo Antonio!”289

Este vínculo às crianças reporta-se, naturalmente, à experiência de vida de Santo António, pois através dos relatos da sua taumaturgia percebe-se que muitos dos milagres que terá operado ainda em vida visavam o auxílio, a protecção, a cura e a salvação de crianças com problemas, em perigo ou mesmo já mortas. Esta tradição justifica o facto de o primeiro texto conhecido de teatro antoniano – Auto de Santo António, de Afonso Álvares –, do século XVI, versar justamente sobre um milagre que o santo terá realizado ao fazer ressuscitar uma criança morta após afogamento, conforme será desenvolvido na Terceira Parte deste estudo. Por esta altura, estava já amplamente difundida a fama taumatúrgica de Santo António, nomeadamente os seus poderes protectores junto dos mais novos. De facto, logo na primeira legenda, a Vita Prima, para além de vários milagres de cura de crianças, são relatados dois milagres que Santo António terá operado ao devolver a vida a duas crianças mortas por afogamento após terem caído num poço. Ao longo dos tempos, cada vez mais milagres relacionados com a cura e salvação de crianças foram sendo introduzidos pelas sucessivas legendas. Destaco, no

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Fr. Fortunato de S. BOAVENTURA (tradução e edição bilingue latim/português), Vita et miracula s.

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âmbito da recuperação de crianças mortas por afogamento no rio, o milagre narrado na

Legenda Benignitas sobre a ressurreição do seu sobrinho, Aparício, que viria a ingressar

na Ordem Franciscana, contribuindo para aumentar o mérito desta ordem religiosa, e o milagre contado no Liber Miraculorum sobre a ressurreição de dez crianças, milagre que terá ampliado o impacto desta virtude de Santo António por se tratar de um milagre com efeitos num grupo.

Uma variante deste tipo de milagres consiste na narrativa da ressurreição de crianças afogadas num caldeirão de água, episódio que a arte portuguesa conserva na memória através, por exemplo, da pintura setecentista que o Museu de Évora conserva e que figura o prodígio (Anexo I, Figura 27). Segundo se conta na Legenda Rigaldina, o pequeno Tomasino, de vinte meses, caíra numa vasilha de água, por descuido da mãe que, inconsolável, dirigiu insistentes preces ao santo para que devolvesse a vida ao filho. O milagre deu-se e a mãe cumpriu a promessa que tinha feito de oferecer a quantidade de trigo correspondente ao peso do menino, porção destinada a utilizar no fabrico de pães para distribuir pelos pobres. Como já foi referido, pode-se considerar que a tradição da bênção dos pães teve início em Pádua, onde terá ocorrido este milagre. No século XIV, em França, generalizou-se o costume de benzer o trigo ad pondus pueri, dado em quantidade igual ao peso da criança que se pretendia pôr sob a protecção do santo, como referido anteriormente. Assim se foi instalando o hábito de distribuir pães aos pobres nas igrejas de Santo António290. Por vezes associada à bênção dos pães encontra-se a bênção das crianças, com base na convicção dos efeitos protectores que o santo pode exercer especialmente nas crianças. Aliás, já em 1554, D. João III e Dona Catarina inscreveram D. Sebastião, ainda criança, entre os confrades de Santo António, como garantia de protecção.

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Como foi também referido anteriormente, a partir do século XVI, António tornou-se o nome masculino mais popular e frequente, ultrapassando o de João, na região de Lisboa, escolhido pelas famílias confiantes na protecção do santo para os seus filhos e afilhados. Santo António passou até a ser designado como padrinho de muitas crianças, geralmente baptizadas no dia 13 de Junho, hábito que se estendeu até meados do século XX. Curiosamente, esta tradição subsiste em alguns casos como estratégia para contornar a impossibilidade de alguns indivíduos escolhidos para padrinhos não poderem assumir legalmente essa função pelo facto de não serem baptizados, nomeando-se então Santo António como padrinho oficial e o indivíduo pretendido como seu representante terreno. A tradição antiga de conferir ao santo o papel de padrinho e protector de crianças encontrou um campo de expressão particular nos contos populares, que, por sua vez, estiveram na origem de alguns casos de literatura infantil, também no domínio cinéfilo e teatral (Anexo I, Figura 126), conforme veremos na Segunda e na Terceira partes deste trabalho.

O poder protector de Santo António junto das crianças encontra-se por vezes associado à capacidade do Santo António em fazer aparecer objectos perdidos, Com efeito, José Leite de Vasconcelos indica que “em Lisboa, as crianças perdidas eram entregues na igreja de Santo António.”291

Em contexto rural, a esta conjugação de prerrogativas pode ainda associar-se a protecção contra os ataques dos lobos, como acontece em Casares de Hurdes, onde se conta que:

Dicen que se perdió un niño y lo estaba buscando todo el mundo, y cuando apareció le dijeron: ¿Con quién has estado? Y como su madre le tenía puesto el responso a San Antonio, el muchacho dijo: Pues con San Antonio Bendito, que me estuvo cuidando, y cuando un lobo me fue a morder, San Antonio le pegaba en los dientes y el lobo se iba.292

291 José Leite de VASCONCELOS, op.cit., p. 20. 292

Proyecto Alcazaba, Universidad de Extremadura:

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Podemos considerar que a relação especial que se foi estabelecendo entre Santo António e as crianças consubstanciou-se de forma mais marcante através do milagre da aparição do Menino Jesus, relatado no Liber Miraculorum, tópico que viria a estar na origem do mais estável emblema da iconografia antoniana. A partir do século XVI multiplicam-se as imagens de Santo António com o Menino Jesus, sempre em atitude de grande afecto e cumplicidade que a arte tem conseguido reproduzir de forma notável, que a barrística actual reconfigura (Anexo I, Figura 100) e que a tradição oral recorda, por exemplo através da seguinte quadra infantil, recolhida na zona de Cáceres:

San Antonio bendito Tiene un Niño chiquito Que ni come ni bebe Y siempre está gordito.293

No século XVIII e na sequência de um dos acontecimentos nacionais mais dramáticos – o terramoto de Lisboa de 1755 –, Santo António, como já foi referido, viu reforçada a crença nos seus poderes protectores. Surgem vários testemunhos de milagres que terá operado para salvar devotos, nomeadamente crianças e jovens, como se verifica no texto anónimo, impresso em 1757 e intitulado Verdadeira noticia de hum

famoso caso succedido na Rua dos Canos desta cidade, ou relaçam de huma mercê que o inclito Santo Antonio fez a huma sua devota, livrando-a, como piamente se crê, de hum perigo inevitavel, que certamente lhe succederia a lhe não valer a protecção deste Santo Portuguez. Neste texto, que pretende contribuir “para mayor honra e gloria do

mesmo santo”, relata-se a salvação milagrosa de uma jovem de catorze anos que esteve nove dias soterrada, proferindo continuamente súplicas a Santo António. Conta-se que, assim que a rapariga se apercebeu de que a terra começava a tremer se dirigiu a um oratório perto da sua casa, na Rua dos Canos294, e que, incapacitada pelo pânico de

293 Juan RODRÍGUEZ PASTOR, op.cit., p. 94. 294

Era habitual nas ruas de Lisboa a existência de um oratório ou um nicho em honra de Santo António (Pe ROLIM, op.cit., p. 36), desaparecidos com o terramoto. Como já referido, julga-se que este costume

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endereçar uma oração ou um pedido ao santo, retirou a sua imagem que manteve sempre junto a si, enquanto esteve isolada. Aludindo aos milagres que são atribuídos ao santo de fazer falar os mudos, realça-se a capacidade que teve, nesta ocasião, de entender as silenciosas súplicas da jovem, restituindo-lhe a faculdade da fala para que os seus gemidos fossem ouvidos, de forma a que viesse a ser encontrada e salva. Este episódio remete para o milagre introduzido no Dialogus quando se relata como o santo salvou um rapaz soterrado num aluimento de terras ao resguardar-lhe a garganta para que conseguisse ir respirando. Conclui-se atribuindo a Santo António a salvação desta jovem devota, como prova de que este é o glorioso santo “a quem nunca ninguém recorreo com justa causa, que não experimentasse o remedio das suas penas”. Reveste- se este texto de especial interesse enquanto documento que apela à exemplaridade da situação relatada como forma de comprovar que a devoção a Santo António viabilizara a salvação desta jovem, isto é, que a fé conduz efectivamente à salvação.

A relação do santo com as crianças estreita-se ainda mais na sequência das acções empreendidas pela população lisboeta com o intuito de reconstruir o templo do santo, bastante danificado pelos efeitos do terramoto e do incêndio que se lhe seguiu. Foram as crianças de Lisboa que recolheram grande parte dos donativos depositados nas caixas de esmolas e em altares espalhados pela cidade, prática conhecida pela expressão “cinco-réisinhos para o Santo António”.

Esta tradição, imortalizada no cinema português através do filme Pátio das

Cantigas, produzido em 1942, foi acompanhando a evolução monetária, passando a ser

conhecida pelo «tostãozinho» e actualmente pelo «cêntimo» ou «euro para o Santo António». A preparação cuidadosa destes altares deu lugar a outra tradição lisboeta que consiste na elaboração de tronos onde a figura principal é a de Santo António (Anexo I,

tenha raízes no fenómeno de assimilação de práticas pagãs relacionadas com as antigas divindades tutelares da cidade e da família (Irisalva MOITA, op.cit., p. 28).

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Figura 130). A Câmara Municipal de Lisboa continua a promover o concurso de tronos, com o intuito óbvio de manter viva esta tradição de cariz popular.

Igualmente com o objectivo de preservar tradições relacionadas com Santo António junto dos mais jovens, o Instituto de Inovação Educacional do Ministério da Educação, no âmbito do programa das comemorações do VIIIº Centenário do nascimento de Santo António, em 1995, lançou uma colectânea de textos que visava servir de instrumento de apoio ao Concurso Escolar “Prémio de Santo António”, implementado em toda a rede escolar nacional em diversas modalidades. Pela mesma ocasião, a Juventude Antoniana do Porto lançou também um Concurso de Jogos Florais “Santo António de Lisboa” ao qual concorreram muitas escolas. Transcrevo duas das quadras populares vencedoras, criadas por alunos da Escola Preparatória Sá de Couto, de Espinho, por me parecerem um exemplo da contemporaneidade que a figura de Santo António consegue alcançar entre as crianças:

Ó meu rico Santo António, Só te peço, com bons modos, Que me ajudes a subir As notas dos testes todos. Carlos Moreira – 7º C

Ó meu rico Santo António, Peço com amor profundo Que ajudes as crianças E dês paz eterna ao mundo.

Frederico Godinho – 6º D295

Também os jovens espanhóis descobriram em Santo António a prerrogativa de ajudar a obter bons resultados escolares e a encontrar trabalho. Transcrevo um exemplo que encontrei junto à escultura do santo na igreja de Saint-Germain-des-Près, em Paris, em Julho de 2007:

San Antonio, ayúdame a estudiar mucho y a tener un poco de suerte en el examen de las Oposiciones.

San Antonio, quiero encontrar mi primer trabajo, por favor, en Salamanca. Tú ya sabes.

Merche

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