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CULTO RELIGIOSO E DEVOÇÃO POPULAR EM PORTUGAL E EM ESPANHA

2. O papel das irmandades de Santo António em Espanha

3.8. Santo António, casamenteiro

Provavelmente devido à coincidência de datas entre a festa consagrada ao santo, determinada pelo dia da sua morte a 13 de Junho, e o solstício de Verão, a 21 de Junho, vulgarizou-se o seu dom de advogado dos bons casamentos, atraindo como fiéis muitas mulheres: jovens casadoiras, menos jovens solteironas, viúvas à procura de novo marido, casadas que lhe pedem ajuda na recuperação dos maridos infiéis e/ou no

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afastamento das rivais. Esta devoção teve início no Sul do país, enquanto São João se assumia com as mesmas características no Norte, a par de São Gonçalo de Amarante, considerado também casamenteiro mas especialmente das mulheres mais velhas. A tradição de Santo António casamenteiro rapidamente se estendeu a todo o território português e até além-fronteiras, nomeadamente a Espanha, como já foi referido, e em concreto à vizinha Galiza, como podemos verificar na obra poética de expressão galega de Rosalía de Castro, concretamente no poema “San Antonio bendito”, que glosa um cantar popular galego que serve de mote à composição:

San Antonio bendito, Dádeme un home, anque me mate, Anque me esfole. 277

Este poema, que integra a obra intitulada Cantares Gallegos desde a sua primeira edição em 1863, constitui um dos primeiros registos escritos desta vertente popular do culto antoniano.

O actual culto antoniano em Ceuta e em Melilla atende também à tradição casamenteira do santo. Existe um degrau de acesso à ermida de Santo António em Ceuta no qual as raparigas solteiras se devem sentar como ritual para que o santo as ajude a encontrar noivo, motivo pelo qual este degrau se encontra um pouco mais gasto que todos os outros, conforme nos explica Juan Rodríguez Pastor278.

Na vila de El Tiemblo, a cerca de 80 kms de Madrid, já na zona de Ávila (Castilla y León), existe uma tradição de alguma forma similar. À entrada da actual ermida de Santo António resiste, bastante desgastada, uma chapa informativa quanto à altitude da localidade sobre o nível do mar. Seguindo um costume antigo, as raparigas

277 Rosalía de CASTRO, “San Antonio bendito”, in Cantares Gallegos, pp. 88-90. 278

Juan RODRÍGUEZ PASTOR, “Algunas manifestaciones folklóricas en torno a San Antonio de Padua”, Revista de Folklore, p. 87.

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solteiras devem pisá-la e dar uma volta de 360 graus antes de entrar na ermida para pedir um noivo a Santo António.

Em Cáceres, concretamente na Ermida de Santo António, o culto que é prestado à imagem do santo, ou melhor, à imagem do Menino Jesus que o santo traz ao colo, apresenta uma particularidade interessante (Anexo I, Figura 66). Com efeito, a figura do Menino Jesus recebe muitos carinhos dos devotos, especificamente através do enxoval de fatos que lhe são oferecidos, em grande parte confeccionados a partir de véus de noivas, resultando de promessas que foram feitas em apelo aos dotes casamenteiros do santo. A senhora que zela a ermida renova todas as semanas a indumentária do Menino Jesus, convertida assim em imagem de vestir de cunho popular e comunitário. O ritual da troca de roupa ocorre à segunda-feira para que o Menino Jesus se apresente sempre com um fato diferente na missa semanal, que se realiza às terças-feiras, em alusão ao dia da semana em que ocorreu a morte do santo.

É, realmente, através da sua qualidade de protector do amor e do casamento que Santo António granjeia muitos devotos entre a camada mais jovem da população, nomeadamente através da tradição lisboeta dos Casamentos de Santo António, tópico que será desenvolvido na secção 4., ou das costureiras de Madrid, assunto abordado na secção 5.1. deste capítulo.

Embora Henrique Pinto Rema considere que esta tradição se estabeleceu “desde há um século a esta parte, sobretudo, e em Portugal”279

, parece-me que podemos recuar bastante no tempo para encontrar as suas origens, provavelmente ancoradas nas práticas pagãs associadas ao fenómeno do solstício de Verão que os antigos relacionavam com a fecundidade e, em consequência, com o amor e o casamento, como defendem António Macedo e José Anes280.

279

Henrique Pinto REMA, “A Piedade Popular e Santo António”, Cultura, p. 40.

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É possível identificar diversas práticas associadas ao culto a Santo António relacionadas com a origem pagã desta vertente casamenteira que se popularizou essencialmente a partir de meados do século XIX. Por exemplo, José Leite de Vasconcelos dá conta do seguinte processo de adivinhação usado em Lisboa: “Se na noite de Santo António, ao deitar-se um cravo à rua, este for apanhado por pessoa de idade, faltam poucos anos para o casamento; mas, se for por jovem, faltam muitos.”281

O mesmo estudioso indica ainda o seguinte processo de analogia figurativa ou simbólica: “Em Lisboa, na noite de Santo António, deita-se uma clara de ovo, ou chumbo derretido, num copo de água e conforme os feitios que tomar assim será a profissão do noivo (marinheiro, se a clara de ovo se assemelhar a um navio, etc.).”282 São, de facto, muitas e variadas as práticas que a tradição popular legitima como formas de conseguir um namorado, um companheiro, um noivo, um marido, enfim, de encontrar o amor, através de Santo António.

Em Portugal, como vimos, São Gonçalo de Amarante é considerado também um santo casamenteiro, mas que se ocupa sobretudo de casar as mulheres mais velhas. Em Espanha, são vários os santos em diferentes regiões que partilham com Santo António esta atribuição: São Cristóvão, Santo Hilário, São Pascual Bailón, São Caetano, São Marcos, São Benito de Palermo, entre outros283. A convicção de que Santo António tem poderes para ajudar as moças a encontrar noivo, está na origem do seguinte provérbio espanhol: “La moza que a San Antonio bese el pie, casará bien.”284

Por vezes, unem-se os dois principais predicados atribuídos ao santo actualmente, isto é, o seu dom de casamenteiro e de recuperador de coisas perdidas, com manifestação na tradição popular:

281 José Leite de VASCONCELOS, Etnografia Portuguesa, Vol. VII, p. 426. 282 Ibidem, p. 426.

283

José Manuel PEDROSA, San Antonio casamentero, o la religión de Eros, pp. 107-118 (no prelo).

116 Santo António bailador

o perdido faz achar; Eu perdi o meu amor

outro amor hei-de encontrar.285

Curiosamente, a proximidade a Santo António nestas questões do coração levou a que fosse também apresentado como atrevido e namoradeiro, como se pode comprovar através da seguinte quadra popular:

Santo António me acenou de cima do seu altar. Olha o maroto do Santo que também quer namorar.286

Esta quadra manifesta também o processo de humanização que a figura de Santo António sofre com frequência ao assumir características e atitudes próprias do comum mortal, como sejam, neste caso, o gesto e sobretudo a capacidade de namorar.

Outro exemplo de humanização da figura de Santo António encontra-se patente na canção “Teresa”, de 2005, cantada pela espanhola Pasión Vega287

, que constitui um caso surpreendente de reconfiguração do santo, uma vez que sugere que Santo António não só se apaixonou como até fugiu do nicho para acompanhar a sua amada, Teresa. Santo António decide, assim, que já não quer ser apenas uma figura, uma imagem, quer ser uma pessoa, sendo-lhe atribuído um papel activo no processo da sua própria transfiguração:

Tiene un secreto Teresa que a nadie cuenta Y debe ser cosa triste pues todos lamentan

El que sus ojos negros no brillen tanto Y que se escape una lágrima de vez en cuando

Ay Teresa mi vida, dime el secreto Yo no lo cuento a nadie, te lo prometo

Y Teresa anda llevando velas Y piensa que San Antonio no la consuela.

Yo le he dicho que el santo prefiere rosas Sobre todo si las lleva una niña hermosa...

285 Armando MATTOS, op.cit., p. 54. 286

Afonso Lopes VIEIRA, Santo António - Jornada do Centenário, p. 10.

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Que Teresa anda llorando a mares Encerrada en sí misma niega la llave. Y es que cuando alguien vive cortando flores Es porque se sufre, sin duda, de mal de amores.

Ay Teresa, mi vida, dime el secreto yo no lo cuento a nadie, te lo prometo. y ahora es San Antonio quien está muy triste

pues no quiere ser imagen y a Dios insiste en que le haga un milagro, ya que su deseo

es invitar a Teresa a dar un paseo. De ella y su secreto nada se sabe sólo que una tarde la vieron marcharse...

nadie corta sus flores y desde aquel día la hornacina de Antonio la hornacina de Antonio la hornacina de Antonio.... está vacía.

Ainda que se diga nesta canção que Santo António prefere as rosas, quanto a flores, segundo a tradição popular da zona de Burgos, imperam os cravos vermelhos:

Para San Juan son las rosas, Para San Pedro los ramos, Pa el bendito San Antonio Los claveles encarnados.

Com efeito, o cravo é uma flor muito conotada com o culto antoniano, em especial os cravos de papel, que são colocados nos manjericos, compondo o ramalhete junto às quadras e constituindo um dos símbolos mais valorizados das festas de Lisboa.