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CULTO RELIGIOSO E DEVOÇÃO POPULAR EM PORTUGAL E EM ESPANHA

2. O papel das irmandades de Santo António em Espanha

3.4. Santo António, protector das localidades e das casas

No âmbito dos preparativos para as comemorações do VIIIº Centenário do nascimento de Santo António, foram levados a cabo os últimos trabalhos de restauro na igreja de Santo António, de Lisboa, que decorreram entre 1992 e 1994, tornando possível “localizar elementos da Porta de Ferro no largo fronteiriço à Igreja”244

, considerado o primeiro local de culto a Santo António na capital do reino. Seguiu-se a colocação da sua imagem junto de outras portas da cidade, como é o caso do nicho que foi instalado na Porta de Alfofa245. Embora tenha desaparecido, persiste o topónimo Rua do Milagre de Santo António, dado à artéria que ia na sua direcção246. Também junto da Porta da Mouraria, da Porta de Alfama e das Portas de Santa Catarina existiram locais de culto.

Pensa-se que o costume de colocar a sua imagem junto das portas de acesso à cidade de Lisboa, hábito que se propagou a outras localidades (Anexo I, Figura 50), tenha raízes no fenómeno de assimilação de práticas pagãs relacionadas com as antigas divindades tutelares da cidade e da família247. Assim se podem entender as derivações desta faculdade protectora de Santo António, que se tornou protector da cidade e, por extensão, da nação e dos seus exércitos, bem como da família e das casas.

Foi principalmente a partir do terramoto de 1755 que se generalizou o costume de decorar as fachadas das casas com azulejos que o representam, com o fim de as proteger248 (Anexo I, Figura 90). Encontra-se, por vezes, acompanhado de Nossa

244 Filipe Mário LOPES, “Igreja de Santo António: Reabilitar com e por Lisboa”, in AA.VV., Igreja de Santo António, p. 23.

245 Braz Luiz de ABREU, Vida de Santo António (portuguez) ou sol nascido no Ocidente e posto ao nascer do sol: obra útil, instrutiva e deleitosa, p. 324.

246 Henrique Pinto REMA, “A piedade popular e Santo António”, Cultura, p. 28. 247 Irisalva MOITA, op.cit., p. 28.

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José MECO, “Iconografia antoniana no azulejo português”, in AA.VV., O Santo do Menino Jesus.

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Senhora ou de São Marçal, conhecido protector contra os incêndios249 (Anexo I, Figura 89). O terramoto também “deu origem à instituição de São Francisco de Borja como padroeiro de Portugal contra os terramotos.”250 Contudo, dada a limitada implantação do culto a São Francisco de Borja, Santo António voltou a ocupar o lugar que antes lhe estava destinado nos registos em azulejo, generalizando-se este costume até meados do século XIX, em busca da protecção do santo na eventualidade de catástrofes semelhantes. Embora este sentido se tenha diluído ao longo dos tempos, pode-se encontrar uma gama infindável de registos de azulejos com a imagem do santo nas fachadas das casas, inclusivamente na actualidade. Generalizou-se também o hábito de colocar imagens do santo esculpidas em pedra ou moldadas em barro ou noutros materiais resistentes para melhor resistir às intempéries e garantir a protecção dos moradores. Encontra-se uma imagem de Santo António colocada num nicho à porta da casa do arquitecto Antoni Gaudí, no Park Güell, em Barcelona (Anexo I, Figura 69).

Diversos documentos referem a acção protectora que Santo António exerceu aquando do terramoto de 1755 que, como se sabe, transformou em ruínas a cidade de Lisboa, uma das mais florescentes capitais europeias da época. Consta que a igreja de Santo António sofreu grandes danos quer pelos efeitos do terramoto quer pelas chamas do incêndio que se lhe seguiu, fazendo fé, por exemplo, nas palavras de J. Bautista de Castro, uma testemunha presencial que deixou escrito no Mappa de Portugal:

Com o repentino assalto do terremoto e incêndio, ficou este grandioso templo arruinado, e mais que tudo consumido, e desfigurado o formoso embutido das suas pedras, de que o corpo todo e tecto da igreja era formado primorosamente.

Porém observou-se como prodígio que a voracidade das chamas, abrasando os retábulos e tudo que estava místico à tribuna do santo, não

249 São Marçal é considerado o padroeiro e protector dos Bombeiros, pois, segundo a tradição, foi

baptizado por São Pedro, que lhe confiou o seu báculo, ao qual foram atribuídos poderes mágicos, entre eles a capacidade para extinguir incêndios.

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ofenderam a sua veneranda imagem, nem ousaram entrar dentro, trocando o furor em respeito, segundo conjectura a piedade e devoção. 251

Sublinha-se aqui o facto milagroso de, por entre a destruição, alguns elementos simbólicos terem permanecido intactos: a imagem seiscentista que se mantém actualmente no altar-mor da igreja e a capela-mor construída no local onde terá nascido o santo. A penosa necessidade de dizer o indizível levou a que fossem surgindo alguns relatos de milagres que Santo António terá operado nessa ocasião252. De Domingos Reis Quita, o árcade Alcino Micénio, é conhecido o soneto, publicado em 1781, que transcrevo seguidamente e em que se responsabiliza Santo António pela minimização dos efeitos do terramoto, devido à sua intercessão junto de Deus a favor do povo e da cidade de Lisboa.

Contra Lisboa António glorioso A Omnipotente Mão viu levantada, E correu a livrar a Pátria amada De terrível estrago pavoroso. Levanta os rogos, antes que furioso O Senhor descarregue a justa espada; Tanto enfim lhe suplica, tanto brada, Que logo um Deus irado viu piedoso. Por seu ardente zelo suspendido Vemos ser o castigo mais horrendo, Que tentos Homens tinham merecido. Oh quanto a tal Patrono estão devendo! De um Deus tão justamente enfurecido Está o fatal raio suspendendo. 253

251 Pe José ROLIM, op.cit., p. 32.

252 Este assunto encontra-se desenvolvido no seguinte artigo: Isabel Dâmaso SANTOS, “Repercussões do

Terramoto de Lisboa de 1755 na evolução do culto a Santo António”, in Helena Carvalhão BUESCU et al. (org), 1755: Catástrofe, Memória e Arte, Lisboa, Edições Colibri, 2006, pp. 155-162, na sequência da comunicação apresentada no Colóquio Internacional O Grande Terramoto de Lisboa: Ficar Diferente, organizado pelo Centro de Estudos Comparatistas, em colaboração com a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Fundação Cidade de Lisboa, dias 2 e 3 de Novembro de 2005.

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Domingos dos Reis QUITA, “Contra Lisboa António glorioso”, in Obras de Domingos dos Reis

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A própria toponímia é reveladora da dimensão do fenómeno de culto em torno dos efeitos protectores de Santo António relativamente às localidades. Com efeito, a toponímia associada a Santo António é muito rica em todo o território ibérico, incluindo as ex-colónias, e é impossível citar todos os lugares que invocam o seu nome, isto é, a sua protecção. Verifica-se que esta tendência se foi acentuando à medida que a devoção foi ganhando maior expressão e dando lugar à fundação de lugares de culto, como aconteceu, por exemplo, na aldeia Las Navas de Zarzuela del Monte, na província de Segovia (Castilla y León), que a partir do século XVII passou a designar- se Navas de San Antonio, em honra do patrono escolhido em consequência do milagre que o santo realizou a um filho da terra. Segundo um documento emanado pelo escrivão real e datado de dia 4 de Agosto de 1455, sexta-feira, o pequeno Juan González foi surpreendido três vezes pela aparição de um frade, que afinal se revelou ser Santo António254. Conta-se que o frade designou a criança como intermediária para pedir aos habitantes daquele lugar que construíssem uma ermida em sua honra. Como ninguém acreditou no relato do rapaz, o santo apareceu para salvar uma senhora morta e prestes a ser enterrada255. Assim se deu início à confraria de Santo António e à construção da Ermita de San Antonio del Cerro, a 3 kms da aldeia. Embora a data que se pode ler na inscrição numa das pedras da parede seja 1744, a tradição popular defende que este templo remonta a meados do século XV, quando ocorreu o milagre, e que esta data mais recente corresponde à realização de obras de melhoramento do templo, que se tornara demasiado pequeno para a cada vez maior devoção dos habitantes da zona.

Henrique Pinto Rema apresenta exaustivamente uma listagem de locais e freguesias que receberam o nome de Santo António em Portugal, mas regista também

254 Pueblos de Espanña: www.pueblos-espana.org/castilla+y+leon/segovia/navas+de+san+antonio

(4/8/2011).

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ocorrências no Brasil, México, Argentina, não esquecendo que a cidade de Londres lhe dedica a St. Antony’s Road256

. Neste domínio, Alfredo Ferreira Nascimento publicara anteriormente um estudo bastante minucioso de toponímia antoniana presente em Portugal, continental e insular, em Espanha, nas Filipinas, nos Estados Unidos e um pouco por toda a América Latina (Argentina, Bolívia, Colômbia, Chile, Costa Rica, Cuba, Equador, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Perú, Porto Rico, Salvador, Uruguai e Venezuela)257.

Podemos considerar que as localidades que se colocam sob a invocação do santo pretendem homenageá-lo, procurando certamente também a sua protecção.