Foi no trabalho sobre os elefantes fósseis que Cuvier externou pela primeira vez a sua
preocupação com a razão para o desaparecimento da megafauna. Ele se perguntou o que
teria acontecido com todos aqueles animais enormes cujos restos eram achados em
qualquer lugar na Terra:
“Os rinocerontes fósseis da Sibéria são muito diferentes de todos os rinocerontes
conhecidos; (...) o animal de doze pés de comprimento, sem dentes incisivos e com
garras nos dedos, do qual o esqueleto acabou de ser achado no Paraguay não tem
nenhum qualquer análogo vivo. Por que, em última instância, não se encontra nenhum
osso petrificado humano? Todos estes fatos (...) me parecem provar a existência de
um mundo prévio ao nosso, destruído por algum tipo de catástrofe” (RUDWICK,
1997, p.22).
Cuvier iria encontrar as provas para atestar esta hipótese a partir de 1805, ano em que
foi desenterrado um paquiderme fóssil nas minas de calcário da região de Paris, fato que
revelou um riquíssimo sítio paleontológico do qual o grande sábio francês extrairia
exemplares de dezenas de mamíferos e marsupiais. Passou a descrever freneticamente
espécies de ursos das cavernas, hipopótamos, hienas, o Palaeotherium, “antiga fera”
semelhante à anta, assim como mamíferos de pequeno porte como gambás, invertebrados
como moluscos, e até de um réptil voador que batizou de pterodáctilo, o primeiro
pterosauro a ser descrito (CUVIER, 1809, p.424-437). Ao mesmo tempo, Cuvier proferiu
uma série de conferências bastante populares, nas quais um dos presentes era um jovem
dinamarquês doutor em zoologia chamado Johannes Christopher Hagemann Reinhardt 14, o
futuro orientador de Peter Wilhelm Lund.
Sempre a procura de uma explicação para aquelas extinções, Cuvier usou em sua
memória sobre o rinoceronte15 o relato do naturalista alemão Peter Simon Pallas
(1741-1811) a respeito de um exemplar congelado achado ainda com pele e carne na Sibéria
(PALLAS, 1788-1793), como subsídio para concluir que o animal havia morrido de forma
14
Daqui a diante citado como J. Reinhardt, para não ser confundido com seu filho, J. T. Reinhardt.
15“Description ostéologique du rhinocéros unicorne”, 1806.
repentina (RUDWICK, 1997, p.89). Nestes trabalhos, começou a enfatizar que os ossos
fossilizados eram freqüentemente coletados misturados com destroços marinhos, e que
alguns tinham mesmo conchas e outros organismos marinhos incrustados. No entanto,
como o estado de conservação dos animais eram bom e as carcaças não pareciam ter sido
transportadas para o local onde se encontravam, Cuvier sugeriu que aquelas feras teriam
sido vítimas de uma catástrofe repentina, como um avanço do mar – que teria sido breve
em termos geológicos (RUDWICK, 1997, p.90). Notou igualmente que as camadas do solo
onde os fósseis eram achados diferiam umas das outras. Mais além, percebeu que os fósseis
não estavam presentes em todos os níveis estratigráficos. Alguns, por exemplo, não
existiam nas formações superiores, que deviam ser mais recentes (BOWLER, 2003, p.114).
Este foi o caso do “Grande animal fóssil de Maastricht”. Escavado nas minas de calcário
daquela cidade holandesa por volta de 1780 e trazido como botim de guerra em 1795 para o
acervo do museu parisiense,16 aquele fantástico exemplar exercia nos estudiosos o mesmo
fascínio que o mamute e o “animal de Ohio”. 17 Muitos pensavam se tratar de um crocodilo
gigante, mas foi novamente Cuvier quem o identificou como sendo um réptil marinho.
Deu-lhe o nome de Mosasaurus, o “lagarto do rio Meuse”.18 Ao mesmo tempo, ao observar
que da formação de onde saiu aquele animal não se retiravam mamíferos, concluiu
acertadamente se tratar de uma estratigrafia mais antiga, resultado de uma outra
“revolução” anterior à última catástrofe do globo (RUDWICK, 1997, p.158).19 Hoje
sabemos que a formação de Maastricht é do período Jurássico (206-144 milhões de anos
16
Como relatado por Barthélémy Faujas de Saint-Fond (1741-1819), professor no Museu de História Natural
de Paris, em Historie Naturelle de la Montage de Saint-Pierre de Maestricht (1799 - ver tradução em <
http://www.oceansofkansas.com/St_Fond.html > . Acesso em: jul. 2006). Vide CAMPER, 1796, p.443-456;
BARDET, 1996, p.569-593.
17
Uma década após a bem-sucedida descrição dos mamutes, Cuvier elucidou a identidade do chamado
“animal de Ohio”. Em 1739, nas barrancas do rio Ohio (que fazia parte da colônia do Canadá e hoje pertence
ao Kentucky), tropas do comandante francês Barão Charles de Lougueuil encontraram ossos enormes,
incluindo uma presa, um fêmur e três molares. Os restos daquele que ficaria conhecido como o “animal de
Ohio” foram coletados e enviados ao Cabinet du Roi em Paris (RUDWICK, 1997, p.22). A primeira tentativa
de identificação aconteceu em 1762, por Louis-Jean-Marie Daubenton (1716-1800), discípulo de Buffon e
anatomista do Cabinet du Roi. Mas foi Cuvier, novamente pautado por uma minuciosa análise de anatomia
comparada, que anunciou – 60 anos após a descoberta do fóssil – que se tratava de outra espécie extinta de
elefante, à qual deu o nome de mastodonte.
18
Apenas em 1822 e, em 1829, Mosasaurus hoffmani, homenagem a C. K. Hoffman, cirurgião de Maastrichit
que descobriu o fóssil.
19
“Le grand animal fossile de Maastricht”, 1808.
AP20), enquanto a megafauna de Paris é do período Terciário (entre 65 milhões e 2,5
milhões de anos AP).
A soma destas conclusões direcionou o célebre anatomista a fazer uma revisão e
expansão de todos os seus trabalhos, reunidos em 1812 nos quatro volumes do monumental
Researches sur les ossemens fossiles (CUVIER, 1812). A título de prefácio, acrescentou
um “Discurso Preliminar” aonde formulou pela primeira vez a sua Teoria das Revoluções
do Globo. Segundo ele, a Terra teria sido submetida por inúmeras “revoluções” em seu
passado pré-humano. Algumas destas “catástrofes” teriam sido repentinas, eventos
ocasionais de mudanças violentas na geografia física que pontuaram uma história
inimaginavelmente longa e tranqüila. A prova das catástrofes seriam os fósseis que o
próprio Cuvier encontrou e descreveu, sendo que a evidência da última revolução do globo
era a mais clara de todas, precisamente porque era a mais recente, sendo seus efeitos ainda
aparentes (RUDWICK, 1997, p.175).
O Discurso foi imediatamente saudado como uma obra prima da ciência. Foi
traduzido para o inglês em 1813 e para o alemão em 1816, tornando-se um trabalho de
enorme influência na primeira metade do século XIX. Cuvier prosseguiu com suas
investigações, à procura de novas evidências para comprovar a sua teoria. Em 1821, iniciou
a publicação de uma segunda edição dos Ossemens fossiles, expandindo seu conteúdo para
sete volumes. O discurso preliminar, também aumentado, saiu em separado com o título de
Discours sur les Révolutions de la Surface du Globe (1825). Neste momento, o barão já
acreditava dispor de evidências incontestáveis de pelos menos quatro revoluções no globo,
o que o levou a concluir que:
“Ce qui est certain, c’est que nous sommes maintenant au moins au milieu d’une
quatrième succession d’animaux terrestres, et qu’après l’âge des reptiles, après celui
des palæotheriums, après celui des mammouths, des mastodontes et des
megatheriums, est venu l’âge où l’espèce humaine, aidée de quelques animaux
domestiques, domine et féconde paisiblement la terre, et que ce n’est que dans les
terrains formés depuis cette époque, dans les alluvions, dans les tourbières, dans les
20
Antes do presente.
concrétions récentes que l’on trouve à l’état fossile des os qui appartiennent tous à des
animaux connus et aujourd’hui vivans” (CUVIER, 1825, p.80).
No documento
tel-00289537, version 1 - 21 Jun 2008
(páginas 49-52)