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Catástrofes e revoluções do globo

No documento tel-00289537, version 1 - 21 Jun 2008 (páginas 49-52)

Foi no trabalho sobre os elefantes fósseis que Cuvier externou pela primeira vez a sua

preocupação com a razão para o desaparecimento da megafauna. Ele se perguntou o que

teria acontecido com todos aqueles animais enormes cujos restos eram achados em

qualquer lugar na Terra:

“Os rinocerontes fósseis da Sibéria são muito diferentes de todos os rinocerontes

conhecidos; (...) o animal de doze pés de comprimento, sem dentes incisivos e com

garras nos dedos, do qual o esqueleto acabou de ser achado no Paraguay não tem

nenhum qualquer análogo vivo. Por que, em última instância, não se encontra nenhum

osso petrificado humano? Todos estes fatos (...) me parecem provar a existência de

um mundo prévio ao nosso, destruído por algum tipo de catástrofe” (RUDWICK,

1997, p.22).

Cuvier iria encontrar as provas para atestar esta hipótese a partir de 1805, ano em que

foi desenterrado um paquiderme fóssil nas minas de calcário da região de Paris, fato que

revelou um riquíssimo sítio paleontológico do qual o grande sábio francês extrairia

exemplares de dezenas de mamíferos e marsupiais. Passou a descrever freneticamente

espécies de ursos das cavernas, hipopótamos, hienas, o Palaeotherium, “antiga fera”

semelhante à anta, assim como mamíferos de pequeno porte como gambás, invertebrados

como moluscos, e até de um réptil voador que batizou de pterodáctilo, o primeiro

pterosauro a ser descrito (CUVIER, 1809, p.424-437). Ao mesmo tempo, Cuvier proferiu

uma série de conferências bastante populares, nas quais um dos presentes era um jovem

dinamarquês doutor em zoologia chamado Johannes Christopher Hagemann Reinhardt 14, o

futuro orientador de Peter Wilhelm Lund.

Sempre a procura de uma explicação para aquelas extinções, Cuvier usou em sua

memória sobre o rinoceronte15 o relato do naturalista alemão Peter Simon Pallas

(1741-1811) a respeito de um exemplar congelado achado ainda com pele e carne na Sibéria

(PALLAS, 1788-1793), como subsídio para concluir que o animal havia morrido de forma

14

Daqui a diante citado como J. Reinhardt, para não ser confundido com seu filho, J. T. Reinhardt.

15

“Description ostéologique du rhinocéros unicorne”, 1806.

repentina (RUDWICK, 1997, p.89). Nestes trabalhos, começou a enfatizar que os ossos

fossilizados eram freqüentemente coletados misturados com destroços marinhos, e que

alguns tinham mesmo conchas e outros organismos marinhos incrustados. No entanto,

como o estado de conservação dos animais eram bom e as carcaças não pareciam ter sido

transportadas para o local onde se encontravam, Cuvier sugeriu que aquelas feras teriam

sido vítimas de uma catástrofe repentina, como um avanço do mar – que teria sido breve

em termos geológicos (RUDWICK, 1997, p.90). Notou igualmente que as camadas do solo

onde os fósseis eram achados diferiam umas das outras. Mais além, percebeu que os fósseis

não estavam presentes em todos os níveis estratigráficos. Alguns, por exemplo, não

existiam nas formações superiores, que deviam ser mais recentes (BOWLER, 2003, p.114).

Este foi o caso do “Grande animal fóssil de Maastricht”. Escavado nas minas de calcário

daquela cidade holandesa por volta de 1780 e trazido como botim de guerra em 1795 para o

acervo do museu parisiense,16 aquele fantástico exemplar exercia nos estudiosos o mesmo

fascínio que o mamute e o “animal de Ohio”. 17 Muitos pensavam se tratar de um crocodilo

gigante, mas foi novamente Cuvier quem o identificou como sendo um réptil marinho.

Deu-lhe o nome de Mosasaurus, o “lagarto do rio Meuse”.18 Ao mesmo tempo, ao observar

que da formação de onde saiu aquele animal não se retiravam mamíferos, concluiu

acertadamente se tratar de uma estratigrafia mais antiga, resultado de uma outra

“revolução” anterior à última catástrofe do globo (RUDWICK, 1997, p.158).19 Hoje

sabemos que a formação de Maastricht é do período Jurássico (206-144 milhões de anos

16

Como relatado por Barthélémy Faujas de Saint-Fond (1741-1819), professor no Museu de História Natural

de Paris, em Historie Naturelle de la Montage de Saint-Pierre de Maestricht (1799 - ver tradução em <

http://www.oceansofkansas.com/St_Fond.html > . Acesso em: jul. 2006). Vide CAMPER, 1796, p.443-456;

BARDET, 1996, p.569-593.

17

Uma década após a bem-sucedida descrição dos mamutes, Cuvier elucidou a identidade do chamado

“animal de Ohio”. Em 1739, nas barrancas do rio Ohio (que fazia parte da colônia do Canadá e hoje pertence

ao Kentucky), tropas do comandante francês Barão Charles de Lougueuil encontraram ossos enormes,

incluindo uma presa, um fêmur e três molares. Os restos daquele que ficaria conhecido como o “animal de

Ohio” foram coletados e enviados ao Cabinet du Roi em Paris (RUDWICK, 1997, p.22). A primeira tentativa

de identificação aconteceu em 1762, por Louis-Jean-Marie Daubenton (1716-1800), discípulo de Buffon e

anatomista do Cabinet du Roi. Mas foi Cuvier, novamente pautado por uma minuciosa análise de anatomia

comparada, que anunciou – 60 anos após a descoberta do fóssil – que se tratava de outra espécie extinta de

elefante, à qual deu o nome de mastodonte.

18

Apenas em 1822 e, em 1829, Mosasaurus hoffmani, homenagem a C. K. Hoffman, cirurgião de Maastrichit

que descobriu o fóssil.

19

“Le grand animal fossile de Maastricht”, 1808.

AP20), enquanto a megafauna de Paris é do período Terciário (entre 65 milhões e 2,5

milhões de anos AP).

A soma destas conclusões direcionou o célebre anatomista a fazer uma revisão e

expansão de todos os seus trabalhos, reunidos em 1812 nos quatro volumes do monumental

Researches sur les ossemens fossiles (CUVIER, 1812). A título de prefácio, acrescentou

um “Discurso Preliminar” aonde formulou pela primeira vez a sua Teoria das Revoluções

do Globo. Segundo ele, a Terra teria sido submetida por inúmeras “revoluções” em seu

passado pré-humano. Algumas destas “catástrofes” teriam sido repentinas, eventos

ocasionais de mudanças violentas na geografia física que pontuaram uma história

inimaginavelmente longa e tranqüila. A prova das catástrofes seriam os fósseis que o

próprio Cuvier encontrou e descreveu, sendo que a evidência da última revolução do globo

era a mais clara de todas, precisamente porque era a mais recente, sendo seus efeitos ainda

aparentes (RUDWICK, 1997, p.175).

O Discurso foi imediatamente saudado como uma obra prima da ciência. Foi

traduzido para o inglês em 1813 e para o alemão em 1816, tornando-se um trabalho de

enorme influência na primeira metade do século XIX. Cuvier prosseguiu com suas

investigações, à procura de novas evidências para comprovar a sua teoria. Em 1821, iniciou

a publicação de uma segunda edição dos Ossemens fossiles, expandindo seu conteúdo para

sete volumes. O discurso preliminar, também aumentado, saiu em separado com o título de

Discours sur les Révolutions de la Surface du Globe (1825). Neste momento, o barão já

acreditava dispor de evidências incontestáveis de pelos menos quatro revoluções no globo,

o que o levou a concluir que:

“Ce qui est certain, c’est que nous sommes maintenant au moins au milieu d’une

quatrième succession d’animaux terrestres, et qu’après l’âge des reptiles, après celui

des palæotheriums, après celui des mammouths, des mastodontes et des

megatheriums, est venu l’âge où l’espèce humaine, aidée de quelques animaux

domestiques, domine et féconde paisiblement la terre, et que ce n’est que dans les

terrains formés depuis cette époque, dans les alluvions, dans les tourbières, dans les

20

Antes do presente.

concrétions récentes que l’on trouve à l’état fossile des os qui appartiennent tous à des

animaux connus et aujourd’hui vivans” (CUVIER, 1825, p.80).

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