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O problema da antigüidade do homem

No documento tel-00289537, version 1 - 21 Jun 2008 (páginas 52-55)

Nos séculos XVI e XVII, à medida que os europeus iam descobrindo cada vez mais

sobre as antigas civilizações egípcia, chinesa, indiana, asteca e inca, ficava claro que

aqueles povos possuíam registros que recuavam até um passado remoto, mais longínquo do

que os seis mil anos defendidos pelos teólogos de então. A descoberta da existência de

índios na América, algo inexistente no Evangelho, precisava de uma explicação. A primeira

tentativa veio pela pena do filósofo francês Isaac La Peyrère, ou Pererius (1596-1676),

formulador da teoria dos Pré-Adamitas. Em seu Praeadamitae, de 1655, ele afirma que o

mundo era habitado por muitos séculos antes da criação de Adão. Este seria o ancestral do

povo judeu, enquanto que dos pré-adamitas descenderiam todos os outros povos da terra.

Assim, a Bíblia não seria a história da civilização, mas apenas do povo judeu (GOODRUM,

2004 a, p.179).

O fato de muitas tribos do Novo Mundo desconhecerem a metalurgia e empregarem

armas e instrumentos de pedra lascada, como pontas de flecha, machados e facas, atestava

aos sábios da época a condição selvagem daqueles – e a superioridade da civilização

branca. O desconforto, no entanto, veio quando o naturalista italiano Michele Mercati

(1541-1593), diretor do jardim botânico do Vaticano, voltou seus olhos para as ceraunias, 21

objetos de pedra conhecidos desde a Antigüidade assim como as glossopetrae, e igualmente

coletadas por geólogos e antiquários europeus. Na obra póstuma Metallotheca (1719),

Mercati sugere que as ceraunias não eram resultado do choque dos raios contra o solo, mas

na verdade instrumentos de pedra iguais àqueles usados pelos índios americanos. Ora, tal

constatação levantava a desconfortável hipótese de que, num passando distante, os

ancestrais dos europeus desconheciam a forja de metais, vivendo então num estado de

barbárie similar ao dos “selvagens” das Américas (GOODRUM, 2002; GOODRUM, 2004

21

Do grego keraunós (pedra do raio), teriam poder mágico e terapêutico segundo Plínio (Naturalis historia,

livros XXXIII e XXXVII).

a, p.180). O reconhecimento de que as ceraunias eram de fato artefatos culturais de um

passado remoto europeu foi confirmado pelo naturalista francês Antoine de Jussieu

(1686-1758) e pelo inglês John Woodward (JUSSIEU, 1723; WOODWARD, 1728), levando

outros naturalistas a sugerir que as ceraunias européias seriam as mais antigas evidências

dos humanos no planeta (GOODRUM, 2004 b, p.224).

Preocupado em elucidar a idade da Terra, Georges Louis Leclerc, o Conde de Buffon,

não poderia passar ao largo do problema da antigüidade do ser humano. No mesmo

Époques de la Nature (1778) onde dividiu a história em sete eras, ele acomodou o homem

na última delas, quando os continentes assumiram sua forma atual. Chegou mesmo a

descrever como a nossa espécie, originalmente desprovida de cultura e tecnologia,

aprendeu a fazer utensílios de pedra, dominou o fogo e a agricultura (GOODRUM, 2004 b,

p.225).

Mas, ao mesmo tempo em que o conhecimento geológico aumentava, uma revolução

nos conhecimentos zoológicos, particularmente na anatomia comparada, redefinia o papel

do ser humano na biosfera. Em 1699, o cirurgião britânico Edward Tyson dissecou um

chimpanzé africano e comparou sua anatomia à anatomia humana. As semelhanças eram

tantas que Tyson declarou que aquela espécie preenchia o vazio que separava o homem do

resto do reino animal (TYSON, 1699). Poucas décadas depois, chegou à vez de Lineu não

apenas aceitar esta semelhança como ir além e adotá-la no seu sistema de classificação. Ele

batizou nossa espécie de Homo sapiens, dividindo-a em quatro raças: a americana, a

asiática, a africana e a européia.22 E classificou o homem ao lado do chimpanzé ou Homo

troglodytes (ou “homem das cavernas”, hoje Pan troglodytes) numa nova categoria

taxonômica, a Anthropomorpha (BLUMENBACH, 1735; GOODRUM, 2004 b, p.226).

1.5 – “Não faz sentido existir homens fósseis”

Este era o estado do conhecimento sobre a antigüidade do homem e seu

posicionamento biológico – não filosófico ou espiritual – no mundo científico do final do

22

Para o anatomista alemão Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) as raças seriam cinco. Em De generis

humani varietate native liber (1795) distinguiu o caucasiano, o mongolóide, o etíope, o americano e o

malásio.

século XVIII. Cuvier, no entanto, passou ao largo destas idéias e proposições. Seu interesse

residia unicamente na zoologia, ou melhor, no estudo dos fósseis de espécies extintas.

Estava por demais preocupado em criar a nova ciência de Paleontologia (da qual é

considerado o pai) e entender as revoluções do globo. O ser humano não fazia parte de seus

interesses científicos. Por isso não piscou ao estabelecer que a espécie humana seria fruto

da era atual do globo. Se houvessem seres humanos antes do último evento catastrófico,

observou no Discours sur les Révolutions de la Surface du Globe, seus restos fósseis já

deveriam ter sido encontrados.

É este ponto de vista que ele defende enfaticamente numa seção do texto encabeçada

pelo título “Não existem ossos fósseis humanos” (Il n’y a point d’os humains fossiles), e

aonde dispara:

“Il est certain qu’on n’a pas encore trouvé d’os humains parmi les fossils (…) Je dis

que l’on n’a jamais trouvé d’os humains parmi les fossiles, (...) car dans les

tourbières, dans les alluvions, comme dans les cimetières, on pourrait aussi bien

déterrer des os humains que des os de chevaux ou d’autres espèces vulgaires; (...)

mais dans let lits qui recèlent les anciennes races, parmi les palæothériums, et même

parmi les éléphans et les rhinocéros, on n’a jamais découvert le moindre ossement

humain (...) l’établissement de l’homme dans les pays où nous avons dit que se

trouvent les fossiles d’animaux terrestres, c’est-à-dire dans la plus grande partie de

l’Europe, de l’Asie et de l’Amérique, est nécessairement postérieur non-seulement

aux révolutions qui ont enfoui ces os” (CUVIER, 1825, p.35).

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