Nos séculos XVI e XVII, à medida que os europeus iam descobrindo cada vez mais
sobre as antigas civilizações egípcia, chinesa, indiana, asteca e inca, ficava claro que
aqueles povos possuíam registros que recuavam até um passado remoto, mais longínquo do
que os seis mil anos defendidos pelos teólogos de então. A descoberta da existência de
índios na América, algo inexistente no Evangelho, precisava de uma explicação. A primeira
tentativa veio pela pena do filósofo francês Isaac La Peyrère, ou Pererius (1596-1676),
formulador da teoria dos Pré-Adamitas. Em seu Praeadamitae, de 1655, ele afirma que o
mundo era habitado por muitos séculos antes da criação de Adão. Este seria o ancestral do
povo judeu, enquanto que dos pré-adamitas descenderiam todos os outros povos da terra.
Assim, a Bíblia não seria a história da civilização, mas apenas do povo judeu (GOODRUM,
2004 a, p.179).
O fato de muitas tribos do Novo Mundo desconhecerem a metalurgia e empregarem
armas e instrumentos de pedra lascada, como pontas de flecha, machados e facas, atestava
aos sábios da época a condição selvagem daqueles – e a superioridade da civilização
branca. O desconforto, no entanto, veio quando o naturalista italiano Michele Mercati
(1541-1593), diretor do jardim botânico do Vaticano, voltou seus olhos para as ceraunias, 21
objetos de pedra conhecidos desde a Antigüidade assim como as glossopetrae, e igualmente
coletadas por geólogos e antiquários europeus. Na obra póstuma Metallotheca (1719),
Mercati sugere que as ceraunias não eram resultado do choque dos raios contra o solo, mas
na verdade instrumentos de pedra iguais àqueles usados pelos índios americanos. Ora, tal
constatação levantava a desconfortável hipótese de que, num passando distante, os
ancestrais dos europeus desconheciam a forja de metais, vivendo então num estado de
barbárie similar ao dos “selvagens” das Américas (GOODRUM, 2002; GOODRUM, 2004
21
Do grego keraunós (pedra do raio), teriam poder mágico e terapêutico segundo Plínio (Naturalis historia,
livros XXXIII e XXXVII).
a, p.180). O reconhecimento de que as ceraunias eram de fato artefatos culturais de um
passado remoto europeu foi confirmado pelo naturalista francês Antoine de Jussieu
(1686-1758) e pelo inglês John Woodward (JUSSIEU, 1723; WOODWARD, 1728), levando
outros naturalistas a sugerir que as ceraunias européias seriam as mais antigas evidências
dos humanos no planeta (GOODRUM, 2004 b, p.224).
Preocupado em elucidar a idade da Terra, Georges Louis Leclerc, o Conde de Buffon,
não poderia passar ao largo do problema da antigüidade do ser humano. No mesmo
Époques de la Nature (1778) onde dividiu a história em sete eras, ele acomodou o homem
na última delas, quando os continentes assumiram sua forma atual. Chegou mesmo a
descrever como a nossa espécie, originalmente desprovida de cultura e tecnologia,
aprendeu a fazer utensílios de pedra, dominou o fogo e a agricultura (GOODRUM, 2004 b,
p.225).
Mas, ao mesmo tempo em que o conhecimento geológico aumentava, uma revolução
nos conhecimentos zoológicos, particularmente na anatomia comparada, redefinia o papel
do ser humano na biosfera. Em 1699, o cirurgião britânico Edward Tyson dissecou um
chimpanzé africano e comparou sua anatomia à anatomia humana. As semelhanças eram
tantas que Tyson declarou que aquela espécie preenchia o vazio que separava o homem do
resto do reino animal (TYSON, 1699). Poucas décadas depois, chegou à vez de Lineu não
apenas aceitar esta semelhança como ir além e adotá-la no seu sistema de classificação. Ele
batizou nossa espécie de Homo sapiens, dividindo-a em quatro raças: a americana, a
asiática, a africana e a européia.22 E classificou o homem ao lado do chimpanzé ou Homo
troglodytes (ou “homem das cavernas”, hoje Pan troglodytes) numa nova categoria
taxonômica, a Anthropomorpha (BLUMENBACH, 1735; GOODRUM, 2004 b, p.226).
1.5 – “Não faz sentido existir homens fósseis”
Este era o estado do conhecimento sobre a antigüidade do homem e seu
posicionamento biológico – não filosófico ou espiritual – no mundo científico do final do
22
Para o anatomista alemão Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) as raças seriam cinco. Em De generis
humani varietate native liber (1795) distinguiu o caucasiano, o mongolóide, o etíope, o americano e o
malásio.
século XVIII. Cuvier, no entanto, passou ao largo destas idéias e proposições. Seu interesse
residia unicamente na zoologia, ou melhor, no estudo dos fósseis de espécies extintas.
Estava por demais preocupado em criar a nova ciência de Paleontologia (da qual é
considerado o pai) e entender as revoluções do globo. O ser humano não fazia parte de seus
interesses científicos. Por isso não piscou ao estabelecer que a espécie humana seria fruto
da era atual do globo. Se houvessem seres humanos antes do último evento catastrófico,
observou no Discours sur les Révolutions de la Surface du Globe, seus restos fósseis já
deveriam ter sido encontrados.
É este ponto de vista que ele defende enfaticamente numa seção do texto encabeçada
pelo título “Não existem ossos fósseis humanos” (Il n’y a point d’os humains fossiles), e
aonde dispara:
“Il est certain qu’on n’a pas encore trouvé d’os humains parmi les fossils (…) Je dis
que l’on n’a jamais trouvé d’os humains parmi les fossiles, (...) car dans les
tourbières, dans les alluvions, comme dans les cimetières, on pourrait aussi bien
déterrer des os humains que des os de chevaux ou d’autres espèces vulgaires; (...)
mais dans let lits qui recèlent les anciennes races, parmi les palæothériums, et même
parmi les éléphans et les rhinocéros, on n’a jamais découvert le moindre ossement
humain (...) l’établissement de l’homme dans les pays où nous avons dit que se
trouvent les fossiles d’animaux terrestres, c’est-à-dire dans la plus grande partie de
l’Europe, de l’Asie et de l’Amérique, est nécessairement postérieur non-seulement
aux révolutions qui ont enfoui ces os” (CUVIER, 1825, p.35).
No documento
tel-00289537, version 1 - 21 Jun 2008
(páginas 52-55)