6.1 – O início da obra-prima
A leitura da transcrição de trechos das memórias de Lund é, a meu ver, a melhor
forma para salientar a transformação radical que se processou sobre as suas convicções
teóricas entre os anos de 1835, quando iniciou o trabalho nas cavernas, e 1844, quando o
terminou e estabeleceu a contemporaneidade do homem de Lagoa Santa com a
megamastofauna pleistocênica. Como veremos, este período viu inúmeras certezas darem
lugar a enormes dúvidas, muitas reinterpretações e algumas novas soluções para a origem e
– ouso escrever – a evolução da vida na Terra.
Terminada a redação da 2ª Memória sobre as Cavernas, Lund e Brandt ainda tiveram
fôlego para aproveitar o final do inverno e conhecer novas grutas antes do retorno das
chuvas. Entre os dias 7 e 20 de julho de 1836, a dupla de escandinavos realizou uma nova
expedição às cavernas. Atravessaram as fazendas do Fidalgo e do Engenho para chegar ao
seu destino, o arraial de Sete Lagoas, na região entre a confluência do rio Paraopeba com o
rio das Velhas. Entre as fazendas do Saco e da Pontainha conheceram a Lapa do Milagre.
Na fazenda Ginette estudaram a Lapa do Ginette, uma grande caverna cheia de galerias e de
vestígios fósseis. Foram ainda à Lapa Pequena do Ginette e à Lapa do Campo antes de
iniciar o retorno a Lagoa Santa.
Mal descansaram uma semana. Em 26 de julho pegaram a trilha para a fazenda
Mocambo, para conhecer a Lapa de José Antônio. Após novo reconhecimento da Lapa da
Cerca Grande, foi a vez de cinco pequenas grutas em torno do Açude do Mocambo.
Aproveitaram a passagem pela fazenda da Bebida para explorar as Lapas do Come não
Bebe e três cavernas na Lagoa dos Pitos. Eles começaram o mês de agosto visitando a Lapa
do José e a Lapa de José de Souza, seguidas por nova passagem pela Lapa de Periperé,
além da Lapa do Diogo e da Lapa das Duas Escadas. No dia 8, voltaram a Lagoa Santa,
fechando assim o período de explorações de 1836.
Foi então que, já assentado em Lagoa Santa, ele deu início à sua principal obra, o
Olhar sobre a Criação Animal Brasileira antes da Última Revolução da Terra,178 que seria
formada ao todo por cinco memórias, escritas entre 1837 e 1844. A primeira delas, que
segundo Gorceix é apenas uma introdução onde Lund passa rapidamente em revista o
estado dos conhecimentos sobre a fauna dos mamíferos do planalto central de Minas Gerais
(GORCEIX, 1885, p.29), foi despachada para Copenhagen em 14 de fevereiro de 1837.
Escrevendo em 1882, portanto 45 anos após estas primeiras memórias de Lund e 23
anos depois a publicação de AOrigemdasEspécies por Darwin, J. T. Reinhardt observa no
ensaio biográfico sobre o seu antigo mestre que:
“Lund estava associado, como mostra o título geral (das memórias), à opinião ainda
assaz comum naquela época que teria havido uma revolução repentina e geral, uma
catástrofe, que separou os animais extintos, os quais as cavernas conservam os restos
até os nossos dias” (REINHARDT, 1882, p.51).
Datada de 16 de novembro de 1837 é a Segunda Memória sobra a Fauna das Cavernas
(LUND, 1950, p.130-206). Nesta, Lund descreveu duas espécies de tatus gigantes,
propondo para ambas a inserção num gênero extinto ao qual deu o nome de
Chlamydotherium.179 “Ao mesmo tempo, ousando fazer-me intérprete do reconhecimento
que a ciência deve ao maior naturalista de nossa época, dou-lhe a designação específica de
C. humboldtii” (LUND, 1950, p.137), homenagem a Alexander von Humboldt. Mas se esta
espécie era duas vezes maior que o tatu-canastra (Priodontes maximus), medindo dois
metros do focinho a cauda, a segunda era ainda maior, “não sendo seu tamanho inferior ao
do rinoceronte (...) Em virtude de suas dimensões, denomino Chlamydotherium giganteum”
(LUND, 1950, p.138).
178
No título em dinamarquês Blik paa Brasiliens Dyreverden før Sidste Jordomvæltning, a palavra blik,
literalmente “piscar de olhos” em português, foi traduzida como “golpe de vista”, tradução literal da
expressão coup d’oeil, usada nos resumos das memórias de Lund publicados em francês. Já na tradução para o
francês encomendada por Dom Pedro II do ensaio biográfico de autoria de J. Reinhardt, lemos Aperçu du
Règne animal du Brésil avant la dernière révolution du globe. Gorceix, que se baseou nesta tradução, preferiu
a expressão “exposição summaria”. No presente estudo, decidi optar pela palavra “olhar” como sendo aquela
que, acredito, melhor traduz a intenção original de Lund (Nota do autor). Da mesma forma, no título
dinamarquês não existe a expressão “reino animal do Brasil”. Lê-se, literalmente, “criação animal brasileira”.
179Chlamydotherium Lund. LUND, P. W. Annales des Sciences Naturelles, Paris, n.11, p.217, 1839.
6.2 – As primeiras memórias
Os primeiros dois ou três anos do trabalho nas cavernas foram dos mais felizes na
vida de Lund. Ele não se queixava da saúde e ainda gozava do vigor de um homem na casa
dos 30 anos. Quanto às escavações, a quantidade e a importância do material coletado
surpreendiam-no ano a ano.
Apesar disso, permanecia o desejo de manter, resgatar e expandir os contatos com a
intelectualidade européia – como demonstra a carta enviada para o Barão Alexander von
Humboldt:
À Sua Excelência Sr. Alexander von Humboldt180
Lagoa Santa, 28 de Novembro 1837
A atenciosa bondade com que Vossa Excelência me recebeu, quando tive a felicidade
de ser apresentado a Vossa Excelência em Paris do ano de 1831, e o sublime interesse
com o qual o senhor apreciou as minhas insignificantes investigações neste país,
provocaram em mim o vivo desejo de por meio de posteriores esforços ser digno
daqueles interesse e bondade.
Poder retornar ao seio da natureza tropical é para mim um material de investigação
inesgotável, não obstante seja um único tema diante dos meus demais interesses.
Vossa Excelência me guiou a recolher ao vosso lado os primeiros frutos que coletei
neste campo. Os ossos fósseis brasileiros formaram o primeiro assunto da rica
conversa com a qual Vossa Excelência me agraciou. Eu não precisava falar nada
sobre isso a Vossa Excelência. Como mais tarde me seria concedido revelar uma parte
do véu que até agora este assunto ocultava, apresso-me a respeitosamente submeter
aqui a Vossa Excelência o primeiro relatório das minhas investigações sobre este
campo.
Alguns tratados anteriores – sobre a vegetação de Campos, sobre a caverna de
Maquiné, sobre a de Cerca Grande, assim como sobre a distribuição geral dos ossos
fossilizados no Brasil – eu tive igualmente a honra de submeter a Vossa Excelência
180
Tradução nossa. O texto em alemão, transcrito do manuscrito em gótico, encontra-se no Anexo I no final
deste trabalho.
através do Sr. Professor Reinhardt,. Eu agora ofereço alguns outros apenas como
rascunhos provisórios, devido à minha localização distante e à falta de recursos
auxiliares que me obrigam a adiar o trabalho completo sobre estes temas até o meu
retorno à Europa.
Queira Vossa Excelência dignar-se me honrar com uma encomenda, serei igualmente
feliz em perseguir esta oportunidade de servir à ciência, e testemunhar as minhas
dedicação e admiração para a sua maior promoção.
De Vossa Excelência
Permaneço vosso servo e admirador
P. W. Lund
Não consta do acervo da correspondência ativa e passiva de Lund na Kongelige
Bibliotek qualquer resposta Humboldt para esta carta.181 O único contato entre os dois
naturalistas se deu nos salões de Paris, em 1831. A falta de resposta de Humboldt pode ser
um sinal da pouca repercussão dos trabalhos de Lund fora das fronteiras acadêmicas da sua
pequena Dinamarca. Isto se deve à publicação integral das memórias apenas em
dinamarquês. É certo que dos primeiros trabalhos foram publicados resumos em francês.
Mas, se nenhum resumo substitui a leitura de um paper completo com todas as suas
referências – mesmo hoje com a profusão de meios eletrônicos de acesso à informação
acadêmica – o que diria a 170 anos? O pior de tudo é que este crescente isolamento
científico se deu por obra e decisão do próprio Lund, como se lê numa carta a J. Reinhardt
de novembro de 1841:
“Na minha última carta menciono uma memória que estava pronta para ser
despachada, e que partiu em 8 de abril juntamente com uma remessa de fragmentos de
rocha e de esqueletos. Espero realmente que o senhor já tenha recebido ambos. Uma
nova memória encontra-se pronta para envio, da qual pretendo enviar um resumo
destinado ao periódico da Academia Real.182 Anteriormente, eu pretendia enviar uma
tradução em francês de resumos para Audouin, mas estou muito descontente com a
181
O acervo de manuscritos de Humboldt encontra-se na Herzogin Anna Amalia Bibliothek, em Weimar,
Alemanha.
182
Academia Real de Ciências e Letras da Dinamarca.
negligência e com a abundância de erros com que é feita a publicação dos seus
Annales183 e, portanto não quero enviar mais para ele. Também considero isto
supérfluo, já que como o senhor tão bem me explicou a Academia permite que estes
resumos sejam vertidos para o francês e publicados no L’Institute. Neste momento
estão chovendo descobertas, de modo que uma publicação feita mais tarde poderia
trazer a uma única pessoa todo o mérito pelo trabalho. Assim sendo, o senhor poderia
ter a bondade de providenciar o envio dessa tradução o quanto antes, mas, por favor,
troque estas palavras: “recebido pela Sociedade” para “pronto para envio” ou algo
semelhante. Ou o senhor acha mais conveniente enviar uma tradução alemã para
Leonhard e Bronn no seu Jahrbuch?184 Eu não queria fazê-lo, pois não tenho
nenhuma ligação com estes senhores,185 mas presumo que o Professor Forchhammer,
de quem considero as idéias no seu Journal extremamente interessantes, tenha. Nos
últimos periódicos que recebi vejo que outras pessoas em diversas ocasiões já
prestaram atenção nestes assuntos antes de mim, por causa da longa distância que
provoca o atraso na comunicação das minhas mensagens. Desse modo, observo entre
as minhas crianças mais velhas que batizei já faz cinco anos que o Hoplophorus186
agora perdeu o seu nome e se chama Glyptodonte, porque Owen187 batizou-o um mês
antes que o resumo em francês da minha tese fosse publicado no Annales des
Sciences. O nome Hoplophorus aparece em milhares de lugares nos meus manuscritos
e catálogos e eu não vejo nenhuma possibilidade de alterá-los nesse momento”
(LUND, 29/11/1841).
Perceber que todo o seu esforço intelectual havia perdido a corrida pelos louros
científicos por apenas um mês deve ter sido muito duro para Lund. É verdade que o
vencedor foi ninguém menos que Sir Richard Owen (1804-1892), superintendente do
departamento de História Natural do Museu Britânico e o responsável pela descrição dos
183
Annales des Sciences Naturelles.
184
O geólogo Karl C. von Leonhard e o zoólogo Heinrich G. Bronn, da Universidade de Heildelberg,
publicavam o anuário Neues Jahrbuch für Mineralogie, Geologie und Paläontologie.
185
No original, Herren, senhores em alemão.
186
Hoplophorus euphractus. LUND, P. W. Videnskabernes Selskabs Naturvidenskabelige og Mathematiske
Afhandlinger, n.11, 1838; LUND, P. W. Annales des Sciences Naturelles, Paris, n.12, p.207, 1839; LUND,
1950, p.138.
187
Glyptodon Owen (PARISH, 1839).
incríveis fósseis trazidos por Charles Darwin de sua viagem pela América do Sul. Não
bastasse para Lund ter perdido a descrição do gliptodonte, Owen conquistou a primazia em
diversas outras descrições importantíssimas. A preguiça terrestre Scelidotherium
leptocephalum (OWEN, 1840), por exemplo, ironicamente saiu publicada meses antes de
Lund ter tido a chance de homenagear Owen denominando a espécie de Platyonyx owenii
(LUND, 1950, p.296). O mesmo ocorreu com uma outra preguiça terrícola, o Ocnotherium
giganteum (LUND, 1950, p.320), cuja espécie sobreviveu tal qual descrita por Lund, sendo
que o gênero Ocnotherium acabou substituído por outro anteriormente proposto por Owen,
o Glossotherium (OWEN, 1942). Casos semelhantes aconteceram com os tatus gigantes
Chlamydotherium humboldtii e o C. giganteum (LUND, 1950, p.137-138); e com o
camelídeo extinto descrito por Lund como Leptotherium 188 (LUND, 1840, LUND, 1950,
p.156), mas que ficou para a posteridade como Macrauchenia patachonica (OWEN, 1840).
A lista de descrições feitas por Lund que perderam a prioridade é vasta. Mas nela não
se inclui a maior fera do Pleistoceno brasileiro, aliás de todas as Américas, justamente
aquela que, ao lado das preguiças gigantes e dos mamutes e mastodontes, vem à mente de
qualquer criança que pensa nos animais gigantes da idade do Gelo, o tigre dente-de-sabre,
ou Smilodon populator (LUND, 1950, p.366).
188
LUND, P. W. Videnskabernes Selskabs Naturvidenskabelige og Mathematiske Afhandlinger, n.13, 1838;
LUND, P. W. Annales des Sciences Naturelles, n.13, p.311, 1840.
No documento
tel-00289537, version 1 - 21 Jun 2008
(páginas 121-127)