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Olhar sobre a Criação Animal Brasileira

No documento tel-00289537, version 1 - 21 Jun 2008 (páginas 121-127)

6.1 – O início da obra-prima

A leitura da transcrição de trechos das memórias de Lund é, a meu ver, a melhor

forma para salientar a transformação radical que se processou sobre as suas convicções

teóricas entre os anos de 1835, quando iniciou o trabalho nas cavernas, e 1844, quando o

terminou e estabeleceu a contemporaneidade do homem de Lagoa Santa com a

megamastofauna pleistocênica. Como veremos, este período viu inúmeras certezas darem

lugar a enormes dúvidas, muitas reinterpretações e algumas novas soluções para a origem e

– ouso escrever – a evolução da vida na Terra.

Terminada a redação da 2ª Memória sobre as Cavernas, Lund e Brandt ainda tiveram

fôlego para aproveitar o final do inverno e conhecer novas grutas antes do retorno das

chuvas. Entre os dias 7 e 20 de julho de 1836, a dupla de escandinavos realizou uma nova

expedição às cavernas. Atravessaram as fazendas do Fidalgo e do Engenho para chegar ao

seu destino, o arraial de Sete Lagoas, na região entre a confluência do rio Paraopeba com o

rio das Velhas. Entre as fazendas do Saco e da Pontainha conheceram a Lapa do Milagre.

Na fazenda Ginette estudaram a Lapa do Ginette, uma grande caverna cheia de galerias e de

vestígios fósseis. Foram ainda à Lapa Pequena do Ginette e à Lapa do Campo antes de

iniciar o retorno a Lagoa Santa.

Mal descansaram uma semana. Em 26 de julho pegaram a trilha para a fazenda

Mocambo, para conhecer a Lapa de José Antônio. Após novo reconhecimento da Lapa da

Cerca Grande, foi a vez de cinco pequenas grutas em torno do Açude do Mocambo.

Aproveitaram a passagem pela fazenda da Bebida para explorar as Lapas do Come não

Bebe e três cavernas na Lagoa dos Pitos. Eles começaram o mês de agosto visitando a Lapa

do José e a Lapa de José de Souza, seguidas por nova passagem pela Lapa de Periperé,

além da Lapa do Diogo e da Lapa das Duas Escadas. No dia 8, voltaram a Lagoa Santa,

fechando assim o período de explorações de 1836.

Foi então que, já assentado em Lagoa Santa, ele deu início à sua principal obra, o

Olhar sobre a Criação Animal Brasileira antes da Última Revolução da Terra,178 que seria

formada ao todo por cinco memórias, escritas entre 1837 e 1844. A primeira delas, que

segundo Gorceix é apenas uma introdução onde Lund passa rapidamente em revista o

estado dos conhecimentos sobre a fauna dos mamíferos do planalto central de Minas Gerais

(GORCEIX, 1885, p.29), foi despachada para Copenhagen em 14 de fevereiro de 1837.

Escrevendo em 1882, portanto 45 anos após estas primeiras memórias de Lund e 23

anos depois a publicação de AOrigemdasEspécies por Darwin, J. T. Reinhardt observa no

ensaio biográfico sobre o seu antigo mestre que:

“Lund estava associado, como mostra o título geral (das memórias), à opinião ainda

assaz comum naquela época que teria havido uma revolução repentina e geral, uma

catástrofe, que separou os animais extintos, os quais as cavernas conservam os restos

até os nossos dias” (REINHARDT, 1882, p.51).

Datada de 16 de novembro de 1837 é a Segunda Memória sobra a Fauna das Cavernas

(LUND, 1950, p.130-206). Nesta, Lund descreveu duas espécies de tatus gigantes,

propondo para ambas a inserção num gênero extinto ao qual deu o nome de

Chlamydotherium.179 “Ao mesmo tempo, ousando fazer-me intérprete do reconhecimento

que a ciência deve ao maior naturalista de nossa época, dou-lhe a designação específica de

C. humboldtii” (LUND, 1950, p.137), homenagem a Alexander von Humboldt. Mas se esta

espécie era duas vezes maior que o tatu-canastra (Priodontes maximus), medindo dois

metros do focinho a cauda, a segunda era ainda maior, “não sendo seu tamanho inferior ao

do rinoceronte (...) Em virtude de suas dimensões, denomino Chlamydotherium giganteum

(LUND, 1950, p.138).

178

No título em dinamarquês Blik paa Brasiliens Dyreverden før Sidste Jordomvæltning, a palavra blik,

literalmente “piscar de olhos” em português, foi traduzida como “golpe de vista”, tradução literal da

expressão coup d’oeil, usada nos resumos das memórias de Lund publicados em francês. Já na tradução para o

francês encomendada por Dom Pedro II do ensaio biográfico de autoria de J. Reinhardt, lemos Aperçu du

Règne animal du Brésil avant la dernière révolution du globe. Gorceix, que se baseou nesta tradução, preferiu

a expressão “exposição summaria”. No presente estudo, decidi optar pela palavra “olhar” como sendo aquela

que, acredito, melhor traduz a intenção original de Lund (Nota do autor). Da mesma forma, no título

dinamarquês não existe a expressão “reino animal do Brasil”. Lê-se, literalmente, “criação animal brasileira”.

179

Chlamydotherium Lund. LUND, P. W. Annales des Sciences Naturelles, Paris, n.11, p.217, 1839.

6.2 – As primeiras memórias

Os primeiros dois ou três anos do trabalho nas cavernas foram dos mais felizes na

vida de Lund. Ele não se queixava da saúde e ainda gozava do vigor de um homem na casa

dos 30 anos. Quanto às escavações, a quantidade e a importância do material coletado

surpreendiam-no ano a ano.

Apesar disso, permanecia o desejo de manter, resgatar e expandir os contatos com a

intelectualidade européia – como demonstra a carta enviada para o Barão Alexander von

Humboldt:

À Sua Excelência Sr. Alexander von Humboldt180

Lagoa Santa, 28 de Novembro 1837

A atenciosa bondade com que Vossa Excelência me recebeu, quando tive a felicidade

de ser apresentado a Vossa Excelência em Paris do ano de 1831, e o sublime interesse

com o qual o senhor apreciou as minhas insignificantes investigações neste país,

provocaram em mim o vivo desejo de por meio de posteriores esforços ser digno

daqueles interesse e bondade.

Poder retornar ao seio da natureza tropical é para mim um material de investigação

inesgotável, não obstante seja um único tema diante dos meus demais interesses.

Vossa Excelência me guiou a recolher ao vosso lado os primeiros frutos que coletei

neste campo. Os ossos fósseis brasileiros formaram o primeiro assunto da rica

conversa com a qual Vossa Excelência me agraciou. Eu não precisava falar nada

sobre isso a Vossa Excelência. Como mais tarde me seria concedido revelar uma parte

do véu que até agora este assunto ocultava, apresso-me a respeitosamente submeter

aqui a Vossa Excelência o primeiro relatório das minhas investigações sobre este

campo.

Alguns tratados anteriores – sobre a vegetação de Campos, sobre a caverna de

Maquiné, sobre a de Cerca Grande, assim como sobre a distribuição geral dos ossos

fossilizados no Brasil – eu tive igualmente a honra de submeter a Vossa Excelência

180

Tradução nossa. O texto em alemão, transcrito do manuscrito em gótico, encontra-se no Anexo I no final

deste trabalho.

através do Sr. Professor Reinhardt,. Eu agora ofereço alguns outros apenas como

rascunhos provisórios, devido à minha localização distante e à falta de recursos

auxiliares que me obrigam a adiar o trabalho completo sobre estes temas até o meu

retorno à Europa.

Queira Vossa Excelência dignar-se me honrar com uma encomenda, serei igualmente

feliz em perseguir esta oportunidade de servir à ciência, e testemunhar as minhas

dedicação e admiração para a sua maior promoção.

De Vossa Excelência

Permaneço vosso servo e admirador

P. W. Lund

Não consta do acervo da correspondência ativa e passiva de Lund na Kongelige

Bibliotek qualquer resposta Humboldt para esta carta.181 O único contato entre os dois

naturalistas se deu nos salões de Paris, em 1831. A falta de resposta de Humboldt pode ser

um sinal da pouca repercussão dos trabalhos de Lund fora das fronteiras acadêmicas da sua

pequena Dinamarca. Isto se deve à publicação integral das memórias apenas em

dinamarquês. É certo que dos primeiros trabalhos foram publicados resumos em francês.

Mas, se nenhum resumo substitui a leitura de um paper completo com todas as suas

referências – mesmo hoje com a profusão de meios eletrônicos de acesso à informação

acadêmica – o que diria a 170 anos? O pior de tudo é que este crescente isolamento

científico se deu por obra e decisão do próprio Lund, como se lê numa carta a J. Reinhardt

de novembro de 1841:

“Na minha última carta menciono uma memória que estava pronta para ser

despachada, e que partiu em 8 de abril juntamente com uma remessa de fragmentos de

rocha e de esqueletos. Espero realmente que o senhor já tenha recebido ambos. Uma

nova memória encontra-se pronta para envio, da qual pretendo enviar um resumo

destinado ao periódico da Academia Real.182 Anteriormente, eu pretendia enviar uma

tradução em francês de resumos para Audouin, mas estou muito descontente com a

181

O acervo de manuscritos de Humboldt encontra-se na Herzogin Anna Amalia Bibliothek, em Weimar,

Alemanha.

182

Academia Real de Ciências e Letras da Dinamarca.

negligência e com a abundância de erros com que é feita a publicação dos seus

Annales183 e, portanto não quero enviar mais para ele. Também considero isto

supérfluo, já que como o senhor tão bem me explicou a Academia permite que estes

resumos sejam vertidos para o francês e publicados no L’Institute. Neste momento

estão chovendo descobertas, de modo que uma publicação feita mais tarde poderia

trazer a uma única pessoa todo o mérito pelo trabalho. Assim sendo, o senhor poderia

ter a bondade de providenciar o envio dessa tradução o quanto antes, mas, por favor,

troque estas palavras: “recebido pela Sociedade” para “pronto para envio” ou algo

semelhante. Ou o senhor acha mais conveniente enviar uma tradução alemã para

Leonhard e Bronn no seu Jahrbuch?184 Eu não queria fazê-lo, pois não tenho

nenhuma ligação com estes senhores,185 mas presumo que o Professor Forchhammer,

de quem considero as idéias no seu Journal extremamente interessantes, tenha. Nos

últimos periódicos que recebi vejo que outras pessoas em diversas ocasiões já

prestaram atenção nestes assuntos antes de mim, por causa da longa distância que

provoca o atraso na comunicação das minhas mensagens. Desse modo, observo entre

as minhas crianças mais velhas que batizei já faz cinco anos que o Hoplophorus186

agora perdeu o seu nome e se chama Glyptodonte, porque Owen187 batizou-o um mês

antes que o resumo em francês da minha tese fosse publicado no Annales des

Sciences. O nome Hoplophorus aparece em milhares de lugares nos meus manuscritos

e catálogos e eu não vejo nenhuma possibilidade de alterá-los nesse momento”

(LUND, 29/11/1841).

Perceber que todo o seu esforço intelectual havia perdido a corrida pelos louros

científicos por apenas um mês deve ter sido muito duro para Lund. É verdade que o

vencedor foi ninguém menos que Sir Richard Owen (1804-1892), superintendente do

departamento de História Natural do Museu Britânico e o responsável pela descrição dos

183

Annales des Sciences Naturelles.

184

O geólogo Karl C. von Leonhard e o zoólogo Heinrich G. Bronn, da Universidade de Heildelberg,

publicavam o anuário Neues Jahrbuch für Mineralogie, Geologie und Paläontologie.

185

No original, Herren, senhores em alemão.

186

Hoplophorus euphractus. LUND, P. W. Videnskabernes Selskabs Naturvidenskabelige og Mathematiske

Afhandlinger, n.11, 1838; LUND, P. W. Annales des Sciences Naturelles, Paris, n.12, p.207, 1839; LUND,

1950, p.138.

187

Glyptodon Owen (PARISH, 1839).

incríveis fósseis trazidos por Charles Darwin de sua viagem pela América do Sul. Não

bastasse para Lund ter perdido a descrição do gliptodonte, Owen conquistou a primazia em

diversas outras descrições importantíssimas. A preguiça terrestre Scelidotherium

leptocephalum (OWEN, 1840), por exemplo, ironicamente saiu publicada meses antes de

Lund ter tido a chance de homenagear Owen denominando a espécie de Platyonyx owenii

(LUND, 1950, p.296). O mesmo ocorreu com uma outra preguiça terrícola, o Ocnotherium

giganteum (LUND, 1950, p.320), cuja espécie sobreviveu tal qual descrita por Lund, sendo

que o gênero Ocnotherium acabou substituído por outro anteriormente proposto por Owen,

o Glossotherium (OWEN, 1942). Casos semelhantes aconteceram com os tatus gigantes

Chlamydotherium humboldtii e o C. giganteum (LUND, 1950, p.137-138); e com o

camelídeo extinto descrito por Lund como Leptotherium 188 (LUND, 1840, LUND, 1950,

p.156), mas que ficou para a posteridade como Macrauchenia patachonica (OWEN, 1840).

A lista de descrições feitas por Lund que perderam a prioridade é vasta. Mas nela não

se inclui a maior fera do Pleistoceno brasileiro, aliás de todas as Américas, justamente

aquela que, ao lado das preguiças gigantes e dos mamutes e mastodontes, vem à mente de

qualquer criança que pensa nos animais gigantes da idade do Gelo, o tigre dente-de-sabre,

ou Smilodon populator (LUND, 1950, p.366).

188

LUND, P. W. Videnskabernes Selskabs Naturvidenskabelige og Mathematiske Afhandlinger, n.13, 1838;

LUND, P. W. Annales des Sciences Naturelles, n.13, p.311, 1840.

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