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Os trabalhos de transcrição e de tradução

No documento tel-00289537, version 1 - 21 Jun 2008 (páginas 151-168)

2.1 – O dinamarquês em gótico

O filósofo Philostorgius (368-439) de Constantinopla atribuiu a criação do alfabeto

gótico ao godo Wulfila (Ulfilas em latim, c.310-388), que viveu por vários anos no Império

Romano do Oriente até ser ordenado em 341 pelo bispo de Constantinopla Eusébio de

Nicomédia como “bispo de Cristo nas terras dos godos”. Wulfila retornou então ao seu

povo como missionário para a conversão de visigodos e ostrogodos ao cristianismo.

Durante este trabalho, Wulfila traduziu a Bíblia do grego para o godo antigo, usando para

tanto o alfabeto gótico por ele criado. Nos séculos seguintes, seu exemplo foi seguido pelos

missionários germânicos que prosseguiram com a cristianização e a introdução da escrita

aos povos germânicos da Europa central e às tribos vikings da Escandinávia. Desse modo,

já no século XI a maioria dos povos da região utilizavam o gótico para escrever os seus

diversos idiomas. Seu uso prosseguiu até o final do século XIX, sendo abandonado – no

caso da Dinamarca – em 1885.214

Ao longo de seus mais de mil e quinhentos anos de vida, o alfabeto gótico sofreu

mudanças importantes que, como não poderia deixar de ser, acabaram diferenciando o

gótico manuscrito utilizado na Escandinávia daquele que se escrevia nos países de língua

alemã. O alfabeto gótico em sua versão dinamarquesa do início do século XIX é aquele

usado por Peter Wilhelm Lund em todas as cartas trocadas com professores, familiares e

amigos da Dinamarca, isto é, a imensa maioria da sua correspondência depositada na

Biblioteca Real de Copenhagen.

Mas Lund também dominava o gótico alemão, assim como os alfabetos grego e

latino. Além de fluente em português e francês, ele também escrevia em italiano e inglês.

Uma vez tendo importados os microfilmes com as milhares de páginas do arquivo Lund, a

leitura das cartas em português e francês não ofereceu grande desafio. Já com o

dinamarquês e o alemão, a história foi bem diferente. Aprender a decifrar, transcrever e

214

O alfabeto gótico foi reintroduzido na Alemanha durante a vigência do regime nazista.

traduzir a caligrafia de Lund naqueles idiomas foi sem dúvida a tarefa mais árdua,

trabalhosa e demorada deste trabalho de doutoramento.

O primeiro passo dessa empreitada foi, como não poderia deixar de ser, o aprendizado

da língua dinamarquesa. A princípio, eu acreditava que os meus conhecimentos de inglês e

de alemão bastassem para me ajudar no aprendizado, que pretendia realizar de forma

autodidata. Mas muito cedo tomei ciência de que seria impraticável. Isto porque, à exceção

dos neologismos, a base do dinamarquês moderno é o antigo viking, que em nada lembra as

línguas latinas e relaciona-se de forma muito distante ao alemão medieval. A explicação

está na cristianização das diversas tribos vikings: dinamarqueses, noruegueses e suecos, que

se deu por obra de monges alemães que introduziram o alfabeto gótico em torno do ano

1000, momento em que começaram a ser incorporados neologismos, em sua imensa

maioria derivados do alemão medieval. É aí que reside uma das dificuldades de aprender

uma língua como o dinamarquês, uma vez que todas as palavras relacionadas aos objetos e

às ações do cotidiano, ou seja, aquelas usadas pelos agricultores e marinheiros que viviam

nos fiordes durante a Antigüidade e a Alta Idade Média, são de origem viking e assim

permanecem preservadas nas línguas escandinavas modernas.

Não restou opção à não ser recorrer às aulas de dinamarquês. Mas não existem cursos

regulares de dinamarquês em São Paulo. O único que encontrei, de língua e literatura

dinamarquesa, é dado pelo professor Karl Erik Schollhammer na PUC do Rio de Janeiro.

Sendo assim, tive aulas particulares com dois professores nativos, Søren Skov entre 2004 e

2005, e Morten Soubak ao longo de 2006.

Praticamente não existe mudança entre o dinamarquês moderno e o falado 200 anos

atrás. Algumas palavras caíram em desuso, mas nada que um bom dicionário não pudesse

resolver. Neste trabalho foram usados os seguintes dicionários:

Portugisisk-Dansk/Dansk-Portugisisk Ordbog. København, Gyldendals Røde Ordbøger,

2000.

Danish Dictionary. English-Danish/Dansk-Engelsk. Routledge, 1995.

Paralelamente, iniciei o estudo do gótico, dessa vez de forma autodidata, pois não

existem mais cursos nem professores de gótico no Brasil. Em primeiro lugar recorri às

bibliotecas, nas seções de lingüística e de línguas germânicas, assim como aos sites de

instituições acadêmicas e de pesquisa dinamarqueses na Internet, a procura de manuais que

pudessem me auxiliar. Foi assim que encontrei as minhas “Pedras da Roseta”, tabelas que

estabelecem a relação entre as letras maiúsculas e minúsculas em gótico manuscrito usadas

na Dinamarca na virada do século XVIII para o século XIX com suas correspondentes em

caracteres latinos, como se vê nas Tabelas I, II, III e IV abaixo:

Tabela I: Exemplos de letras maiúsculas manuscritas em gótico.

Fonte: Statens Arkiver, Copenhagen.

Tabela II: Exemplos de letras minúsculas manuscritas em gótico.

Fonte: Statens Arkiver, Copenhagen.

Tabela III: O alfabeto gótico empregado na Dinamarca em 1800.

Fonte: Statens Arkiver, Copenhagen (www.sa.dk/sa/elearn/gotisk/alfabet.htm).

Tabela IV: Variações da grafia do gótico dinamarquês entre 1785 e 1839. Fonte:

Statens Arkiver, Copenhagen.

Um outro auxílio decisivo foi o fato de Lund ter sido contemporâneo (além de primo

em primeiro grau) do filósofo Søren Kierkegaard. Aprender a ler o dinamarquês manuscrito

em gótico da primeira metade do século XIX é um desafio que todo o estudioso de

Kierkegaard tem enfrentado nos últimos 150 anos. Assim, a pesquisa na bibliografia dos

estudiosos de Kierkegaard produziu tabelas de grande ajuda como esta abaixo:

Tabela V: A escrita gótica usada por SørenKierkegaard.

Fonte: Statens Arkiver, Copenhagen (www.sa.dk/sa/brugearkiver/gotisk/1800kali.htm).

Assim como as cartilhas de alfabetização da infância nos ensinam um padrão básico

de caligrafia, que em muitas vezes nada lembra a caligrafia pessoal de cada um, da mesma

forma todas as letras em gótico das tabelas acima servem apenas como um guia básico para

se tentar decifrar a caligrafia dos manuscritos de Lund (vide Tabela III). Para piorar as

coisas, a caligrafia de qualquer pessoa muda muito ao longo da vida. Com Lund, isso não

foi diferente. As cartas do jovem naturalista, datadas das décadas de 1820 e 1830, são quase

incompreensíveis, suas letras são pequenas, estilizadas, quase rabiscos ilegíveis redigidos

por um jovem de visão perfeita. Já o homem maduro, aquele que escavou as cavernas de

Lagoa Santa entre 1835 e 1844, possui uma caligrafia mais aberta e, portanto, mais legível

(Figura I), ainda assim muito diferente daquela que saiu da pena do velho recluso nos anos

1870, quando a vista e a saúde falhavam e a letra, outrora firme, tornou-se trêmula, muito

aberta, e em muitos casos pouco legível.

Figura I: Carta em dinamarquês gótico de P. W. Lund para J. Reinhardt, de

29/11/1841. Det Kongelige Bibliotek, Copenhagen.

Para exemplificar a dificuldade da leitura e sua tradução, vamos pegar um trecho da

uma carta endereçada a J. Reinhardt:

Figura II: Trecho de carta em dinamarquês gótico de P. W. Lund para J. Reinhardt,

de 26/04/1844. Det Kongelige Bibliotek, Copenhagen.

Ao ampliar a imagem, temos o seguinte:

Figura III: Trecho ampliado de carta em dinamarquês gótico de P. W. Lund para J.

Reinhardt, de 26/04/1844. Det Kongelige Bibliotek, Copenhagen.

Com mais uma ampliação chegamos às palavras abaixo:

Figura IV: Trecho ampliado de carta em dinamarquês gótico de P. W. Lund para J.

Reinhardt, de 26/04/1844. Det Kongelige Bibliotek, Copenhagen.

O que está escrito, em caracteres latinos é: kgl Nord. Oldskriftselskab; ou kongelige

Nordiske Oldskriftselskab, que nada mais é do que a Sociedade Real dos Antiquários do

Norte, da qual Lund era membro associado.

2.2 – O alemão em gótico

Nos caso do gótico alemão, cuja leitura foi necessária em algumas poucas – porém

importantíssimas – cartas, como aquelas enviadas a Alexander von Humboldt (Figura IV) e

a Franz Wizner von Morgenstern, a base para decifrar os manuscritos foi esta (Tabela VI):

Tabela V: O alfabeto gótico usado na Alemanha no século XIX.

Figura V: Carta em alemão gótico de P. W. Lund para Alexander von Humboldt,

28/11/1837. Caderno de cópias de P. W. Lund. Det Kongelige Bibliotek, Copenhagen.

A transcrição para o alfabeto latino desta primeira página ficou assim:

Ew. Exzellenz Alexander von Humboldt

Lagoa Santa, den 28te November 1837

Die zuvorkommende Güte, vomit Ew. Exzellenz geruften mich zu empfangen, als ich

das Glück hatte im Jahre 1831 Ew. Exzellenz in Paris vorgestellt zu werden, und die

herablassend Teilnahme, die Sie meinen unbedeutende Forschungen in diesem Land

zu schenken würdigten, erregten Leg wir den lebhaftesten Wunsch, durch fernere

bestrebungen mich jener Güte und Teilnahme würdiger zu machen.

Dem Schosse der tropemnatur zurückgegeben konnte es mir an Stoff zu

untersuchungen nicht fehlen, jedoch zig ein Gegenstand vor allein andere meine

Aufmerksamkeit an sich. Ew. Exzellenz hatte mich darauf geleitet, ich beim Ihnen die

erste Früchte schuldig, die ich auf diesem Felde gesammelt habe. Die Fossilen

Knochenreste Brasiliens bildeten den ersten Gegenstand der lehrreichen

Unterhaltung, womit Ew. Exzellenz mich beehrt. Ich muste Ihnen nichts darüber zu

sagen. Da es mir aber später vergönnt worden ist, einen Teil des Schleiers zu haben,

der diesen Gegenstand bisher verhüllte, beeile ich mich Ew. Exzellenz den ersten

Uebersecht meines Forschungen auf diesem Felde hiermit ehrerbietigste vorzulegen.

Abaixo, lê-se a tradução deste trecho:

À Sua Excelência Sr. Alexander von Humboldt

Lagoa Santa, 28 de Novembro 1837

A atenciosa bondade com que Vossa Excelência me recebeu, quando tive a felicidade

de ser apresentado a Vossa Excelência em Paris no ano de 1831, e o sublime

interesse com o qual o senhor apreciou as minhas insignificantes investigações neste

país, provocaram em mim o vivo desejo de por meio de posteriores esforços ser digno

daquelas bondade e interesse.

Poder retornar ao seio da natureza tropical é para mim um material de investigação

inesgotável, não obstante seja um único tema diante dos meus demais interesses.

Vossa Excelência me guiou a recolher ao vosso lado os primeiros frutos que coletei

neste campo. Os ossos fósseis brasileiros formaram o primeiro assunto da rica

conversa com a qual Vossa Excelência me agraciou. Eu não precisava falar nada

sobre isso a Vossa Excelência. Como mais tarde me seria concedido revelar uma

parte do véu que até agora este assunto ocultava, apresso-me a respeitosamente

submeter aqui a Vossa Excelência o primeiro relatório das minhas investigações

sobre este campo.

2.3 – A escolha das cartas em dinamarquês para tradução

Dada a enorme quantidade de textos da coleção Lund em Copenhagen (são mais de

mil cartas ou sete mil páginas que formam a correspondência trocada ao longo de seis

décadas), era necessário eleger aquelas cartas onde haveria maiores chances de Lund

fornecer informações sobre os motivos pelos quais decidiu por fim ao trabalho nas

cavernas. Ao longo da leitura da bibliografia disponível em português, assim como daquela

em dinamarquês moderno e das cartas em português, inglês e francês, foi ficando claro que

Lund era muito objetivo em sua correspondência. Ele não discutia problemas de ordem

pessoal, por exemplo, com o seu orientador, J. Reinhardt, e seus colegas da academia,

assim como não discutia problemas de natureza científica com seus familiares.

Como a hipótese desta tese parte do princípio que Lund paralisou seus trabalhos

justamente em função de uma crise teórica, com o abandono do modelo cuvierista a partir

da constatação de que espécies viventes conviveram com aquelas extintas, constatação que

se tornou inescapável a partir do encontro das ossadas humanas na Lapa do Sumidouro, a

primeira decisão foi excluir do estudo a correspondência com os familiares. Em

conseqüência pareceu-me claro que, caso existisse algum problema de natureza científica

para impedir o prosseguimento das escavações, este deveria surgir na discussão nas cartas

endereçadas J. Reinhardt, nos trechos onde Lund relata o andamento do trabalho nas

cavernas e a problemática da classificação das novas espécies.

Lund enviava para J. Reinhardt em média duas cartas por ano, número que se

manteve inalterado de 1826, quando da primeira viagem ao Brasil, até 1845, o ano da morte

de J. Reinhardt. Com o falecimento, o principal destinatário da correspondência científica

de Lund passou a ser J. T. Reinhardt. O conjunto de correspondências enviadas por Lund

para J. Reinhardt é de 46 cartas (ou 171 páginas). No mesmo período, de 1825 a 1845, J.

Reinhardt enviou para Lund 26 cartas (ou 131 páginas).

Em função da dificuldade para decifrar a caligrafia de J. Reinhardt (a caligrafia de

uma pessoa pode ser muito diferente da de outra), optei por limitar meu universo de estudo

à correspondência enviada por Lund para J. Reinhardt. Entre estas, escolhi o corte temporal

entre os anos do início de 1843 e o final de 1845, ou seja, os dois últimos anos de pesquisa

nas cavernas como um todo - e na Lapa do Sumidouro em particular. Assim, o universo de

análise foi reduzido a quatro cartas, datadas de 14/01/1843, 16/11/1843, 26/04/1844, e

10/01/1845, respectivamente. Some-se a elas ainda uma carta de 29/11/1841, justamente a

primeira que traduzi antes de me decidir pelo corte temporal definido acima. No total, as

cartas para Reinhardt totalizam 24 páginas em português.

Também inclui no estudo duas cartas enviadas ao botânico Eugen Warming, já no

final da vida de Lund. A primeira é de 07/07/1877 e a segunda de 28/03/1880, escrita

apenas 15 dias antes da morte do naturalista. Elas foram incluídas porque foram as

primeiras que traduzi, antes de enfrentar as cartas endereçadas para J. Reinhardt, mas

também pelo seu valor histórico e por terem sido redigidas por um homem no final da vida,

podendo assim fornecer indícios de um “acerto de contas” com o passado. As cartas para

Warming totalizam sete páginas em português.

Por fim, e igualmente seguindo a lógica do indiscutível valor histórico e da

possibilidade da revelação de indícios sobre o fim do trabalho nas cavernas, inclui mais três

cartas, trocadas por Lund e o Rei Christian VIII, onde Lund doa sua coleção ao povo da

Dinamarca, o rei aceita o presente, e Lund agradece. As cartas são, respectivamente, de

10/01/1845, 11/04/1846 e 08/08/1846. Uma tradução em francês consta do ensaio

biográfico de J. T. Reinhardt, de 1882, mas é a primeira vez que essas cartas são traduzidas

diretamente do dinamarquês para o português, idioma no qual elas totalizam seis páginas.

A seguir, seguem as cartas, primeiro com as imagens dos originais manuscritos,

seguidas por sua versão para o alfabeto latino e por fim a tradução para o português.

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