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Cuvier, preguiças e mastodontes

No documento tel-00289537, version 1 - 21 Jun 2008 (páginas 46-49)

O Barão Georges Léopold Chrétien Frédéric Dagobert Cuvier (1769-1832) é

lembrado principalmente por dois motivos: um grande sucesso metodológico, a criação da

Anatomia Comparada, e um enorme fracasso teórico, a formulação da Teoria Catastrofista.

Cuvier era um zoólogo com vastos conhecimentos da anatomia dos animais, justamente a

cadeira que inaugurou em 1795 no Museu de História Natural de Paris. Sua primeira grande

contribuição científica se deu no ano seguinte quando conseguiu identificar e descrever

com sucesso uma preguiça terrestre extinta. Em 1787, num riacho que desemboca no rio

Luján, na atual Província de Buenos Aires, na Argentina, o frei dominicano Manuel de

Torres encontrou um esqueleto quase completo de um animal gigantesco que se tornaria a

primeira espécie extinta descrita em toda a América. O esqueleto foi transportado para

Buenos Aires, e de lá seguiu para Madri, para enriquecer as coleções do real Gabinete de

História Natural. Juan Bautista Brú (1740-1799), naturalista que lá trabalhava,

desempacotou os ossos, limpou-os, montou o esqueleto e dele fez ilustrações (NOVAS,

2006, p.62-65). Em 1795, um oficial francês obteve cópias desses desenhos e os levou a

Paris, onde foi pedido a Cuvier que os estudasse. O sábio francês concluiu que o animal era

um edentado (RUDWICK, 1997, p.23). Como observa na monografia Squelette trouvé au

Paraguay10, de 1796, ele analisa seus dentes e garras para determinar que o lugar daquele

animal no sistema de taxonomia animal era a família dos edentados “sem dente incisivo (...)

entre as preguiças e os tatus” (RUDWICK, 1997, p.31-32). Assim, Cuvier descreveu a

espécie de preguiça terrícola com o nome de Megatherium americanum, a “grande fera”

(WALLACE, 2004, p.7).

Com uma diferença de uns poucos meses, Cuvier voltou à carga e elucidou a

identidade dos famosos elefantes congelados da Sibéria, ao perceber que pertenciam a uma

espécie diferente das vivas, a africana e a asiática. No dia 15 do Germinal do ano IV (4 de

10

Cuvier identificou erroneamente origem do fóssil como sendo o Paraguai. (CUVIER, 1796, p.303-310).

abril de 1796), leu em público a memória intitulada Les espèces d’éléphants fossiles

comparées aux espèces vivantes (CUVIER, 1796, p.440-444) onde afirmou que os

mamutes diferiam do elefante tanto quanto, ao mais ainda, do que o cachorro difere do

chacal e da hiena. Assim como o cachorro tolera o frio do norte, enquanto os outros dois

vivem apenas no sul, poderia acontecer o mesmo com estes animais, dos quais apenas

restos fósseis são conhecidos (RUDWICK, 1997, p.18, 22). Em outras palavras, ao sugerir

que os mamutes poderiam ter sido adaptados ao inverno siberiano, Cuvier obliterou a

“degenerescência” buffoniana e deu um grande passo na direção adaptativa. Ora, se as

espécies tinham o poder de se adaptar ao meio, faltava apenas descobrir o mecanismo

através do qual esta adaptação se processaria. A idéia da evolução, no entanto, significava

um salto teórico inimaginável. Seriam necessárias ainda seis décadas para sua descoberta

por Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913). Não obstante, a

anatomia comparada de Cuvier foi um passo fundamental na direção do darwinismo, na

medida em que rompeu com o método lineano de classificação através de características

externas para se basear em similaridades na estrutura interna dos animais. Esta mudança

tornou possível a visão darwinista da evolução, na qual uma única forma original se

diversifica através da adaptação (BOWLER, 2003, p.94).

O tremendo sucesso e fama de Cuvier contribuiu para o obscurecimento – pelo menos

no início do século XIX – do trabalho de um de seus rivais teóricos,11 Jean-Baptiste de

Monet, o Chevalier de Lamarck (1744-1829). Colega no museu parisiense e fundador da

taxonomia de invertebrados, Lamarck abandonou a fixidez das espécies para elaborar uma

visão transformista do mundo, aquela que representou a primeira grande tentativa de

construção de uma teoria na qual todos os seres vivos se desenvolveram a partir de

ancestrais primitivos (BOWLER, 2003, p.86-93; FOUCAULT, 2002, p.379). Em seu

Philosophie Zoologique (LAMARCK, 1809), ele propõe duas leis da chamada teoria

transformista. Segundo a primeira delas, o uso freqüente e continuado de qualquer órgão

gradualmente fortaleceria, desenvolveria e aumentaria o mesmo, enquanto que a falta de

11

Outro rival importante foi Étienne Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844), também do Museu de História

Natural de Paris. Em Philosophie anatomique (1822), ele defendia que a mudança das espécies não era

gradual e adquirida, como Lamarck, mas repentina, aos saltos, em função de alterações no meio ambiente.

Esta idéia voltou a ser defendida por Stephen Jay Gould e Niles Eldredge na teoria do equilíbrio pontuado, de

1972. Cuvier e Saint-Hilaire se enfrentaram numa série de debates acalorados em 1829 (APPEL, 1987).

emprego de qualquer órgão causaria a sua atrofia e desaparecimento.12 Já a segunda lei

defende que estas características adquiridas pelo indivíduo através da influência do meio

são preservadas através da reprodução e herdadas pela geração seguinte.13 Para Lamarck, a

transmissão de características herdadas formaria assim uma cadeia linear entre todos os

seres vivos, retrocedendo até as primeiras formas de vida quando da criação do planeta – o

que, sabemos hoje, é o que de fato aconteceu com a história da vida na Terra. O erro de

Lamarck consistiu no mecanismo pelo qual essa evolução se processava.

Para o pai do catastrofismo, no entanto, a suposta cadeia dos seres vivos de Lamarck

seria apenas uma aplicação de observações parciais da totalidade da criação. Cuvier

raciocinou que, caso as espécies se transformassem umas nas outras, esperar-se-ia encontrar

formas intermediárias entre os seres vivos, mas ninguém jamais tinha achado estas formas

nem observado a transformação de uma espécie em outra. O barão estava convicto que cada

espécie era uma modificação coerente com relação à sua origem única e remota. Anos

antes, ele já havia rejeitado publicamente a evolução. Na memória sobre os elefantes

(1796), negou explicitamente a possibilidade de que as diferenças anatômicas entre os

elefantes indiano e africano pudessem ser devidas ao clima (APPEL, 1987, p.51-53).

Menosprezando a teoria lamarckista como o produto de um materialismo

ultrapassado, Cuvier usou sua influência para marginalizar o trabalho de Lamarck dentro da

academia francesa (BOWLER, 2003, p.94). Meio século depois, ninguém menos que

Charles Darwin seria o responsável por jogar luz sobre a obra de Lamarck, cujo mérito foi

ser o primeiro homem cujas conclusões sobre a evolução das espécies chamaram atenção,

pois foi o primeiro a sustentar a idéia de que todas as espécies, incluindo o homem,

descendem de outras espécies. “Ele foi o primeiro a fazer o eminente serviço de levantar

atenção para a probabilidade de que todas as mudanças no mundo orgânico, assim como no

inorgânico, serem resultado de uma lei e não de uma interposição milagrosa” (DARWIN,

1859, p.2).

12

“Dans tout animal qui n’a point dépassé le terme de ses développements, l’emploi plus fréquent et soutenu

d’un organe quelconque fortifie peu à peu cet organe, le développe, l’agrandit et lui donne une puissance

proportionnée à la durée de cet emploi; tandis que le défaut constant de l’usage de tel organe l’affaiblit

insensiblement, le détériore, diminue progressivement ses facultés et finit par le faire disparaître.”

13

“Tout ce que la nature a fait acquérir ou perdre aux individus par l’influence constante des circonstances où

leur race se trouve depuis longtemps exposée, et par conséquent par l’influence de l’emploi prédominant de

tel organe, ou par celle d’un défaut d’usage constant de telle partie, elle le conserve pour la génération de

nouveaux individus qui en proviennent, pourvu que les changements acquis soient communs aux deux sexes,

ou à ceux qui ont produit ces nouveaux individus.”

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