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6 O CONSUMO DE BEBIDAS ALCÓOLICAS E AS PERFORMANCES

6.1 O CATALISADOR DAS EMOÇÕES

Assim como o Kula foi notado por Malinowski (1976, p. 18) como sendo um sistema revestido “de um significado extremo na vida tribal dos nativos”, o consumo de bebidas alcóolicas por parte dos sujeitos desta etnografia também demonstra este caráter significativo, seja na sua utilização como catalisador de emoções e revelação de uma identidade sexual não demonstrada

a priori quando sóbrio ou na maneira como o circuito de busca por entretenimento é perpassado

pela ideia da bebida alcóolica como o bem material a ser adquirido como uma fonte essencial para diversão.

A minha experiência junto a um segmento do entretenimento gay capixaba, que acontece através desta pesquisa sobre o tema da diversão e como o uso de diversos bens e serviços podem nos revelar a maneira como identidade sexual pode ser expressada e, assim, vivida nestes ambientes de prazer e entretenimento, me levou a considerar o álcool com um agente externo potencializador da diversão.

Conforme Ribeiro e Vianna (2009, p. 416) é possível estabelecer uma “cultura material” a partir das “práticas cotidianas” dos sujeitos que consomem determinados produtos. Neste ato de buscar adquirir este ou aquele objeto de desejo, o consumo traz a potencialidade de significação das ações para o qual as finalidades estão direcionadas. Esse olhar não é para o objeto ou sujeito em si mesmos, provocando uma dicotomia radical, mas torna-se um olhar de “como as coisas constituem as pessoas” (RIBEIRO; VIANNA, 2009, p. 423).

Por diversos meses acompanhei dois jovens gays em locais de entretenimento com a finalidade de compreender como estes espaços significados por eles constroem a sua identidade. Eles se fizeram presentes em ambientes onde consumo de bebidas alcóolicas é considerado parte do entretenimento e não apenas um objeto a ser consumido distintamente.

O uso de drogas lícitas, como é o caso do álcool, não pode ser compreendido apenas pela ação dos indivíduos no consumo da bebida, ela está para além de uma ação qualquer ou corriqueira dos ambientes de diversão. Ott e Pereira (2010), buscaram compreender como “a forma como os Tenharim bebem está relacionada, sobretudo, a um rito de passagem masculino” e a utilização das bebidas alcóolicas dentro desses rituais. As ações do consumo de bebidas alcóolicas fornecem “subsídios para se compreender o processo como um ato social” (OTT; PEREIRA, 2010).

Portanto, a valorização dos atos beber ou não, dentro de um espaço de lazer, deve ser compreendida a partir da ótica do nativo. Segundo Ott e Pereira (2010), o contato com o álcool e com os produtos industrializados pelos Tenharim, ocorreu através da construção da Transamazônica, que fizeram com que tivessem acesso ao dinheiro e bens de consumo diversos. De início, esse grupo indígena não possuía normas ou leis sobre a forma de utilização do produto, sobretudo a cachaça. Então, segundo Ott e Pereira (2010), o uso da “cachaça pelos Tenharim foi realizada inicialmente sem normas quanto à idade, sexo, motivo ou forma de utilização”. O seu consumo era apenas pelos efeitos que ela causava ao ser consumida: “relaxamento, desinibição e socialização” (OTTI; PEREIRA, 2010).

Inicialmente, olhando este fato ocorrido na aldeia dos Tenharim, não há diferença da maneira como as bebidas alcóolicas foram usadas pelos nativos desta etnografia. Porém, a contextualização e a subjetividade dos gays nos espaços de divertimento permitiram que nos significados dados ao consumo de álcool, os mesmos projetassem novas informações acerca da utilização da bebida. E caminhar (porém, não beber) por estes locais juntamente com os nativos foi necessário para que esta etnografia fosse produzida. O fato de não consumir bebidas alcóolicas durante a minha etnografia nada tem a ver com a condição de “estar a trabalho” ou “me manter sóbrio, para não perder nenhum tipo e informação”. Não fiz o uso de álcool pelo simples fato de que não bebo nenhum líquido destilado ou que contenha teor alcóolico, mesmo. Posso dizer que não é meu tipo de consumo, definitivamente. Considero importante este relato, pois de alguma maneira isso afeta a forma como os percebi e fui percebido por eles. Também gerou alguns questionamentos que ressaltam a importância da bebida no ritual de lazer realizado

durante os entretenimentos, por exemplo, “Não entendo, como você se diverte sem beber nada?” ou “Mentira que você dança a noite toda só bebendo água”.

Malinowski (1976, p. 23), disse que por diversas vezes não cumpriu a etiqueta estabelecida pelos melanésios, fazendo que os mesmos apontassem onde ele estava errando na convivência junto aos nativos. Os questionamentos realizados pelos sujeitos participantes de minha pesquisa, mostraram que estes apontamentos sofridos pelo antropólogo clássico mencionado anteriormente, também foram feitos a mim. De certa maneira, as indagações foram, claramente, uma maneira de me alertar onde eu não estava em conexão com eles, ou seja, através do uso do álcool.

Mesmo eu não participando efetivamente dos momentos de entrosamento a partir das bebidas ingeridas pelos nativos de minha etnografia, consegui por outros meios a “apreciar a sua companhia e partilhar alguns dos seus jogos e diversões” (MALINOWSKI, 1976, p. 23), o que me permitiu em um determinado momento “sentir em verdadeiro contato com os nativos” (MALINOWSKI, 1976, p. 23). O que me possibilitou perceber, mesmo utilizando de outros recursos participativos para me entrosar com eles, que há “organização muito definida” e que existe, sim, “lei e ordem nas suas relações públicas e pessoais” (MALINOWSKI, 1976, p. 23). Conforme Marcel Mauss (2003, p. 187), as relações existentes entre os escandinavos estão manifestadas sob a forma de presentes, gerando as trocas e os contratos estabelecidos entre estes nativos. Ora, a bebida é utilizada pelos sujeitos desta etnografia como uma maneira de estabelecer vínculos entre eles. Comprar uma bebida e poder dividi-la entre os amigos faz parte de um ritual que gera cumplicidade.

Acompanhando um dos jovens de minha pesquisa, um de seus amigos relatou que não poderia ir, pois estava sem dinheiro para gastar e, consequentemente, não poderia beber durante a noite. A partir desse momento, os diálogos foram voltados para buscar resolver a melhor maneira de possibilitar ao amigo a participação no evento, mesmo não tendo condições financeiras naquele momento de arcar com os custos do entretenimento em questão.

Diante de tal situação, os laços afetivos que envolviam o grupo foram evocados para sanar o problema e todos poderem participar de maneira igualitária. Uma vez que o Adson havia ganhado cem reais para a consumação sem custos na festa, devido ao concurso do qual participou e ganhou o primeiro lugar, ele solucionou a questão da bebida. Mas, e como foi feito com relação à entrada no evento, o ingresso? Bom, Adson deixou de cobrar do amigo uma

dívida que havia sido contraída em semanas anteriores, permitindo que o rapaz utilizasse o dinheiro para o acesso ao entretenimento e o pagasse em uma outra ocasião.

Mesmo que esse gesto de um adiamento da dívida pareça ser um ato de bondade e de atenção para com o amigo, existe nisso tudo uma “multiplicidade de coisas sociais em movimento” (MAUSS, 2003, p. 187). Futuramente, essa forma de adesão do amigo devedor ao momento de festividade do grupo revelou que havia um “caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito”, porém, “obrigatório e interessado, dessas prestações” (MAUSS, 2003, p. 188). Isso foi notório em vários momentos, pois a todo instante, em qualquer tipo de desavença, a ideia de quem estava permitindo essa oportunidade de diversão, era quem detinha o controle sobre o outro e sobre suas possibilidades de ação no ambiente: onde ir, o que fazer, pegar a bebida etc.

Também é possível pensar, segundo Mauss (2003, p. 190), que não são “simples trocas de bens, de riqueza e de produtos num mercado estabelecido entre os indivíduos”, pois nesta ação de presentear o amigo com o adiamento do pagamento de uma dívida e a entrega de consumo durante o evento, está presente uma “coletividade que se obriga mutuamente, troca e contrata”. Continua Mauss (2003, p. 190), nesta ação da dádiva realizada por Adson, transparece “pessoas morais [...] que se enfrentam e se opõem”.

Para Mauss (2003, p. 191), “o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente”. Não é a bebida, a entrada da festa que faz com que sejam estabelecidos os vínculos de contratualidade entre o Adson e seu amigo, mas “amabilidades, banquetes, ritos [...] danças, festas” (MAUSS, 2003, p. 191). Pois demonstra os poderes de uns e as obrigatoriedades de outros, mediante o consumo.

Em todos esses acontecimentos, o álcool esteve presente. Ora como o bem de consumo que ativa a busca pelo entretenimento, ora como o motivo de aproximação entre os sujeitos, ou também, como o construtor de uma outra identidade que se revela após o seu consumo de fato.