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2 LAZER OU ENTRETENIMENTO

2.2 O ENTRETENIMENTO

Diferentemente de lazer, o termo entretenimento tem seu significado em si mesmo. Ao longo do processo de compreensão da espécie humana, esta era frequentemente vista como constituída por seres racionais, portanto, intitulados homo sapiens.

Esta nomenclatura se deve à capacidade de raciocinar e dar explicações lógicas para os fenômenos. Johan Huizinga (2000), em seu livro Homo Ludens, estabelece que a função de

homo sapiens não foi suficiente para designar o ser humano em sua existência. Para tal, lançou-

se mão de uma outra função, a de homo faber, apesar de que esta “não seja uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens”, ela também serve para “designar grande número de animais”.

Assim, para estabelecer uma outra característica à dimensão humana, foi dada uma terceira função: homo ludens19. Esta, segundo Huizinga (2000, p. 4), “é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos”, e pode ser conhecida, também como “o jogo”. Neste caso,

jogar é “toda e qualquer atividade humana” (HUIZINGA, 2000, p. 4). Sendo assim, não se trata

de uma aplicação metafísica, mas o entendimento de que o jogo não é uma parte da cultura, mas ela própria (a cultura) “possui um caráter lúdico” (HUIZINGA, 2000, p. 4).

Endossando esse pensamento, Battista Mondin (2008), esclarece que “o jogo é uma atividade tipicamente humana” [...], pois o “homem inventa jogos e diverte-se como nenhum outro animal sabe fazer” (MONDIN, 2008, p. 215). Retornando a Huizinga (2000, p. 6), ele diz que o jogo é algo que ocorre antes mesmo da existência da humanidade, haja vista que as brincadeiras estabelecidas entre os animais sempre existiram, e de alguma maneira eles “não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica”.

19 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Tradução de João Paulo Monteiro. 4ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

Nesta ideia de jogo, para Huizinga (2000, p. 6), há uma função significante, pois “encerra um determinado sentido”. Continua:

No jogo existe alguma coisa "em jogo" que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Não se explica nada chamando "instinto" ao princípio ativo que constitui a essência do jogo; chamar- lhe "espírito" ou "vontade" seria dizer demasiado. Seja qual for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em sua própria essência. (HUIZINGA, 2000, p. 6)

Uma vez que o jogo legitima a ação dos sujeitos através da capacidade de dar sentido às suas ações, observar o entretenimento a partir dele (ou da ludicidade preexistente à atividade humana) faz com que o consumo de entretenimento garanta a possibilidade de apontar “um demarcador de identificação”.20 Ora, se todo o entretenimento (e o consumo que se faz dele) possui um significado e esse “elemento não material” determinado por Huizinga (2000, p. 6) é justamente aquilo que a presente etnografia procura estabelecer, encontrar o “elemento não material em sua própria essência” (p. 6) é encontrar o que leva o indivíduo no exercício de seu lado lúdico buscar esta ou aquela diversão e tudo o que circunda o divertimento (comida, bebida, locomoção, indumentárias etc).

Importante traçar a ideia de individualidade neste momento, a fim de comunicar com essa subjetividade do entretenimento dita no parágrafo anterior. Pois quanto maior a compreensão dos desejos como artífices da busca pelo consumo do entretenimento e o sentido dado por cada um, maior será o entendimento de como as identidades são construídas a partir desta pesquisa. Luiz Flávio Neubert (2010), escreveu em seu artigo intitulado “Indivíduo, liberdade e lazer na

modernidade”, acerca da individualidade sendo um fenômeno desenvolvido de maneira

peculiar no período moderno (p. 277). E juntamente com essa individualidade, o lazer surge como um sinônimo de liberdade humana, apesar de ao longo do processo científico de análise do fenômeno que estabelece um período de diversão ao ser humano, muitos não fizeram essa conexão entre modernidade e liberdade, haja vista que dentro do século XIX, os pensamentos estavam voltados para a ideia de que o trabalho aprisiona o indivíduo e não permite que ele tenha essa ocasião para relaxar (NEUBERT, 2010, p. 278).

A individualidade, segundo Neubert (2010, p. 278) tem seu surgimento “na Europa Ocidental na época do Renascimento italiano”, e com esse momento do pensamento moderno, surge a

20 BERTOLI, Elberth de Oliveira. Entretenimento gay: o consumo como descoberta da homossexualidade. In:

possibilidade de buscar “reviver a antiga cultura greco-romana, trazendo mudanças no campo das artes, da literatura e das ciências” (NEUBERT, 2010, p. 278). Ao nome desse evento chamamos humanismo, que tinha como ideal “a busca consciente do passado como modelo para a construção de uma nova civilização” (NEUBERT, 2010, p. 278), não de maneira aleatória, mas “baseada na revalorização do homem no seu sentido mais geral e abstrato, além de um olhar especial sobre a natureza através do uso da razão” (NEUBERT, 2010, p. 278). Se no período medieval a noção de individualidade se dava através de “uma disposição interna de se diferenciar pela aparência e de se tornar identificável, destoante dos outros” (NEUBERT, 2010, p. 278), no período moderno o rompimento com essa espécie de pensamento acaba por colocar a individualidade com uma característica principal, a liberdade, diz Neubert (2010, p. 278). Essa liberdade pôde ser percebida através da “esfera econômica na qual a livre concorrência entre interesses individuais em um mercado ideal tenderia a um equilíbrio de forças” (NEUBERT, 2010, p. 278).

Todavia, mesmo diante desta ideia de individualidade estabelecida pelo Humanismo e pela racionalidade do período moderno, alguns conflitos e manutenção de pensamentos ocorriam nas esferas socioeconômicas, mantendo em um certo nível a condição da existência da igualdade dos indivíduos (NEUBERT, 2010, p. 278-279). Então, continua Neubert (2010, p. 279), a luta contra igualdade só estaria completa quando as “vontades internas” dos sujeitos viessem à tona e buscassem a “ênfase não mais no indivíduo genérico”, mas naquilo que o diferenciava de seus pares e o tornasse como peculiar no meio de tantos outros (NEUBERT, 2010, p. 279).

Por isso,

Essa elaboração se fez necessária na medida em que a vida moderna se tornava cada vez mais complexa e a busca de si mesmo se realizava internamente, e não externamente. Como consequência, cada indivíduo corresponde, desde então, a uma combinação única de forças que tem como resultado um ser especial e único (NEUBERT, 2010, p. 279).

Essa sociedade moderna do século XIX, mesmo diante dos avanços tecnológicos, continuou proporcionando a existência de fatores que ora lançam o ser humano para uma lógica voltada para uma individualidade que coexiste com a igualdade; mas lança esse homem na individualidade existencial, através da liberdade, que é concretizada pelo lazer escolhido. As atividades diárias são uma espécie de “marco de referência”, segundo Neubert (2010, p. 282),

onde é possível, através desses demarcadores estabelecer quem são “os ‘outros’ ou o próprio indivíduo”.

Se “em atividades como o trabalho profissional e os cuidados com a casa e a família, os outros são a referência principal para a realização da atividade” (NEUBERT, 2010, p. 282), constituindo que esses indivíduos se tornam iguais nos afazeres de uma sociedade. Em contrapartida, “as atividades recreativas têm como referencial o próprio indivíduo que as realiza” (NEUBERT, 2010, p. 282), pois “ao escolherem as atividades recreativas, os indivíduos levam em conta, principalmente, o prazer e a satisfação dentro dos limites aceitos pela coletividade” (NEUBERT, 2010, p. 282), tornando-se sujeitos únicos, com desejos distintos e peculiares, pois optam por este ou aquele entretenimento/diversão, que demonstram a sua subjetividade e liberdade no ato do prazer.

Então, dentro dessa perspectiva, o que seria o lazer para Neubert (2010)? Seria aquilo que traz o rompimento com a rotina, realizando uma “função desrotinizante (p. 282), em contraste com as atividades que comportam graus variados de ‘rotinização’” (NEUBERT, 2010, p. 282). Sendo assim,

As rotinas carregam em si um alto grau de segurança, previsibilidade etc. As atividades recreativas têm como função, portanto, introduzir na vida dos indivíduos certos momentos de insegurança, de tensão (como no jogo) e de liberação das emoções, tornando suportável a realização das atividades altamente rotinizadas (NEUBERT, 2010, p. 282).

Neubert (2010, p. 283), então, estabelece que a sociedade moderna é um espaço que possibilita a criação de momentos de lazer e que permitem o ser humano a “desenvolver atividades criativas (e produtivas) fora de relações sociais de produção e reprodução do capital”. Essa possibilidade de busca pelo entretenimento acaba por estabelecer um “caráter libertário que o lazer expressa em vista das obrigações, restrições e limitações impostas pela organização social, pela divisão do trabalho e pelas instituições de poder” (NEUBERT, 2010, p. 283).

Como uma espécie de painel externo das construções de identidade realizadas pelos desejos dos sujeitos,

As atividades de lazer incorporam um elemento funcional na relação entre o indivíduo e a sociedade moderna, uma forma inovadora que a primeira parte dispõe para satisfazer desejos, elaborar conteúdos subjetivos, cuidar do corpo, buscar equilíbrio emocional, estreitar laços de amizade ou de intimidade etc. A sociedade moderna, civilizada e burguesa, composta, portanto, por indivíduos (no sentido aqui discutido), cria situações especiais, nas quais estes últimos podem desenvolver atividades

criativas (e produtivas) fora de relações sociais de produção e reprodução do capital. (NEUBERT, 2010, p. 282-283).

Sendo assim, nesta comparação entre lazer e entretenimento, fica clara a diferenciação: o lazer está pautado sempre na oposição às atividades cotidianas que de alguma maneira estabelecem a necessidade de rompimento do tempo, do espaço e da própria natureza do homo faber, enquanto o entretenimento possui um sentido em si mesmo, não pautado a partir de nada externo a ele e em seu bojo ocorrem as manifestações humanas que o significam através do consumo. Continua Huizinga (2000, p. 9), ao tratar o problema do

Jogo diretamente como função da cultura, e não tal como aparece na vida do animal ou da criança, estamos iniciando a partir do momento em que as abordagens da biologia e da psicologia chegam ao seu termo. Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado existente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a fase de civilização em que agora nos encontramos. Em toda a parte, encontramos presente o jogo, como uma qualidade de ação bem determinada e distinta da vida "comum".

Buscando distanciar o jogo das questões biológicas e psicológicas, o autor entende que a capacidade lúdica se manifesta na cultura, portanto, só é possível ter essa ideia de significado cultural se o indivíduo compreender que o jogo “acompanha” e “marca” [...] “como uma qualidade de ação”. É nesta função de homo ludens que consiste a percepção do que é ou não entretenimento para o sujeito, enquanto aquele que estabelece a busca por aquilo que o diverte, que o distrai, que se torna recreação, diferente da lógica do lazer que apenas estabelece o exercício da tríade a partir da oposição com os afazeres obrigatórios e cotidianos da vida social. Se mesmo diante das pressões do dia-a-dia, Thiago viu na sua fuga do ambiente acadêmico um momento de diversão, não se pode considerar, então, esse ato como lazer, mas, sim, entretenimento. O sentido cultural foi estabelecido pelo nativo, pois o divertiu, o distraiu e se tornou um momento de recreação diante do cotidiano que o circundava. E acabou fazendo parte da própria rotina dele.

Os momentos de diversão, prazer ou satisfação a partir do entretenimento não podem ter como característica as suas inclusões no momento vivido, ao contrário, eles já devem se encontrar no entretenimento e são o “objetivo primário” (MONDIN, 2008, p. 218). O que isso quer dizer? Os jovens não procuraram o entretenimento porque acreditavam que ele traria (a posteriori) o gozo da diversão, da recreação e do prazer; o entretenimento era a diversão, recreação e o prazer

em si mesmo, estabelecendo a melhor maneira de se aproveitar o momento, fosse pelo consumo desta ou daquela bebida, usando esta ou aquela roupa, indo a este ou àquele evento etc. E, sendo um lugar cheio de significados subjetivos, compreender os sentidos dados pelos jovens gays sobre a diversão que os entretém, favoreceu a condução da pesquisa de uma que não universaliza as ações, sentidos e significados do prazer, do gozo e da alegria em se divertir.

2.3 DE MENINO OU DE MENINA, “NA NOSSA FESTA VALE TUDO”

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