• Nenhum resultado encontrado

5. Tarefas Descritiva e Interpretativa

5.4 Categoria Corpo-eficiência

5.4.1 Categoria Corpo-eficiência para a ALM

Para alguns autores como Lipovetsky (1994), o grande fascínio pelo desporto advém da sua vertente competitiva, ao revelar um espectáculo que se destaca pela raridade das prestações humanas. É principalmente no desporto de rendimento que o atleta se abre a todos os olhares e encena a sua dramatização. Ele conta assim uma história, a do criador e da criação, unificada num só corpo e em cada gesto observado.

A prática desportiva transfere-nos para um mundo povoado de arte e de técnicas, onde cada corpo tem as suas. Embora cada modalidade se identifique com um padrão de movimentos muito próprios, eles surgem em cada corpo povoados de particularidades – se na universalidade todos se assemelham, na especificidade todos se diferenciam. Deste modo, ao mesmo tempo que o desporto configura o corpo, o corpo transfigura o desporto.

Para a ALM o desporto para pessoas portadoras de deficiência estabeleceu um percurso de edificação, divulgando valores que pouco a pouco se foram diferenciando: “No início estava simplesmente relacionado com o facto de

mostrar que a pessoa com deficiência era capaz de ser eficiente, de ser eficiente tal e qual como os ditos “normais”. Tinha como base um convívio social, sendo uma forma de motivar aqueles que se isolavam em casa a conviverem, a fazerem a sua integração na sociedade. A partir de alguns anos para cá, o desporto paralímpico envolve muitos outros conceitos, nomeadamente prémios monetários, reconhecimento público, envolve patrocínios. (…) De forma que também já conta o empenho e a eficiência motora e por isso também começa a surgir cada vez mais o doping no desporto paralímpico.”

Não sendo nossa intenção fazer aqui uma resenha histórica dos ideais que se sobrelevaram no desporto para deficientes, não podemos negar que eles têm vindo a sofrer alterações. E se anteriormente o ser eficiente estava relacionado, essencialmente, com o ser activo e produtivo na sociedade, hoje o ser eficiente volta-se para o desempenho desportivo do indivíduo, em direcção

ao resultado. Assim sendo, este corpo-eficiência inicia a sua caminhada rumo àquilo que é o desporto de competição, surgindo a necessidade da qualidade do gesto e do movimento.

Ao integrar a equipa de Natação Adaptada, a ALM percebeu que tinha que se dedicar quase exclusivamente à modalidade, apercebendo-se deste modo da predominância da sua componente técnica: “Desde cedo me apercebi

que o facto de praticar o meu desporto me fazia sentir sempre mais ágil, com mais força de vontade. (…) E desde então não parei mais”.

Estamos assim perante um corpo desportivo que, capaz de se auto superar, transmite e atinge uma desenvoltura sempre em ascensão e aperfeiçoamento, evidenciando o seu valor estético, comprovando que um corpo com d-eficiência ou aparente insu-eficiência pode ser um corpo eficiente.

5.4.2 Categoria Corpo-eficiência para o AJPF

O desporto é um espaço de criação de existências, onde podemos encontrar e cultivar os valores da corporalidade, do rendimento, do esforço, do empenhamento, da persistência, da dificuldade e da realização. É um espaço de configuração, de estética e de comunicação (Bento, 1990). Nesta perspectiva, ele existe para todos, configurando-se de acordo com os múltiplos sentidos que ligam as pessoas ao desporto (id.). O desporto assume-se assim como uma das formas do Homem se comprometer com a sua corporalidade, sendo no desporto de competição que o corpo se propõe à expansão, abraçando diariamente novos horizontes.

O discurso do AJPF parece realçar isso mesmo: “Naquela altura, antes de

ser convocado para a Selecção, as minhas performances não estavam nada más, estavam boas. Eu sabia que estava muito forte, eu tinha ganho os campeonatos todos. De modo que quase de certeza que era eu o convocado. Todos os factores estavam a meu favor.”

a capacidade de se auto modelar. É assim o corpo desportivo trabalhado ao mais alto nível, chegando ao ponto de interiorizar de tal maneira a sua viagem ascensional, que não se apercebe da sua própria condição: “Quando fui

convocado, no início de 2003, fiquei contente. Passado algum tempo estive a reflectir sobre isso e notei que eu dei o meu máximo, aliás, em 2003, estava no meu máximo, de tal forma que eu não tive consciência que poderia ser seleccionado. Até ao último momento, até à palavra do seleccionador, eu não queria acreditar que ia ser convocado.”

Mais importante que o produto, o AJPF realça aqui todo o processo que o conduziu ao cumprimento do seu principal objectivo. Não desvalorizando o fim alcançado, é de facto durante o percurso que o corpo desportivo revela a suas qualidades e a sua real eficiência. Como diz Lipovetsky (1994, p. 128), “para além dos resultados mais visíveis do desporto, ele ensina também (…) a suplantação de si próprio”.

5.4.3 Categoria Corpo-eficiência: análise comparativa

De acordo com Fernandes (1997) a deficiência não se manifesta na pessoa humana mas sim em determinada condição. Se formal e institucionalmente o desporto de rendimento para pessoas portadoras de deficiência se encontra separado do desporto para pessoas ditas “normais”, ele é uma das condições em que provavelmente a diferença está presente. De modo semelhante, Kant considera que a noção de diferença é algo que se aplica aos fenómenos e não às coisas em si (Mora, 1991).

Independentemente das diferenças, partilhamos da ideia de Cunha e Silva (2003, p. 108) quando diz que “entre o mesmo e o diferente há muito mais semelhanças que diferenças”. Para além do mais, entendemos que uma das maiores riquezas do desporto é, precisamente, a capacidade de envolver todos quantos nele se querem inscrever.

Como nos diz Epicteto, embora não dependa de nós o corpo, já que ele não é uma obra exactamente nossa, dependem de nós as nossas próprias

obras. E estas “são naturalmente livres, sem impedimento, sem obstáculo” (Russ, 2000, p. 178). Assim sendo, todo o corpo desportivo é livre de optar pelas obras que nele quer inscrever. Na nossa opinião, uma dessas obras, dignas do corpo no desporto, é a eficiência corporal que se alcança na prática diária de uma modalidade.

Para os atletas em estudo, o corpo-eficiência é um corpo que incorpora e que simultaneamente exterioriza a qualidade do gesto, evidenciada simultaneamente na sua economia e no seu uso excessivo, e que apenas é conseguida por um corpo altamente treinado. Quer este corpo se enfatize pelo processo, quer se destaque pelo produto, será sempre, pensamos nós, resultado do valor e da virtude de um mesmo sentimento, mas sempre renovado. Comparando os discursos de ambos os atletas, verificamos que para a ALM o corpo-eficiência começou a assumir uma preponderância cada vez maior no desporto para deficientes, sendo imprescindível para a sua ascensão a corpo-desportivo. Relativamente ao AJPF, o corpo-eficiência é o corpo do desporto de competição, é o corpo que o próprio desporto vai construindo, como se iniciássemos uma longa caminhada – o caminho somos nós que o traçamos e só avançamos quando o nosso corpo nos permite; à medida que o vamos percorrendo, o que fica para trás é importante, pois é o alicerce para o que vamos alcançar de seguida; mas não são autorizados recuos, isso implicaria ter que começar um novo caminho, agora mais difícil.